Euclides da Cunha (1866-1909), renomado escritor brasileiro, também contribuiu de maneira significativa para a formulação de uma geopolítica brasileira centrada na Amazônia.
Tendo sido nomeado, em 1904, chefe da comissão mista brasileiro-peruana de reconhecimento do Alto Purus, adquiriu, a partir dessa experiência, profundos conhecimentos sobre a realidade natural e social e as potencialidades de desenvolvimento da região.
Formado em Engenharia Militar pela Escola Militar da Praia Vermelha, a visão social e política de Euclides para a Amazônia e para qualquer outro aspecto brasileiro caracterizou-se por um profundo apego ao Brasil e por um senso refinado de estratégia de integração nacional a ser dirigida pelo Estado. Suas reflexões e orientações permanecem atuais, principalmente em tempos em que a hegemonia liberal e a concepção perniciosa de “Estado mínimo” põem em perigo a integridade da Nação e as conquistas econômicas e sociais do Povo brasileiro.
“A geografia prefigura a História”. Essa fórmula, apresentada por Euclides da Cunha no ensaio O Primado do Pacífico, afirma, muito sucintamente, que a ação transformadora do ser humano só pode transcorrer na base física do espaço que a precede e que enquadra o seu campo objetivo de possibilidades.
O espaço é, portanto, prenhe de possibilidades de intervenção humana, cabendo à ação política nortear o enquadramento socioeconômico do espaço.
Com base nessas considerações gerais, Euclides, em ensaios específicos sobre a Amazônia reunidos no livro póstumo À Margem da História[1] (1909), propugna ser a Amazônia uma terra sem História. Nessa região, a abundância de espaço físico não teria sido preenchida pela presença significativa de sociedades humanas, condição sine qua non do desenrolar das relações históricas. O “maior quadro da Terra”, como Euclides define a Amazônia, é, apesar do seu gigantismo, naturalmente hostil ao ser humano.
O contato atribulado das águas com a terra gera não apenas uma suntuosa e frágil biomassa, mas também o deslocamento de grandes massas terrestres em direção ao Atlântico. O Rio Amazonas, sendo o colosso de que se ufanam os brasileiros é, para esse autor, o menos brasileiro dos rios, e por ele é escoada a solidez terrena rumo a latitudes distantes, apenas onde se acumulará. Um rio de natureza “entreguista”, por assim dizer, cuja vocação dissipadora obsta o assentamento humano na Amazônia ao negar ao homem a estabilidade necessária ao estabelecimento do povoamento fixo.
Como ele afirma, na Amazônia, toda verdade desfecha em hipérbole. São hiperbólicas a imensidão física e os obstáculos nela encontrados à instalação humana. A opulência natural, que tanto maravilha os viajantes forâneos e alimenta a imaginação poética dos românticos de alhures, manifesta-se concretamente na inconstância desértica da planície verde, alagada e tórrida de uma natureza rebelde que dificulta ao máximo a ocupação humana e afugenta as pessoas, intrusas no Éden indomável. A “natureza soberana brutal” é, enfim, “uma adversária do homem”. Não a natureza vítima do ser humano, como defendem muitos ambientalistas românticos, mas o inverso.
Esse problema situa a questão de como e para que finalidade domar a Amazônia. Objeto de deslumbramento na “civilização distante”, isto é, nas potências norte-atlânticas, a Amazônia, como Euclides bem sabia, já era, desde muito antes dele, alvo da cobiça externa. Contudo, a quimera desses países, de incorporar à sua própria Pátria a “terra sem pátria” amazônica, despovoada e instável, onde a territorialidade brasileira não passa de formalidade jurídica, é, contudo, frustrada pela própria selvageria do meio inóspito.
O esparso povoamento se dá, então, de forma heroica, em esforços hercúleos de domesticação da floresta. Não pelo homem polido pelas luzes da civilização metropolitana, incapaz de suportar as agruras de uma natureza tão discrepante da sua sensibilidade refinada. Mas, sim, pelas populações bravias e vigorosas de proveniência nordestina que migram para o deserto amazônico em condições precaríssimas, muitas vezes em períodos de secas e sob as ordens dos poderes públicos.
