O crepúsculo de Bretton Woods

    (foto: www.linkedin.com)

    Toda a arquitetura do sistema financeiro global tem sua origem nos acordos de Bretton Woods e suas subsequentes transformações. Pensado inicialmente para superar a fragmentação da economia mundial ocasionada pelas duas guerras mundiais (1914-1918 e 1939-1945), o sistema de Bretton Woods, estabelecido em 1944, foi um acordo internacional que criou um novo sistema financeiro global após a Segunda Guerra Mundial. Ele estabeleceu o dólar americano como a principal moeda de reserva mundial, atrelada ao ouro a uma taxa fixa de 35 dólares por onça. As moedas de outros países foram, por sua vez, atreladas ao dólar, permitindo flutuações limitadas em suas taxas de câmbio.

    O sistema visava promover a estabilidade econômica e o comércio internacional, e, para isso, foram criadas instituições como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial, que tinham o objetivo de facilitar a cooperação econômica e fornecer assistência financeira a países em dificuldades. A principal divergência entre os Estados Unidos e a Inglaterra na reunião de Bretton Woods, realizada em 1944, estava relacionada ao papel que cada país deveria ter na nova ordem econômica mundial. Os Estados Unidos defendiam um sistema baseado na liberalização do comércio e um dólar forte como moeda de reserva global, enquanto a Inglaterra, sob a liderança de John Maynard Keynes, propunha a criação de uma moeda internacional que seria denominada de “bancor” e um sistema mais equilibrado que permitisse ajustes nas balanças de pagamentos, visando proteger economias nacionais de choques.

    Inicialmente, o sistema de Bretton Woods funcionou por meio de um sistema de taxas de câmbio fixas, no qual as moedas dos países participantes eram atreladas ao dólar americano, que por sua vez era conversível em ouro. Os países comprometiam-se a manter suas taxas de câmbio dentro de uma margem de variação de 1% em relação ao dólar, o que exigia intervenções do banco central para estabilizar suas moedas. O FMI desempenhou um papel crucial, fornecendo assistência financeira e monitorando as políticas econômicas dos países membros para garantir a estabilidade do sistema.

    No entanto, os defeitos do sistema logo ficaram evidentes. O aumento dos déficits comerciais dos EUA e a crescente desconfiança sobre a capacidade dos EUA de manter a conversibilidade em ouro levaram a tensões que culminaram no colapso do sistema no início da década de 1970. Os principais desafios enfrentados pelo sistema de Bretton Woods incluíam a crescente pressão inflacionária nos Estados Unidos, que resultou em déficits comerciais e orçamentários. Além disso, a demanda por dólares americanos fora dos EUA superou as reservas de ouro do país, gerando incertezas sobre a sustentabilidade do padrão dólar-ouro. A falta de flexibilidade nas taxas de câmbio fixas dificultou a adaptação a choques econômicos e desequilíbrios. Por fim, a crescente concorrência internacional e a liberalização dos mercados financeiros tornaram o sistema cada vez mais obsoleto, contribuindo para a sua crise final nos anos 70.

    Após o colapso do sistema de Bretton Woods na década de 1970, as políticas monetárias passaram a ser mais flexíveis e orientadas para a inflação. Os países adotaram regimes de câmbio flutuante, permitindo que as taxas de câmbio fossem determinadas pelo mercado, o que proporcionou maior liberdade para ajustar suas políticas econômicas. Os bancos centrais, como o Federal Reserve nos EUA, começaram a focar em metas de inflação e políticas monetárias mais ativas para controlar a economia. O sistema de metas de inflação com banco centrais independentes  tornou-se no novo “padrão ouro” da economia global. Essa transição também levou ao aumento da globalização financeira e à liberalização dos mercados, transformando o modo como as economias interagem globalmente.

    Se quisermos construir uma linha do tempo das principais transformações do sistema financeiro internacional,  podemos seguir a cronologia proposta Corsetti (2025), que destaca os seguintes períodos:

    1945 – 1970 – Taxas de câmbio fixas e controle sobre o fluxo internacional de capitais.

