O cenário político-econômico brasileiro tem sido marcado por uma persistente crise fiscal, na qual a necessidade de equilibrar as contas públicas colide com intensas disputas políticas e interesses eleitorais. A recente controvérsia em torno do decreto governamental que visava aumentar o Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) para cumprir metas de arrecadação, e sua subsequente derrubada pelo Congresso Nacional, é um sintoma claro dessa complexidade.
O governo, enfrentando o desafio de cumprir as metas fiscais e evitar novos cortes em programas sociais, buscou na elevação do IOF uma via para aumentar a arrecadação tributária. O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, havia alertado que o problema fiscal é “estrutural” e que a solução não viria de “remendos em cima de remendos”, mas acabou propondo justamente um aumento da carga tributária. Medidas recentes do governo Lula incluíram elevações de IOF sobre cartões de crédito, débito e pré-pagos internacionais, além de cheques de viagem.
No entanto, essa tentativa de ajuste pela receita encontrou forte resistência no Congresso. Um Projeto de Decreto Legislativo (PDL) foi aprovado, derrubando os aumentos do IOF. A decisão do governo de levar o caso ao Supremo Tribunal Federal (STF) demonstra a profundidade do impasse e a disposição de lutar por essa fonte de receita, considerada essencial para o equilíbrio fiscal. Haddad, embora crente que a Medida Provisória (MP) alternativa ao IOF não seria devolvida pelo Congresso, viu a oposição se articular para inviabilizar a medida.
A postura do governo de recusar “passar o facão nas despesas públicas” por temer perder voto popular, especialmente em programas como o Bolsa Família e o Benefício de Prestação Continuada (BPC), é um ponto central da disputa. Cláudio Adilson Gonçalvez em “É preciso seriedade no debate sobre ajuste fiscal” (Estadão, 23/6/2025) mostra que, nos últimos 16 anos, as transferências sociais e os benefícios previdenciários foram os principais responsáveis pelo aumento dos gastos primários como proporção do PIB. Isso coloca o governo em uma encruzilhada: aumentar impostos (politicamente impopular) ou cortar gastos sociais (também impopular e com impacto social).
Subjacente à disputa em torno do ajuste fiscal, há uma clara aproximação das eleições presidenciais de 2026 e o desejo da oposição de enfraquecer o governo. A “ofensiva de partidos contra Haddad” é vista nos bastidores como um “aquecimento” para a guerra eleitoral de 2026. Partidos como a federação União-PP, mesmo com ministérios no governo, têm se posicionado contra as medidas fiscais, buscando construir um discurso de campanha que combine “irresponsabilidade fiscal com aumento de impostos”.
Celso Ming, em “Pacote e risco político” (Estadão,13/6/2025) descreve o jogo político como uma “demonstração de fragilidade de um ator político provoca o aumento de ataques dos seus oponentes com o objetivo de desestabilizá-lo de uma vez”. A “lenga-lenga com esse pacote”, a insistência em basear o ajuste no aumento de impostos e a recusa do governo em reduzir despesas já começam a produzir “enorme desaprovação entre as classes médias e os outros segmentos formadores de opinião”.
A oposição, ciente dessa fragilidade, redobra seus esforços para inviabilizar o governo e sua reeleição. O Planalto, por sua vez, tenta “dobrar a aposta” e incluir a classe média em uma estratégia para “isolar os BBBs (‘Bilionários, Bancos e Bets’)”, argumentando serem esses grupos privilegiados resistentes em dividir a conta. Essa tática, que envolve a divulgação de vídeos de IA pelo PT para defender a taxação dos mais ricos, busca transferir a responsabilidade pela necessidade de aumento de impostos para a oposição e para os setores mais abastados da sociedade.
O instrumento das emendas obrigatórias, introduzido nos governos da Presidente Dilma Rousseff e consolidado no governo Bolsonaro, transformou profundamente a dinâmica orçamentária e a relação entre Executivo e Legislativo. Sérgio Abranches, em “Temos um Congresso disfuncional” (Valor Econômico 23/6/2925), aponta que o Brasil vive uma “transferência de poder orçamentário do Executivo para o Legislativo”.
Essa mudança, que garante aos parlamentares a prerrogativa de alocar parte do orçamento para suas bases eleitorais, aumentou significativamente o poder do Congresso sobre a execução orçamentária e reduziu drasticamente a dependência dos parlamentares em relação ao Executivo para cultivar suas bases eleitorais com recursos públicos por meio de emendas. Com quase R$ 50 bilhões de emendas previstas para o próximo ano, a maioria dos deputados dispõe de muito mais recursos do que necessitaria para manter a fidelidade de seus eleitores em suas bases eleitorais.
