Este é o segundo de uma série de artigos de Felipe Quintas sobre os intérpretes do Brasil. O Instituto Bonifácio promoverá, a partir da série, o curso Intérpretes do Brasil, a ser ministrado pelo próprio Felipe Quintas.
Irineu Evangelista de Sousa (Arroio Grande-RS, 28 de dezembro de 1813 – Petrópolis-RJ – 21 de outubro de 1889) o Visconde de Mauá, notabilizou-se por ter sido um dos maiores empresários brasileiros e sul-americanos de todos os tempos. Tendo desempenhado papel tanto de banqueiro quanto de industrial, ele inaugurou, no Brasil, a articulação banco-indústria – característica do desenvolvimento econômico da Alemanha e da Escandinávia – de modo a sustentar a industrialização nacional com recursos internos. Notável abolicionista, Mauá tornou-se pioneiro da industrialização no Brasil, país ainda largamente escravista, latifundiário e primário-exportador.
Suas atividades foram favorecidas por uma série de iniciativas governamentais, como o protecionismo alfandegário da tarifa Alves Branco, de 1844; o fechamento da navegação do Rio Amazonas a estrangeiros, dando às embarcações de Mauá o virtual monopólio; proibição do tráfico negreiro em 1850, que propiciou a liberação de recursos financeiros para a produção; a política de compras e contratos governamentais promovida pelos gabinetes imperiais nas décadas de 1850 e 1860. A parceria Estado-setor privado nacional, ainda que breve, permitiu ao Brasil, já no século XIX, avançar a passos largos no sentido da construção de uma economia dinâmica e moderna.
Mauá edificou, em 1846, o mais importante empreendimento industrial no Brasil e da América do Sul, o estabelecimento da Ponta da Areia, em Niterói. Com cerca de 1000 funcionários ao fim do seu primeiro ano, a Ponta da Areia continha as seguintes atividades: “fundição de ferro, de bronze, mecânica, ferraria, serralheria, caldeiraria de ferro, construção naval, modeladores, aparelhos, velames e galvanismo. Lá se construíram tubos para encanamentos d’água, caldeiras para máquina de vapor, engenhos de açúcar e de serras, guindastes, prensas, galgas para fábrica de pólvora, molinetes e outras obras mais, além de 72 navios, entre os quais 15 para a marinha de guerra nacional, quer prestaram relevante serviços na Guerra do Paraguai” (Lima, 1976, p. 20).
Mauá também introduziu no Brasil as ferrovias, o telégrafo submarino, a iluminação pública e o transporte urbano por bondes. O Banco Mauá, Mac Gregor & Cia., fundado em 1854, era o centro financeiro da América meridional e um dos maiores do mundo na época, tendo levantado o capital para tais empreendimentos. Tinha filiais nacionais do Rio Grande do Sul ao Pará, e filiais estrangeiras na Argentina, no Uruguai, na Inglaterra, na França e nos EUA. Sua fama era tão grande que a personagem Mr. Foggs, herói do célebre livro A Volta ao Mundo em 80 Dias, do autor francês Júlio Verne, tinha uma conta corrente no banco de Mauá.
Uma dimensão menos conhecida de Mauá foi a de intérprete do Brasil, pensador do industrialismo em nosso País e formulador de uma teoria monetária autenticamente brasileira, voltada a fornecer os meios necessários à decolagem industrial, tendo como ponto de partida a integridade do seu imenso território, considerado por ele patrimônio nacional.
Sua atuação como empresário a serviço do Brasil lhe permitiu conhecer e elaborar os fundamentos de uma economia política nacional, ajustada à realidade pátria. Na mesma linha do economista alemão Friedrich List e dos formuladores do chamado “Sistema Americano de Economia Política”, ele não concebia esse ramo do conhecimento como sendo cosmopolita e aplicável a todos os contextos indistintamente, mas variável conforme as circunstâncias naturais e sociais de cada Nação.
Ele compreendeu a inconveniência, para um país jovem e atrasado como o Brasil, de adotar o livre-cambismo e o padrão-ouro, proposto pela Grã-Bretanha e seus agentes políticos, comerciais-financeiros e intelectuais, que gozavam de ampla aceitação na época.
