Intérpretes do Brasil – Escola do Recife

    Tobias Barreto foi o expoente do nacionalismo cultural que procurou pensar o Brasil emancipado dos padrões europeus de pensamento.

    A Escola do Recife foi uma corrente do pensamento social e político brasileiro ocorrida na Faculdade de Direito do Recife nas últimas décadas do século XIX, mais especialmente nas décadas de 1870 e 1880.  Seus principais representantes foram Tobias Barreto (1839-1889) e Sílvio Romero (1851-1914), mas também podem ser incluídos nomes consagrados como Capistrano de Abreu (1853-1927), Clóvis Beviláqua (1859-1944) e Graça Aranha (1868-1931), entre muitos outros.

    Os traços comuns aos seus integrantes foram o esforço em elaborar uma teoria da sociedade brasileira a partir da investigação dos aspectos culturais, históricos e políticos do País e a rejeição à importação acrítica e imediata de ideias, tendências e instituições incompatíveis com a realidade nacional.

    Longe de serem xenófobos, estiveram entre os primeiros, no Brasil, a estudar sistematicamente e difundir os mestres das ciências sociais na Europa, como Augusto Comte, Herbert Spencer, John Stuart Mill, Ernst Haeckel e Frédéric Le Play. Tobias Barreto, em particular, foi destacado germanista, tendo introduzido no Brasil o estudo da filosofia e das ciências sociais alemãs.

    Silvio Romero criticou a parcela da elite brasileira alienada e ignorante do próprio País.

    Fiéis, contudo, a um dos princípios básicos da sociologia e da antropologia oitocentistas, de que os fenômenos sociais são relativos ao contexto singular em que ocorrem e que, portanto, devem ser entendidos nas suas relações com o meio coletivo que lhes é específico, recusaram o mimetismo transplantador da produção intelectual do Velho Mundo, reivindicando a possibilidade de um entendimento autônomo do Brasil, feito por brasileiros e para os brasileiros.

    Um tema frequente era o divórcio entre a “pequena elite cultural” e o “grosso da população” – nos termos de Sílvio Romero – com a primeira desterrada em sua própria Pátria e imersa em sofisticadíssimas ideias fora do lugar, e a segunda vivendo uma vida material e intelectual miserável, absolutamente alheia às letras, à ciência, aos progressos técnicos e às inovações institucionais.

    A política brasileira refletiria essa separação, com a minoria dirigente, organizada nos círculos de poder, tomando decisões e edificando instituições sem nenhum lastro no Brasil da maioria desorganizada e abandonada, incapaz de se constituir em opinião pública e de se sentir representada pela elite política e intelectual.

    Tal apartação entre a elite cosmopolita e a massa ignara seria uma das dimensões do estatuto colonial brasileiro, orientado para a repetição do que vem de fora e não para a compreensão autônoma e integrada do Brasil, requisito para o desenvolvimento de mesma natureza. Segundo Romero, o Brasil seria “ainda uma vasta feitoria, uma verdadeira colônia, explorada pelo capital europeu sob a forma de comércio e sob a forma de empresas”. A subjugação da economia nacional a comandos externos seria paralela à subjugação da inteligência nacional aos modismos forâneos, sob a cumplicidade, consciente ou não, das elites políticas e intelectuais.

    Assim, ignorante do próprio meio e incapaz de transformá-lo, essa minoria cosmopolita e alienada teria construído um Estado artificial e frágil, voltado à reprodução de privilégios e ao acomodamento com a condição heterônoma do Brasil, inapto, portanto, a construir a Nação e melhorar as condições de vida do povo.

    O jurista Clóvis Beviláqua, principal autor do Código Civil de 1916, foi outro expoente do pensamento original da Escola do Recife.

    A política, assim, deveria ser erguida em bases nacionais, correspondentes ao Brasil real ignorado pelos beletristas aculturados. Como afirmou Tobias Barreto: “a política autóctone, ingênita ao caráter do povo, é a única e vantajosa, por ser a única, também, capaz de desenvolvimento”. Inútil e pernicioso tentar imitar outros países, pois, ainda segundo ele, “cada povo tem a sua história, e cada história tem os seus fatores. Tampouco se encontram duas nações com o mesmo desenvolvimento, como dois indivíduos com a mesma feição”.

    A fim de atuarem sobre a realidade nacional seria necessário, em primeiro lugar, compreendê-la, decifrar o que Tobias Barreto chamou de caráter nacional brasileiro, ou seja, o modo de ser próprio da nossa gente. O lema “olhemos para o país”, lançado por Romero, resumiria a postura nacionalista da Escola do Recife. Não caberia forçar o entendimento do Brasil em categorias importadas, criadas para outros países. Haveria, dessa forma, a necessidade de construir uma ciência social brasileira, modelada para a análise das questões antropológicas e sociológicas específicas do Brasil.

    Daí que a Escola do Recife dedicou-se ao estudo de várias questões fundamentais da formação do Brasil e do povo brasileiro. Tobias Barreto elaborou estudos sobre as instituições políticas brasileiras, como o Poder Moderador no Império, sendo um dos primeiros a entender o insolidarismo social e a falta de interesse das massas pelos assuntos públicos como características diferenciadoras do Brasil em relação a países mais avançados, de quem as elites cosmopolitas desejavam imitar as instituições. Também estudou a escravidão, tendo defendido o abolicionismo, e foi um dos primeiros propugnadores da emancipação feminina pela criação de escolas para mulheres nos municípios e a igualdade de status no casamento.

