O Tratado de Cooperação Amazônica – resistência e soberania

    A América é a terra do futuro, na qual em tempos vindouros haverá uma contenda entre a América do Norte e a América do Sul, e onde a importância da História Universal deverá manifestar-se. (Hegel)

    Ao homem moderno está interdita a contemplação, o esforço sem finalidade. E a nós, povo jovem, impõe-se a enorme responsabilidade de civilizar e povoar milhões de quilômetros quadrados. Aqui, na extremidade setentrional do território pátrio, sentindo essa riqueza potencial imensa, que atrai cobiças e desperta apetites de absorção, cresce a impressão dessa responsabilidade, a que não é possível fugir nem iludir. (Getúlio Vargas, Manaus, 1940, discurso “O destino brasileiro do Amazonas”)

    Neste 3 de julho, o Tratado de Cooperação Amazônica completa 46 anos de existência. A celebração do Tratado em 1978 foi estratégia de resistência do Brasil contra as ameaças de relativização de sua soberania sobre a Amazônia por potências extra-amazônicas. O caminho que se impôs então foi abrigar-nos sob a nossa identidade sul-americana e convocarmos nossos vizinhos amazônicos à cooperação para a defesa conjunta das nossas soberanias.

    A compreensão dos desafios que se colocam hoje para a concretização da sua soberania pelos países pan-amazônicos exige um olhar para a história para entender que os motivos que levaram o Brasil a propor aos seus vizinhos a celebração do Tratado permanecem vivos e ainda mais vivos.

    No final dos anos 70, crescia a ideia, nutrida há́ décadas na opinião pública internacional e nos fóruns mundiais, de que a Amazônia constituiria “patrimônio comum da humanidade”. Os governos, com admirável vigor diplomático, impulsionado e coordenado pelo Brasil, erigiram em tempo recorde um acordo-quadro ao abrigo do qual fundassem uma institucionalidade pan-amazônica voltada à cooperação para o desenvolvimento integrado da região no contexto do exercício coordenado de suas soberanias. (“Tratado de Cooperação Amazônico na geopolítica da Amazônia – uma perspectiva brasileira”, Samuel Gomes, Senado Federal, Brasília, 2022, https://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/608609?show=full)

    Surgia o Tratado de Cooperação Amazônica, firmado em Brasília, em 3 de julho de 1978, por Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela com vistas ao desenvolvimento da região, à “distribuição equitativa dos benefícios desse desenvolvimento entre as Partes Contratantes”, para “elevar o nível de vida de seus povos”, “lograr a plena incorporação de seus territórios amazônicos às respectivas economias nacionais”, com “equilíbrio entre o desenvolvimento econômico e a preservação do meio ambiente”, combinando “a preservação do meio ambiente e a conservação e utilização racional dos recursos naturais”. Enfim, “desenvolvimento integral” e “conservação ecológica da Amazônia”.

    O Tratado de Cooperação Amazônica é um marco do engenho diplomático brasileiro., assentado em princípios de cooperação para opor a força política regional sul-americana às recorrentes ideias de que a nossa soberania sobre a Amazônia é um risco à vida no Planeta.

    O Tratado precisa ser visto como uma ferramenta da sempiterna luta por soberania. Os generosos contornos atuais do território nacional na sua porção setentrional são resultado da determinação desbravadora portuguesa de homens como Pedro Teixeira e do vigor diplomático de Bartolomeu de Gusmão. O legado foi honrado e desenvolvido com tenacidade e boa técnica depois da Independência pelo Barão do Rio Branco.

    Na República, a determinação do Brasil por integrar econômica e socialmente a Amazônia ao território nacional encontra sua melhor síntese no discurso “O destino brasileiro do Amazonas“, proferido por Getúlio Vargas, em 9 de outubro de 1940, em Manaus. Getúlio foi o primeiro presidente a ver a importância estratégica da Amazônia e primeiro a visitá-la. O discurso insere-se no contexto histórico em que o Brasil estabeleceu corretamente a política de ocupação de “espaços vazios” e sua incorporação à sociedade nacional pela “Marcha para o Oeste”, inspirada pelo nascente pensamento geopolítico brasileiro, da década de 1930, cuja maior expressão era o então capitão Mário Travassos.

    Outros momentos da mesma luta poderiam ser mencionados. Um deles, quando o Congresso Nacional, sob a liderança do deputado e ex-presidente Arthur Bernardes, recusou-se a referendar a Convenção de Iquitos, que, em 10 de maio de 1948, criou o Instituto da Hileia Amazônica, entidade supranacional que teria poderes de gestão sobre a Amazônia.

    Se o discurso de Getúlio às margens do Amazonas é o antecedente republicano simbólico remoto do Tratado de Cooperação Amazônica, o seu antecedente concreto mais próximo foi a épica ação diplomática brasileira na Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, em 1972, em Estocolmo, quando o Brasil liderou 77 dos 113 países presentes para impedir que a ONU transformasse em direito internacional as propostas do documento “Limites do crescimento”,  do Clube de Roma, que defendia que o crescimento econômico fosse freado – para congelar o poder mundial, no dizer do embaixador João Araújo de Castro, representante brasileiro na Conferência (https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/180480/000341583.pdf?sequence=1&isAllowed=y ) – e que a população mundial diminuísse sua taxa de reprodução sob pena do cataclisma neomalthusiano do esgotamento dos recursos naturais e da alimentação.

    Moniz Bandeira colheu em Hegel a ideia de que os Estados nacionais são como organismos vivos dotados de vontade que perseguem os seus objetivos.

    A compreensão de um fenômeno político e/ou da política de um Estado passa, portanto, pelo conhecimento da história, pois, se nada é absolutamente certo, nada também é absolutamente contingente, casual. Os Estados, ditos nacionais, são organismos vivos, surgiram e conformaram-se em determinadas condições históricas, e comportam-se, conforme a tradição e herança sedimentadas na cultura dos respectivos povos, que eles politicamente organizam e representam. Seu real conteúdo, como Hegel definiu, é o próprio espírito do povo (der Geist des Volkes), ou seja, sua cultura, e eles são animados por esse espírito em suas especiais oportunidades, guerras, instituições etc. Os Estados são o que suas ações revelam. (“Brasil, Argentina e Estados Unidos: Conflito e integração na América do Sul – da Tríplice Aliança ao Mercosul) Civilização Brasileira, 2016, p. 53]

    É possível acrescentar que a forma como os governos buscam – ou se afastam– dos objetivos permanentes do Estado nacional histórico revela, mais que qualquer outra medida, a configuração das forças sociais, econômicas e políticas que detêm realmente o poder. A prática é o critério da verdade. As ameaças de ontem são as de hoje, sob capa diversa, como alertou o Senado Federal por meio do relatório da CPI das ONGs (https://www2.senado.leg.br/bdsf/item/id/194594). A atuação do governo federal na Amazônia e seu vínculo com o espírito do Tratado de Cooperação Amazônica, nascido há 46 anos sob o signo da resistência e da soberania, é a métrica mais reveladora do seu nível de compromisso com o destino brasileiro da Amazônia, profetizada pelo presidente Getúlio Vargas, às margens do grande rio, nos albores da Segunda Guerra Mundial.

    Samuel Gomes
    Samuel Gomes, advogado e professor, mestre em Filosofia do Direito, Consultor em Poder Legislativo, Relações Governamentais e Negócios Internacionais.

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    2 COMENTÁRIOS

      • Seu comentário nos honra, senhor subprocurador-geral da República. Parabéns pelo bom trabalho realizado à frente da Sexta Câmara de Coordenação e Revisão e da Procuradoria Geral da República.

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