Esses últimos, zelosos apenas do deslocamento rumo aos sertões amazônicos, eram, segundo a denúncia de Euclides, indiferentes às carências e aflições dessas pessoas uma vez que chegavam ao seu destino. Esse contingente humano, não encontrando um solo firme e auspicioso em razão da dinâmica natural das águas, era tão nômade quanto a terra dissipada pelos rios. A região, pois, não alcançava uma densidade demográfica compatível com o estabelecimento de relações históricas.
A principal atividade produtiva, a da extração de látex dos cauchos e seringueiras, caracterizava-se pelo isolamento e pela escravização do trabalhador. A “mais imperfeita organização do trabalho que ainda engenhou o egoísmo humano” (p. 93) chocou Euclides pelos impactos sociais nefastos: a alimentação deficiente, a saúde arruinada, o isolamento e a solidão em meio à floresta devoradora.
Não admira que, nesse ambiente de extrema rarefação populacional e de relações despóticas de trabalho, as leis não existam e o único meio de resolver impasses e conflitos seja o rifle. A força da lei não existe, o que impera é a lei da força. Euclides denuncia a violência e a arbitrariedade dos modos de convivência prevalecentes na Amazônia, distanciando-se, mais uma vez, de concepções românticas que idealizam a existência humana apartada das comodidades da civilização industrial e urbana.
Apesar do seu caráter desordenado e socialmente degradante, o autor não deixa de salientar que a ocupação amazônica se deu, em geral, pelo homem brasileiro, garantindo a brasilidade do território mesmo na precariedade da presença do Estado e das ligações com o restante do Brasil. Apesar de todas as dificuldades, ocorreu um progressivo povoamento, onde a extraordinária força dos tipos humanos triunfou sobre as adversidades do meio.
Para Euclides, no entanto, apenas a tenacidade humana não bastava para promover a defesa e o desenvolvimento da região e a dignidade das populações ali vivendo. Era preciso que o Estado brasileiro se fizesse presente na Amazônia para proteger o território, incrementar o padrão material e moral de vida e fazer surgir novas e maiores oportunidades de empreendimentos.
Fazia-se mister que o Estado assumisse o pioneirismo de incorporar a terra sem história à história brasileira. Foi desenhada, desse modo, uma verdadeira geopolítica amazônica, com a definição das políticas a serem adotadas no chão geográfico da região para fazer da jurisdição territorial brasileira não apenas um direito, mas, também, um fato. Nesse aspecto em particular, pode-se verificar a influência do positivismo militar na visão de Euclides, amoldando toda uma disposição para a construção da Nação brasileira por meio de um Estado compatível com a grandeza e as potencialidades do Brasil.
Para Euclides, os esforços de penetração e ocupação na Amazônia deveriam ser estimulados e orientados pelo Estado por meio da construção de ferrovias e hidrovias. Os esforços parcelados e dispersos por forças privadas não eram suficientes nem eficientes, pois apenas o Estado, por meio dos engenheiros militares e do conhecimento técnico de engenharia produzido nas academias militares, possuía condições de integrar e desenvolver de fato a região.
Caberia ao Estado a tarefa de mobilizar a engenharia militar nacional para realizar o desbravamento e a domesticação da natureza selvagem para que as populações amazônicas se assenhoreassem da natureza em vez de permanecerem sob seu jugo. A engenharia militar brasileira, que Euclides conhecia de dentro, cumpriria assim o papel de civilizar a Amazônia e abri-la à história.
Segundo o autor, em vista das amplíssimas dimensões do espaço amazônico, a escala dos desafios colocados à engenharia brasileira na região não encontraria paralelo nos países industrializados do continente europeu. Por conseguinte, seriam necessárias “obras faraônicas”, por assim dizer, para facilitar os transportes, as comunicações, o povoamento e a geração de riquezas em uma região naturalmente “faraônica”.