    Sílvio Romero, por sua vez, escreveu a História da Literatura Brasileira, a primeira do gênero em nosso País, originalmente publicada em 1888. A obra relacionava a história da literatura nacional à história econômica e política do Brasil e à cultura popular, entendendo, desse modo, o objeto específico – a literatura – como estando inserido no arcabouço estrutural do País. Ele também compendiou o folclore nacional nos livros Cantos Populares do Brasil, publicado em 1883, Contos Populares do Brasil, publicado em 1885, Estudos sobre a poesia popular do Brasil, publicado em 1887, entre outros.

    Assim, abriu o caminho no qual se aprofundariam os estudiosos da cultura no século XX, como Gilberto Freyre e Luís da Câmara Cascudo, sendo referência até os dias de hoje devido à vastidão do seu trabalho de investigação das formas tanto eruditas quanto populares de expressão da nacionalidade.

    Profundo conhecedor da alma brasileira, Romero teve a coragem, em plena era do “racismo científico”, de defender a miscigenação étnica como fator positivo de formação e unidade nacionais. Segundo ele, o povo brasileiro seria uma síntese das três raças, formada pelo predomínio e pela direção do elemento português, inaugurador da construção nacional brasileira ainda no século XVI.

    Essa construção nacional, entretanto, ainda estaria por ser feita. Como por ele colocado, “o Brasil é um País ainda em formação; nunca é demais esclarecer o seu futuro”, sendo o ideal a ser perseguido o de “um Brasil autônomo, independente na política e mais ainda na literatura”.

    Alertou, outrossim, contra a pressa e a agitação desmedida na consecução de certos objetivos, em razão das devidas cautela e paciência serem necessárias para o entendimento da realidade, fundamento da ação sobre ela. Ele afirmou: “o interesse imediato, o espírito de vitória pronta, até no sentido mais elevado, é sempre da parte dos combatentes um obstáculo à compreensão calma, um óbice á compreensão nítida dos fenômenos contemporâneos”.

    Em razão disso, tendo sido ferrenho opositor das oligarquias regionais e do federalismo da Constituição de 1891, também o foi de um presidencialismo por ele considerado, erroneamente, exacerbado, e, principalmente, do socialismo. Entendia que deveria haver uma coexistência da unidade política necessária à supressão do caudilhismo, com a descentralização administrativa, conferindo às assembleias provinciais capacidade de direção dos “progressos locais”.

    O agente central dessa construção nacional, segundo Romero, seria o Exército, a única instituição capaz, nas condições próprias ao Brasil, de elaborar uma Constituição “mais de acordo com sua história, suas tradições, suas tendências, seus costumes, sua cultura, seu estado social, suas necessidades, os elementos formativos de suas populações…”. Somente após os militares imergirem as instituições políticas na realidade viva do povo e devolverem o Brasil aos brasileiros, estaria o País preparado para, enfim, poder ser comandado pelas forças civis. A disciplina militar, sem os excessos do militarismo que Romero via, equivocadamente, em Floriano Peixoto, seria, assim, pedagógica.

    Os principais nomes da Escola do Recife não estiveram, contudo, livres de contradições profundas. Em Tobias Barreto, o interesse intelectual pela Alemanha resvalou em um germanismo bastante exótico nas terras quentes brasileiras. Sílvio Romero, por sua vez, não escondia a moldura individualista e evolucionista, à la Herbert Spencer, de muitos dos seus posicionamentos políticos. Isso o levou a rejeitar a ação direta do Estado para resolver os graves problemas sociais e econômicos do Brasil ao fim do período escravagista, justamente quando essa ação era mais necessária, conforme entenderam inclusive liberais como Joaquim Nabuco. Levou-o, também, a tomar, como exemplo positivo, o regime supostamente paraestatal de produção e de trabalho dos EUA. Ignorou, pois, o papel decisivo do poder público estadunidense no desenvolvimento industrial e agrícola desse país, bem como as trágicas consequências sociais, lá, do laissez-faire nas relações entre chefes de indústria e operários, como trabalho infantil, longas jornadas de trabalho e sucessivas greves e motins.

    Apesar desses limites, vários dos problemas e desafios apontados por Tobias Barreto e Sílvio Romero, aqui explanados, permanecem, em essência, na dinâmica política contemporânea em nosso País. A atualidade da Escola do Recife afirma a sua importância para a compreensão das bases e dos fundamentos da Nação, imprescindível para o surgimento de uma coalizão política e para a formulação de um projeto nacional a serviço da soberania, da ordem e do progresso do Brasil brasileiro.

    REFERÊNCIAS:

    História da Literatura Brasileira – Sílvio Romero. Imago, 2001.

    Introdução ao Estudo do Direito: Política Brasileira – Tobias Barreto. Landy, 2001.

    Introdução Crítica à Sociologia Brasileira – Guerreiro Ramos. Andes, 1957.

    Medo à Utopia: O Pensamento Social de Tobias Barreto e Sílvio Romero – Evaristo de Moraes Filho. Nova Fronteira, 1985.

    Nacional por Subtração – Roberto Schwarz. In: As Ideias Fora do Lugar – Roberto Schwarz. Penguin Classics Companhia das Letras, 2014.

    Felipe Maruf Quintas
    Mestre e doutorando em Ciência Política na Universidade Federal Fluminense (UFF).

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    1 COMENTÁRIO

    1. UM ERRO DE EDIÇÃO!
      Na legenda correspondente a Tobias Barreto está inserida uma imagem de Luiz Gama.

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