A obrigatoriedade das emendas e sobretudo seu avultado valor que cresceu mais de 200% nos últimos dois ou três anos e hoje corresponde a cerca de ¼ de todas as despesas discricionárias do governo subverteu completamente o “presidencialismo de coalização” que bem ou mal vinha funcionando desde 1988, a ponto de o ex-presidente Bolsonaro ter afirmado no comício que realizou em São Paulo em 02 de julho que “nós temos como resolver o Brasil. Permitam-me repetir, deem-me 50% da Câmara e 50% do Senado que eu mudo o destino do Brasil e digo mais: nem eu preciso ser presidente”.
Essa “disfuncionalidade” do Congresso, segundo Abranches, reside no fato de que, embora os parlamentares tenham mais poder sobre o orçamento, isso não necessariamente se traduz em maior responsabilidade fiscal ou em uma visão de longo prazo para o país. Pelo contrário, as emendas obrigatórias podem fragmentar o orçamento, dificultar o planejamento centralizado e tornar o ajuste fiscal ainda mais complexo, pois qualquer corte de despesa pode ser visto como uma afronta direta aos interesses dos parlamentares e suas bases.
Maílson da Nóbrega, em “País beira colapso que pode gerar crise fiscal” (UOL, 26/6/2025), projeta um cenário complicado após derrotas no Congresso, como a derrubada das regras do IOF, que demonstram a dificuldade do governo em impor sua agenda fiscal. Celso Ming, em “O emperramento do ajuste fiscal” (Estadão, 12/6/2025) reforça a ideia de que o País “descamba rapidamente para a ingovernabilidade”.
A resistência do Congresso a qualquer “retirada de indefensáveis privilégios tributários” deixa claro que o ajuste fiscal “vai muito além do desejo de quem estiver ocupando a cadeira de presidente da República”. A narrativa de que a carga tributária no Brasil é “alta demais” e que “o povo” não aguenta mais aumentos de impostos é frequentemente utilizada como desculpa para não se fazer nenhum tipo de correção na estrutura tributária do país, altamente regressiva e enviesada a favor dos mais ricos.
Cláudio Adilson Gonçalez, em “É preciso seriedade no debate sobre ajuste fiscal” (Estadão 23/6/2025), argumenta que a carga tributária, como proporção do PIB, é alta porque o Brasil optou por um sistema de saúde gratuito e universal, educação pública gratuita e programas de transferência de renda. “Como não há almoço grátis, isso tem de ser financiado por tributos e/ou por aumento da dívida pública.”
O problema central, segundo a análise, não é apenas o volume da arrecadação, mas a estrutura regressiva do sistema tributário brasileiro, que é enviesada contra os mais pobres. Isso significa que a maior parte da arrecadação provém de impostos sobre o consumo e a produção, que afetam proporcionalmente mais a renda das camadas de menor poder aquisitivo, enquanto a tributação sobre renda, patrimônio e grandes fortunas é comparativamente baixa ou cheia de isenções.
A “forte resistência do Congresso Nacional a qualquer retirada de indefensáveis privilégios tributários” é um obstáculo fundamental para uma reforma tributária que corrija essa regressividade. Setores específicos da economia e grupos de interesse com forte poder de lobby no Congresso se beneficiam do sistema atual e resistem a qualquer mudança que possa afetar seus privilégios. A discussão sobre o ajuste fiscal, portanto, não é meramente técnica, mas profundamente política, envolvendo a distribuição de custos e benefícios na sociedade.
Conclusão: A crise fiscal no Brasil é um nó complexo que entrelaça a necessidade de ajuste econômico com a dinâmica política eleitoral e as características estruturais do sistema de governança. A disputa em torno do IOF é um reflexo da dificuldade do governo em implementar medidas de aumento de receita sem confrontar um Congresso empoderado pelas emendas obrigatórias e uma oposição que capitaliza a insatisfação popular para as eleições de 2026. A retórica da “carga tributária alta” serve como um escudo para a resistência a uma reforma tributária que, de fato, tornaria o sistema mais justo e progressivo. Enquanto não houver um consenso político para enfrentar os privilégios e reformar a estrutura de gastos e arrecadação de forma profunda, o Brasil continuará em um ciclo de “emperramento do ajuste fiscal”, no qual a “questão fiscal teria de piorar muito para, só então, começar a melhorar”. O desafio é desatar esse nó, promovendo um debate sério e construtivo, que priorize o interesse de longo prazo do país sobre as conveniências políticas de curto prazo.