Uma característica importante da sociedade norte-americana, até hoje, é o fato de que a elite dirigente do País não é formada apenas por uma classe de super-ricos. O que pejorativamente se chama de “estado profundo” é, na verdade, a expressão no aparato burocrático do Estado norte-americano de uma sociedade multifacetada.
Desse ponto de vista, o Estado não se configura apenas como um “comitê executivo da burguesia”, mas como um espaço em que os diversos segmentos sociais disputam influência e poder. É, por assim dizer, uma forma menos cruenta de resolver os conflitos sociais inevitáveis em uma sociedade de classes.
Uma característica importante da sociedade norte-americana que ao longo do tempo tem dado sustentação a esse arranjo político/administrativo que denominamos de democracia liberal é a existência de uma enorme classe média formada ao longo do processo de industrialização do País. Ocorre, entretanto, que as bases materiais que deram origem a essa enorme classe média já não existem mais e, por consequência, o arranjo político nela sustentado está se tornando cada vez mais disfuncional.
A manifestação mais evidente da corrosão dessa base material é a emergência de uma classe de super-ricos que concentra nas mãos de um número cada vez mais reduzido de pessoas uma parcela cada vez maior da riqueza nacional. Quanto mais o poder econômico se concentra nas mãos dessa oligarquia, mais o poder político precisa ser concentrado, pois aumenta o risco de revoltas sociais.
O que vemos hoje nos Estados Unidos é esse processo claramente em curso. Em seu discurso de despedida à nação, dias antes de Donald Trump retornar triunfalmente à Casa Branca, o presidente Joe Biden indicou que uma “oligarquia” baseada no setor de alta tecnologia e que depende de “dinheiro obscuro” na política estava ameaçando a democracia dos EUA. Com experiência de várias décadas no aparelho de Estado norte-americano como senador, vice-presidente e presidente da República certamente Biden sabia do que estava falando.
O Estado norte-americano passa por mudanças profundas que, diga-se de passagem, não começaram agora, mas estão dando um salto qualitativo. O objeto desta mudança, como afirmou John Bellamy Foster, em ensaio para a revista inglesa Monthly Review[1] , é uma reestruturação regressiva dos Estados Unidos em uma postura de guerra permanente, resultante do declínio da hegemonia dos EUA e da instabilidade do capitalismo dos EUA, além da necessidade de uma classe capitalista mais concentrada para garantir um controle mais centralizado do estado.”
Não é por acaso que o Presidente Donald Trump se cercou de super-ricos em seu governo. Elon Musk, seu braço direito na empreitada de reconfiguração do Estado, não só é o homem mais rico dos Estados Unidos, mas de todo o mundo. Também não são gratuitas as investidas sobre as universidades americanas e todo o aparato intelectual do país. O combate às políticas “woke” é uma desculpa conveniente, que agrada a base ultraconservadora do governo, mas não se resume a isso. O que se pretende é extirpar qualquer vestígio de pensamento crítico e transformar o sistema norte-americano de ensino e pesquisa em aparelho ideológico dessa nova oligarquia no poder.
Como conciliar, entretanto, a crescente desigualdade social com a estabilidade social e política sem a qual a sociedade não sobrevive é uma questão em aberto, com implicações nacionais e internacionais. O que fica cada vez mais claro, entretanto, é que o arranjo político institucional que até hoje conseguiu regular o funcionamento da sociedade e do Estado norte-americano perdeu sua funcionalidade. Todos os valores que de alguma forma ofereciam a justificação ética e moral para seu funcionamento são postos em xeque ou abertamente ridicularizados pelos novos donos do poder. A crescente polarização política funciona como uma poderosa bomba de vácuo que elimina todo o ar que a democracia necessita para sobreviver. Como uma reação em cadeia talvez esse processo não tenha como ser parado antes de completar o seu ciclo.
[1] Bellamy, J. F. The U.S. Ruling Class and the Trump Regime. In Monthly Review, 01/04/2025. Disponível em: https://monthlyreview.org/2025/04/01/the-u-s-ruling-class-and-the-trump-regime/