    1971 – 1980 – Fim da paridade dólar-ouro e taxas de câmbio flexíveis.

    1980 – 1990 – Liberalização das contas das contas de capitais, desregulamentação financeira, crise da dívida na América Latina, globalização financeira: fluxos de capitais superam os fluxos de comércio.

    1990 – 2000 – Consenso de Washington, globalização irrestrita, crise no México, na Rússia e na Ásia, domínio total das finanças globais pelos mercados.

    2008-2016 – Crise dos subprimes nos Estados Unidos, crise financeira global, socorro dos bancos centrais para prevenir falências bancárias e dar garantias de liquidez ao sistema, medidas macroprudenciais e controle de capitais, controle do estado retorna mas os mercados continuam dominantes.

    2017 – 2024 – Fragmentação geopolítica, retorno do protecionismo, sanções à Rússia.

    2025 – Guerra comercial, fragmentação geopolítica, instabilidade global e questionamentos sobre o papel do dólar como moeda internacional.

    Como afirma Corsetti (2025), “Durante décadas, a economia global foi moldada pelo pensamento de Bretton Woods, que enfatizava a busca por crescimento real e estabilidade por meio da cooperação multilateral. Hoje, porém, essa visão está cada vez mais sob ataque de políticos e eleitores em todo o mundo”. O golpe de misericórdia no sistema herdado de Bretton Woods está sendo dado pelo governo Trump partindo do diagnóstico de que ele é prejudicial aos interesses dos Estados Unidos. O grande problema é que ninguém tem a menor ideia do que possa vir a ocupar o seu lugar.

    Como afirmou o site Project Syndicate em uma série de artigos sobre o tema, “Apesar de seu compromisso declarado de manter o domínio global do dólar, o presidente americano Donald Trump está minando ativamente o valor – e a confiança – do dólar. Isso não é um bom presságio para o “privilégio exorbitante” que o status do dólar como principal moeda de reserva internacional há muito tempo concede aos EUA, embora crie espaço para possíveis substituições.”

    Por trás das medidas tomadas pelo governo Trump, conforme destaca Harold James (2025)[1]  parece haver um diagnóstico que aponta para a necessidade de solução de três problemas. O primeiro diz respeito ao comércio: como impedir a perda de empregos e meios de subsistência americanos. O segundo diz respeito ao dinheiro: a centralidade do dólar no sistema global o deixa supervalorizado, o que torna as exportações americanas muito caras. E o terceiro diz respeito à segurança: os EUA estão arcando com o ônus de defender outros países. A ideia do governo Trump é que as políticas comerciais e de segurança dos EUA podem ser usadas para forçar outros a orquestrar uma desvalorização do dólar sem destruir seu status de reserva.

    Para enfrentar esses problemas os EUA estão tentando reeditar as medidas tomadas em administrações anteriores com o objetivo de reinventar o sistema monetário internacional e reduzir o valor do dólar. “O ponto de referência mais óbvio é o Acordo Smithsoniano de dezembro de 1971, que o presidente Richard Nixon proclamou ser “o acordo monetário mais significativo da história do mundo”. Outro precedente é o Acordo Plaza de setembro de 1985, sob o presidente Ronald Reagan, que provavelmente inspirou o esforço do governo Trump.”

    O Acordo Smithsoniano foi um acordo internacional assinado em dezembro de 1971, que buscou reestruturar o sistema monetário internacional após a desvalorização do dólar americano e a suspensão da conversibilidade do dólar em ouro. O Acordo do Plaza foi um pacto firmado em 22 de setembro de 1985 entre cinco países: Estados Unidos, Japão, Alemanha Ocidental, França e Reino Unido. O objetivo principal era depreciar o dólar americano em relação ao iene japonês e ao marco alemão, a fim de corrigir os desequilíbrios na balança comercial. O Acordo do Plaza foi particularmente nocivo para o Japão, que entrou em um processo de estagnação econômica do qual nunca mais se recuperou. Com a valorização do iene, as empresas japonesas começaram a investir pesadamente em ativos, especialmente imóveis e ações, acreditando que os preços continuariam a subir. Essa especulação levou a um aumento dramático nos preços dos imóveis e das ações, criando uma bolha. No entanto, quando o Banco do Japão começou a aumentar as taxas de juros no final da década de 1980 para conter a especulação, a bolha estourou, resultando em uma queda acentuada nos preços dos ativos e contribuindo para a “década perdida” do Japão.