Tais empreendimentos de infraestrutura, “sob a ação imediata do Governo, e entregues desde a exploração definitiva à nossa engenharia militar” (p. 172), deveriam ser realizados “com os recursos das próprias rendas locais” (p. 173), ou seja, de maneira autocentrada, evitando o endividamento externo ou com o setor financeiro do Sudeste. Dessa maneira, romper-se-iam os vínculos de subordinação econômica a outras regiões e países, vínculos esses que mantinham, e ainda mantêm, a Amazônia em estado bruto e pauperizado.
Ressalte-se, dentre as obras recomendadas por Euclides: a construção de diques e reservatórios para tornar navegável o rio Purus, retirando-o do abandono em que se encontrava e aproveitando seu leito para torná-lo “uma das mais arrojadas linhas da nossa expansão histórica” (p. 82), de modo a converter esse rio em um dos principais fatores do progresso nacional; a ferrovia Transacreana, ligando Cruzeiro do Sul a Rio Branco, para consolidar a presença do Estado brasileiro no recém-incorporado Acre, defendê-lo, fomentar seu povoamento e as atividades produtivas e equilibrar as relações diplomáticas e militares com o Peru.
Segundo Euclides, o Estado também deveria zelar, com urgência, pelo bem estar e pela dignidade dos trabalhadores amazônicos, seringueiros em grande parte. O autor propõe a criação de leis trabalhistas, de um Judiciário que os protegesse do abuso dos seus chefes, e de uma reforma agrária que democratizasse o acesso à terra, fixasse nela as populações e favorecesse um maior povoamento. Ele desenha, assim, um conjunto abrangente de políticas para dignificar as relações sociais na Amazônia e abolir a exploração e a servidão predominantes.
Para Euclides, portanto, a ação criadora e benfazeja do Estado, com protagonismo do Exército, seria a responsável pelos melhoramentos físicos e sociais necessários à integração e ao desenvolvimento da região. Somente o Estado pode engendrar o progresso da Amazônia brasileira e de todo o Brasil. Desse modo, a terra sem História passaria a ser preenchida pela História, no bojo da nacionalidade brasileira.
A produção intelectual de Euclides da Cunha sobre a Amazônia, fundamentada em experiência política da maior importância para a delimitação dos contornos territoriais do nosso País, insere-a no centro da Questão Nacional. A Amazônia brasileira é indissoluvelmente ligada ao Brasil, compondo a comunidade de destino brasílica. Por isso, o autor propõe soluções brasileiras para os problemas amazônicos, porquanto esses são brasileiros. São nítidas as digitais de Euclides nas políticas de cunho nacional-desenvolvimentistas na Amazônia adotadas na Era Vargas e no regime militar.
A entrada em cena da Amazônia na História, pela atuação integradora e desenvolvimentista do Estado e particularmente das Forças Armadas, significa o fim do estatuto colonial de desarticulação entre as regiões e do abandono da continentalidade brasileira. Significa, portanto, a elevação histórica de todo o Brasil.
A obra de Euclides é, assim, uma convocação de todos os setores nacionais, especialmente as Forças Armadas, para o cumprimento da missão patriótica de integrar e desenvolver a Amazônia, a fim de torná-la um dos principais eixos dinâmicos da construção da Nação e da Civilização brasileiras.
[1] Utiliza-se, nesse artigo, a edição de 2019 publicada
pela Editora UNESP. O ensaio O Primado do
Pacífico está nela contido.
Excelente artigo. É espantoso como o Império se preocupa com uma boa interligação entre os oceanos Atlântico e Pacífico seja por meio de ferrovias ou rodovias, sempre procuram impedir. Seria interessante um artigo acerca do sucateamento coordenado das ferrovias brasileiras nos anos 90, seja da Rede Ferroviária Federal seja a FEPASA em SP. As antigas estações se transformaram em vazios centros “culturais” ou abrigo de moradores de rua e usuários de drogas. Outro assunto que me intriga e nunca se soube de onde veio a ordem foi o fechamento pelo golpe de 1964 da Pan Air do Brasil e da TV Excelsior, seria interessante mais pesquisas sobre este tema. Desconfio que a ordem veio do Norte….