Referia-se a esses postulados quando afirmou, em artigo denominado “Questões econômicas – A situação monetária do Brasil”, publicado em 1878 e republicado no livro “3 Industrialistas Brasileiros: Mauá-Rui Barbosa-Simonsen”, de Heitor Ferreira Lima, de 1976: “cumpre estar prevenido contra certas ideias apregoadas com dogmática severidade por parte de doutrinários inflexíveis, as quais nem sempre são aplicáveis a países onde as causas que determinam certos fenômenos são diversas, e portanto, o regime aconselhado como salvador de altos interesses, para uns daria em resultado ficarem estes seriamente comprometidos em outros, se o bom senso nacional não repelisse o presente grego, que os chamados mestres da ciência lhe querem impor” (Mauá, 1976 [1878], p. 38).
Mauá também registrou, várias décadas antes de Keynes, que eram os governos, ao emitirem notas bancárias e papel-moeda para além das reservas metálicas dos seus países, quem resgatavam seus países das crises econômicas geradas pelo livre-cambismo e pelo padrão-ouro. Ele também atribui a vitória do Brasil sobre o Paraguai à emissão de papel-moeda. Caberia, então, o estabelecimento de uma regulação permanente da moeda pelo poder público a fim de evitar essas crises e gerar prosperidade contínua. Como ele afirmou: “Aos que têm responsabilidade de dirigir as forças vivas do país, na governação do Estado, cumpre estudar os meios de vencer as dificuldades, promovendo com os nossos próprios recursos a criação a riqueza” (ibid: p. 49). O dinheiro e as finanças seriam, portanto, questões políticas.
Ele defendeu, então, a organização de um sistema financeiro nacional, capaz de prover o Brasil de uma moeda própria e inconversível, ampliando seu volume circulante e criando crédito para financiar a industrialização e fazer surgir novas e mais complexas firmas. Como, em sua concepção e contrariamente ao instituído pelo padrão-ouro, dispositivo da hegemonia britânica, o valor da moeda não seria medido em ouro e prata, mas pelo balanço entre oferta e demanda, o aumento da produção industrial autóctone seria condição necessária para fortalecer a moeda, bem como produzir saldo positivo no balanço de pagamentos.
Assim, e considerando a extensão do território brasileiro e a laboriosidade do seu povo, riquezas verdadeiras pelas quais se poderia alavancar a indústria nacional, o País não deveria subordinar a emissão da sua própria moeda às reservas de ouro e prata disponíveis, mas fazer circular tanto papel-moeda quanto fosse preciso para sustentar o seu desenvolvimento em todo o seu território.
Em suas palavras: “Trata-se de utilizar em maior escala o único instrumento de permuta que possuímos; de estimular a produção, e um dos elementos essenciais para o conseguir é a facilidade da transmissão dos valores” (ibid: p. 51).
Dessa maneira, o Brasil obteria, por conta própria, os recursos monetários de que carecia para aperfeiçoar suas forças produtivas, sem contrair empréstimos externos, que Mauá entendia serem nocivos ao País. Apenas o trabalho nacional, pago em moeda própria, poderia gerar riqueza; a importação de metais, ao contrário, subsidiaria os importadores e imporia perdas ao País. A soberania monetária e financeira seria uma das dimensões mais importantes da soberania nacional, sem a qual não haveria verdadeiro desenvolvimento.
Em suas palavras: “Nem para esse fim (importação de metais para sanear déficits), nem para outro qualquer, reconhecemos a conveniência de empréstimos externos, enquanto as circunstâncias econômicas do país não determinarem a certeza da conservação entre nós durante um longo prazo do capital por essa forma obtido. O ingresso de capital estrangeiro que se conseguir pelo uso de crédito nacional, nas atuais circunstâncias, importa, quando muito, oferecer ao comércio de importação um prêmio elevado, e dele se aproveita com avidez, conhecendo perfeitamente que é temporário o gozo de tão assinalado benefício. Em seguida o país tem de pagar, desde logo, os juros, e gradualmente uma cifra por conta do capital, aumentando com cada uma dessas operações o desequilíbrio; isto é, essa operação dá em resultado pura perda para o nosso Brasil!” (ibid: p. 48).