    Em ambos os casos, afirma James, “um presidente americano acreditava que o dólar estava supervalorizado, que os exportadores e trabalhadores americanos estavam em desvantagem e que a política econômica americana havia sido bloqueada por obstrução estrangeira. Essa sensação de aprisionamento criou um ímpeto para uma ruptura radical. Nixon chegou à famosa conclusão que os Estados Unidos poderiam forçar uma mudança necessária se ele parecesse um louco. Seu secretário do Tesouro, o grandioso texano John Connally, disse aos europeus: “o dólar é a nossa moeda, mas o problema é de vocês”. Em cada caso, a política comercial foi o instrumento decisivo para derrotar outros países. Em 1971, com a conversibilidade do dólar em ouro suspensa, Nixon impôs uma sobretaxa de 10% sobre todas as importações (a mesma tarifa mínima anunciada por Trump em 2 de abril). Da mesma forma, em 1985, as exigências do Congresso para conter a enxurrada de importações (em grande parte do Japão) deram ao Secretário do Tesouro, James Baker, o que ele precisava para forçar o restante das economias desenvolvidas do então G5 a desvalorizar suas moedas.”

    O problema, contudo, é que nenhum desses acordos foi capaz de resolver os problemas da economia americana cuja questão central está no papel duplo do dólar: ser, ao mesmo tempo, a moeda dos Estados Unidos, que se estiver muito valorizada prejudica os exportadores norte-americanos e ser a moeda internacional, cuja demanda para o comércio mundial e para as reservas internacionais de todos os países tende a valorizá-la. Tanto no acordo Smithsoniano, em 1971, com Nixon, quanto no Acordo do Plaza, em 1985, com Reagan, quanto agora no governo Trump, o objetivo é forçar uma desvalorização do dólar para aumentar a competividade da economia norte-americana sem que ela perca seu status de moeda internacional, pois como reconheceu o próprio Trump em discurso no Clube Econômico de Nova York em setembro de 2024, “Se perdêssemos o dólar como moeda mundial acho que isso seria o equivalente a perder uma guerra.”.   O risco, segundo James, “é que a instrumentalização do comércio e das garantias de segurança dos EUA para enfraquecer o dólar destrua a confiança na moeda americana. Um esforço supostamente para defender os trabalhadores americanos irá além do esperado, exigindo um novo acordo monetário internacional, mas sem que os EUA tenham mais credibilidade para fornecê-lo. Já sabemos que o Acordo Smithsoniano e o Acordo Plaza trouxeram pouco alívio a longo prazo aos trabalhadores americanos. Uma tentativa de reproduzi-los seria ineficaz – e possivelmente totalmente destrutiva.”. Como diz o ditado, pau que nasce torto, morre torto: o pecado original de Bretton Woods, que sem sucesso Keynes tentou evitar, foi ter estabelecido o dólar americano como moeda internacional.  Não é por acaso, que as propostas de Keynes para a reconstrução do sistema internacional de comércio começam a circular novamente, mas desta vez apenas enquanto farsa para tentar salvar a pele dos Estados Unidos e empurrar a solução do problema para a China.


    [1] https://www.project-syndicate.org/commentary/mar-a-lago-accord-could-break-the-dollar-by-harold-james-2025-05

    Luís Antonio Paulino
    Luís Antônio Paulino é professor doutor associado da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e membro da equipe de colaboradores do portal “Bonifácio”.

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