Resenha Estratégica – Vol.17 – nº 15 – Abril/2020.
Lorenzo Carrasco e Geraldo Lino
O Brasil “oficial” cavalgava a todo galope sobre as planícies de uma certeza cega, segundo a qual o desmonte do Estado nacional sob o rótulo mágico das “reformas estruturais” levaria o País a uma nova era de ordem e progresso, deixando para trás anos de depressão econômica e desemprego. À frente da carga, por concessão do titular da Presidência da República, o “superministro” da Economia Paulo Guedes, ainda no início da pandemia, ostentava a bandeira de que o País estava “pronto para decolar” rumo aos píncaros do Olimpo da globalização. De súbito, ele, até então tido como o gênio estrategista que levaria o Brasil à trilha da modernidade e do progresso, viu-se, juntamente com todos os seus fieis escudeiros, lançado ao chão duro e frio de uma realidade para a qual não têm qualquer preparo e qualificação para enfrentar.
Isso ficou demonstrado com o anúncio do Plano Pró-Brasil, pelo ministro-chefe da Casa Civil, general Walter Braga Netto, cuja intenção clara é a de assegurar a retomada dos rumos da economia nacional pelo Estado brasileiro, revertendo uma tendência prevalecente desde a presidência de Fernando Henrique Cardoso. O que está sendo chamado de “Plano Marshall brasileiro” contempla um horizonte de pelo menos dez anos, o que significa um programa de Estado, que transcende um mero programa de governo.
Se tal necessidade já era evidente, a crise do coronavírus escancarou a urgência de uma drástica revisão nos privilégios concedidos à alta finança para influenciar a formulação das políticas públicas de acordo com os seus interesses exclusivistas, com o apoio da mídia especializada, parte da academia e de uma classe política facilmente cooptada. Uma perniciosa simbiose que tem ignorado os interesses e as necessidades básicas da esmagadora maioria da população brasileira, inclusive, as suas carências de saúde pública e saneamento, de enorme potencial de agravamento dos efeitos da pandemia.
Uma simples comparação dos lucros dos maiores bancos – Itaú, Bradesco, Brasil e Santander – com o desempenho geral da economia, é suficiente para demonstrar a extensão desses privilégios. Entre 2015 e 2019, enquanto o País experimentava a maior depressão da sua história, com o Produto Interno Bruto (PIB) recuando aos níveis de 2013, acumulando uma retração de 3%, os “quatro grandes” da banca tiveram lucros recordistas de 38,7%. Não é preciso ser economista para se intuir que há algo profundamente errado nesse contraste.
Uma medida fundamental para tal enquadramento será a retomada do controle do Banco Central pelo Estado, retirando-o das garras do sistema financeiro, regra geral desde a década de 1990, afastando de vez a pretendida “independência” do órgão e devolvendo ao Estado a prerrogativa de elaborar uma política monetária orientada para o fomento da economia real e das necessidades da sociedade.
Mais que o Plano Marshall original, com o qual os EUA apoiaram a reconstrução da Europa no pós-guerra, uma referência histórica melhor é o New Deal do presidente Franklin Roosevelt. Ao assumir o governo dos EUA, em 1933, no auge da Grande Depressão gerada pela quebra da Bolsa de Valores de Nova York, em 1929, Roosevelt encontrou a indústria às voltas com uma queda de produção de 50%, uma queda de 60% nos preços agrícolas, um quarto da força de trabalho sem emprego e 2 milhões de pessoas desabrigadas. Para enfrentar o problema, colocou em prática um vasto programa de investimentos e gastos públicos em numerosas áreas, especialmente, infraestrutura e serviços úteis, coordenado por uma série de agências novas e outras existentes. Um aspecto crucial do plano foi uma série de medidas de regulamentação do sistema bancário, como a Lei Glass-Steagall, que separava os bancos comerciais dos de investimento e coibia a especulação com os depósitos dos correntistas, e o enquadramento do Sistema da Reserva Federal, o poderoso banco central privado e independente criado em 1913, que atuava exclusivamente em favor da alta finança.
Para enquadrar o “Fed”, Roosevelt recrutou um quase desconhecido banqueiro e empresário de Utah, Marriner Eccles, que propunha a então “herética” ideia de aumentar os gastos públicos para colocar mais dinheiro nas mãos dos consumidores, estimular os negócios e iniciar um ciclo de recuperação, em vez de salvar apenas os bancos. Em uma época em que a economia era considerada como um “fenômeno natural”, sobre o qual a intervenção humana seria inútil, Eccles propunha que o governo colocasse as massas de desempregados para trabalhar, não apenas por motivos humanitários, mas também como maneira de estimular gastos e negócios. Guindado à presidência do “Fed”, em 1934, Eccles promoveu uma importante reforma no banco, que passou a atuar em sintonia com o Departamento do Tesouro, praticando uma política monetária condizente com a agenda do governo federal, e não apenas com os interesses de Wall Street.
O New Deal não reverteu totalmente os efeitos da depressão, o que só foi possível com a grande mobilização econômica para a II Guerra Mundial, mas esta teria sido muito mais difícil sem a recuperação iniciada pelo plano. Durante o conflito, a atuação do banco central foi igualmente fundamental, tendo Eccles servido na presidência até 1948, permanecendo até 1951 no conselho de administração.
Possivelmente, a grande lição da crise do coronavírus será a fundamental ideia-força de que os governos devem servir ao conjunto da sociedade, e não apenas ao proverbial 1% do topo da pirâmide socioeconômica.
Um banco central alinhado com uma agenda de desenvolvimento, representando um espectro mais amplo de agentes econômicos, e não apenas o setor financeiro, capaz de mobilizar recursos públicos e privados em favor dessa agenda, constitui um requisito imprescindível para o período pós-pandemia.
Ao contrário de Paulo de Tarso, com a sua proverbial conversão após a queda do cavalo na estrada de Damasco, Paulo Guedes e sua coorte de fundamentalistas de mercado não demonstram disposição para qualquer mudança, como ficou evidenciado com as suas reações juvenis diante do fato de sequer terem sido consultados para o anúncio do Plano Pró-Brasil. Permanecem desmontados e cegos, diante da nova realidade imposta ao País e ao mundo, na qual os Estados nacionais estão reassumindo os papeis que nunca deveriam ter “terceirizado” aos mercados.