Ainda que tenha enfatizado a indústria como motor do progresso e campo preferencial da sua atuação, não deixou de reconhecer a importância da agricultura, tendo recomendado a instituição da letra hipotecária lastreada nos títulos da dívida pública do Brasil, a fim de levantar mais recursos para financiar esse setor.
Ao elaborar uma teoria monetária ajustada à realidade e aos potenciais do Brasil, Mauá, de muitas maneiras, antecipou o keynesianismo e a Teoria das Finanças Funcionais do economista russo-britânico Abba Lerner (1903-1982). Segundo essa última, de maneira muito semelhante ao preconizado por Mauá, a política monetária de um País deve ser soberana – isto é, ele deve emitir a sua própria moeda -, para que seja independente de restrições orçamentárias, podendo, então, ser funcional à consecução de metas coletivas e sociais como o pleno emprego e o desenvolvimento.
Não admira que Mauá, ao pensar o Brasil fora dos parâmetros neocoloniais e escravistas e agido no sentido de desenvolver soberanamente as forças produtivas e as finanças do Brasil, tenha acumulado desafetos no Estado, na sociedade e no exterior, sobretudo na Inglaterra, cujos interesses eram ameaçados pela ação criadora de Mauá. Sabotado de vários lados, sua obra empresarial foi arrasada e ele foi colocado de joelhos ante os credores ingleses.
Em 1857, o estabelecimento da Ponta da Areia foi completamente destruído por um incêndio que, ao que tudo indica, foi criminoso, ordenado por mãos estrangeiras. Em 1860, a tarifa Silva Ferraz, substituinte da tarifa Alves Branco, anulou o protecionismo anterior e instaurou um regime comercial e financeiro de cunho liberal, favorecendo a importação de navios e prejudicando, dessa forma, as empresas ainda nascentes de Mauá. A abertura do Rio Amazonas à navegação estrangeira, em 1866, encerrou de vez a reserva de mercado que Mauá dispunha no setor naval. Segundo a Princesa Isabel, em carta de 11 de agosto de 1889 endereçada ao Visconde de Santa Vitória, sócio de Mauá, que a quebra do Banco Mauá, sacramentada em 1878, havia sido “tecida pelos ingleses de forma desonesta e corrupta”[1].
O pioneirismo e a visão de Mauá, contudo, permanecem vivos na memória nacional como um chamado à emancipação e ao desenvolvimento do Brasil, para que seu imenso patrimônio humano, territorial e natural seja a base para a Independência completa do nosso País, ainda por ser alcançada.
Referências e recomendações de leitura:
. Mauá: Empresário do Império. Autor: Jorge Caldeira. Companhia das Letras, 1995.
. Industrialistas Brasileiros: Mauá-Rui Barbosa-Simonsen. Autor: Heitor Ferreira Lima. Alfa-Ômega, 1976.
. História do Pensamento Econômico no Brasil. Autor: Heitor Ferreira Lima. Companhia Editora Nacional, 1976.
[1] A carta encontra-se em http://consulta.camara-arq.sp.gov.br/arquivo?Id=221915
Excelente artigo. Felipe Quintas sempre consegue entender o contexto histórico e procura nestes contextos encontrar caminhos para avançarmos para o futuro com os aprendizados do passado. Felipe Quintas tem uma verve desenvolvimentista nata, entende e enxerga a grandeza de nosso país, reconhece o valor do povo brasileiro e nos instiga a procurar conhecer o país que possuímos. O Brasil ?? é o país mais rico do mundo. Resta ao povo brasileiro descobrir e se descobrir neste país, pois o Brasil ?? que queremos a mídia esconde do povo brasileiro, em uma intensa campanha, dia após dia, e Felipe Quintas nos mostra que estamos deitados em berço esplêndido ! Salve o Brasil ??! Salve o Felipe Quintas !
Ótima resenha!
A soberania monetária propugnada por Mauá precisa ser resgatada por meio de uma nova política econômica que se aplique à emancipação da camisa de força orçamentária imposta ao país.
O Estado brasileiro precisa reativar seu direito de emitir moeda, hoje sequestrado pela dívida pública que paga aos bancos, vinculando-o a projetos públicos e privados de interesse nacional.