Resenha Estratégica Vol. 17 | nº 29 | 29 de julho de 2020
Em um editorial publicado em 27 de julho (“Urgência e oportunismo”), o tradicional jornal O Estado de S. Paulo proclamou a apreensão da casta dirigente brasileira com a mera possibilidade de um desvio do Governo Bolsonaro da ortodoxia financeira pró-rentista hegemônica desde a década de 1990, da qual tem sido beneficiária exclusiva.
Como enfatizado nesta Resenha, o sinal de alarme soou com a divulgação do Plano Pró-Brasil, que prevê investimentos públicos em infraestrutura para catalisar a reconstrução econômica, na notória reunião ministerial de 22 de abril. Apesar de o plano ter sido pronta e histericamente rechaçado pelo ministro da Economia Paulo Guedes, a dimensão dos impactos socioeconômicos da pandemia de covid-19 tem ensejado intensas discussões, dentro e fora do Governo, sobre a realidade inescapável da necessidade de aplicação da historicamente consagrada “receita” dos investimentos públicos para o tratamento de uma depressão com a profundidade da atual.
Acima de tudo – e é o que aparenta temer o vetusto “Estadão” –, a pandemia está motivando, inclusive nas nações mais avançadas, uma reapreciação do papel estratégico do Estado nacional na proteção e no fomento das capacidades produtivas das economias, em sintonia com as aspirações e necessidades das respectivas sociedades. Brada o editorial: “O governo de Jair Bolsonaro parece perigosamente enamorado por soluções heterodoxas, digamos assim, para driblar o teto de gastos e tocar programas eleitoralmente vistosos em meio à generalizada escassez de recursos. O último movimento nesse sentido, patrocinado pelo Ministério do Desenvolvimento Regional e pela Casa Civil, foi a elaboração de uma consulta ao Tribunal de Contas da União (TCU) sobre a possibilidade de financiar investimentos em obras de infraestrutura por meio de créditos extraordinários, que estão fora do limite do teto. A justificativa é que tais empreendimentos serviriam para impulsionar a retomada da economia como resposta à crise gerada pela pandemia de covid-19.”
No Brasil, o rentismo improdutivo e parasitário converteu as transações financeiras com a dívida pública no negócio mais “rentável” do País, em detrimento das atividades produtivas que configuram a economia real. Assim, o serviço da dívida tem devorado entre 40-50% do orçamento federal, com as demais rubricas orçamentárias sendo subordinadas a tal prioridade, com exceção das despesas obrigatórias com o funcionalismo, saúde e educação. Daí decorre toda sorte de ardis para um virtual engessamento orçamentário de tudo que seja alheio a esse “Sistema da Dívida”, inclusive, aberrações como a famigerada “Lei do Teto”, aprovada no Governo Temer.
Por isso, o alarme do “Estadão” atinge o topo da escala, com a ultrajante afirmativa: “O teto de gastos é um marco civilizatório. Ao lado da Lei de Responsabilidade Fiscal, estabeleceu que o dinheiro público é finito e deve ser usado com parcimônia, depois de amplo e transparente debate na sociedade, por meio de seus representantes políticos, sobre as reais prioridades do País (grifos nossos).”
As reais prioridades do País estão retratadas nos desastrosos números da economia: queda projetada do PIB (Produto Interno Bruto) da ordem de 6%; perda de 7,8 milhões de postos de trabalho; mais de metade da população em idade de trabalho desocupada; 1,3 milhão de empresas fechadas desde março (522 mil de forma definitiva), sendo 99% delas pequenas empresas com até 49 funcionários; mais de 40% das famílias dependentes da ajuda governamental; indústria operando com uma capacidade ociosa recorde de 30%.
Em grande medida, tal calamidade se deve à indecisão do Governo na ajuda aos setores produtivos, com apenas 17% do volume anunciado de créditos emergenciais efetivamente desembolsados, além do fato de o dinheiro ter sido encaminhado aos bancos e ali permanecido entesourado. Como disse ao UOL (02/07/2020), o insuspeito senador Tasso Jereissati (PSDB-CE): “Não chega o crédito na ponta. Enganchou no banco. São feitas tantas exigências, que grande parte não tem como atender as exigências.”
Em síntese, a preservação do “teto de gastos” e, principalmente, da mentalidade que o justifica, é rigorosamente incompatível com as exigências mínimas da vida civilizada, em um País com o volume de carências do Brasil.
Ao contrário do que afirmam os editorialistas do diário paulistano, a História demonstra com incontáveis exemplos que o rentismo – do qual o “teto de gastos” é um maldisfarçado instrumento – é, este sim, um obstáculo ao avanço civilizatório. Avanço cuja expressão socioeconômica mais notável é uma elevação constante dos níveis de vida das sociedades, proporcionada pelos progressos na aquisição de conhecimento das leis universais e as suas aplicações físicas e tecnológicas, que, juntamente com fatores culturais, éticos e políticos, costumam ser utilizados como indicadores civilizatórios.
Em sociedades comprometidas com o Bem Comum, condicionante imprescindível de evolução civilizatória, o dinheiro deveria ser preservado como meio de troca e a emissão de moeda, fundamentalmente mantida como prerrogativa básica do Estado, com um rigoroso controle da parte deste último sobre as fontes privadas de crédito, para coibir, precisamente, a nefasta “financeirização” da economia das últimas décadas. O controle dessa prerrogativa pelos “mercados”, via bancos centrais, é um dos pilares da “globalização” financeira, cujo resultado principal tem sido um aumento crescente das desigualdades socioeconômicas, dentro da maioria dos países e entre eles. No Brasil, tal distorção se mostra no acintoso contraste entre a depauperada economia real e os lucros recordistas dos bancos, em meio à maior depressão da história nacional, que não tem qualquer perspectiva de superação com a orientação pró-rentista prevalecente.
O registro histórico é incontestável. Nenhum processo civilizatório pode subsistir em um ambiente no qual os rendimentos da especulação financeira sejam superiores aos das atividades produtivas, cujo principal resultado é uma institucionalização dos privilégios de uma casta oligárquica. É isto que defende o editorial do “Estadão”.