12ª Conferência Ministerial da OMC e a guerra comercial dos países ricos contra os pobres

    As Respigadoras, Jean-François Millet (França, 1814-1875).

    Entre 12 e 17 de junho ocorreu em Genebra a 12ª Conferência Ministerial da OMC. Os quatro temas considerados prioritários para o encontro foram agricultura e segurança alimentar, subsídios à pesca, reforma da OMC e comércio e saúde. A reunião ocorreu quando o mundo enfrenta desafios sem precedentes que se não resolvidos adequadamente irão reverter muitas conquistas obtidas nestas duas primeiras décadas do século 21 em áreas importantes, como segurança alimentar, combate à fome, saúde pública e desenvolvimento sustentável. O crescente protecionismo por parte dos países desenvolvidos, o movimento antiglobalização desencadeado pelos Estados Unidos para isolar a China das cadeias de suprimento, os efeitos da pandemia da Covid-19 sobre o comércio mundial, a falta de acesso às vacinas contra a Covid-19 nos países mais pobres e, mais recentemente, a Guerra na Ucrânia, aumentaram as incertezas que rondam a economia mundial.

    A OMC, com suas regras sobre comércio, patentes e investimentos estabeleceu uma espécie de “constituição” da economia mundial que todos os países membros da organização se obrigam a cumprir, tem um papel importante para combater o aumento do protecionismo e da fragmentação da economia mundial, bem como tomar medidas que facilitem o acesso dos mais pobres à comida e aos remédios. Infelizmente, não é o que ocorre. Desde sua criação, em 1994, quem tem ditado as regras da OMC são os países ricos e as grandes corporações multinacionais. A inclusão do tema da propriedade intelectual nas normas multilaterais de comércio se deu por pressão dos países desenvolvidos e das grandes indústrias farmacêuticas. Essas novas regras, consolidadas no acordo TRIPS, distorceram completamente o instituto da patente, tornando-o o oposto daquilo para que foi criado. Ao invés de oferecer estímulo para o inventor compartilhar seu conhecimento com a sociedade, o acordo TRIPS, ao estender o prazo das patentes para 20 anos e criar novas figuras jurídicas, como “patentes de importação” tornou-se um instrumento para o monopólio do conhecimento nas mãos dos grandes oligopólios químicos e farmacêuticos com sede nos países ricos.

    Desde a implementação do TRIPS, em 1994, o preço dos medicamentos disparou em todo o mundo, atingindo patamares proibitivos para a maior parte da população, que passou a depender quase que exclusivamente do fornecimento gratuito por parte dos serviços públicos de saúde onde essa política existe. Cada vez que surge uma nova pandemia, como foi o caso da AIDS na década de 1990 e, agora, da Covid-19, os grandes laboratórios dos Estados Unidos e da União Europeia faturam bilhões de dólares, ao tempo em que os países e populações mais pobres são deixados para trás. Passados já quase três anos do início da pandemia da Covid-19, apenas 13% da população dos países mais pobres foi completamente vacinada.

     O mesmo ocorre com as sementes. A alimentação humana depende hoje de umas poucas variedades de grãos – trigo, soja, milho, arroz – produzidos em grande escala, cujas sementes geneticamente modificadas são propriedade de empresas multinacionais gigantes que controlam toda a cadeia de produção de comida no mundo, desde as sementes, até os defensivos agrícolas e fertilizantes.  Parcela não desprezível da humanidade – ao redor de um bilhão de pessoas – passa fome e um número ainda maior não tem acesso à quantidade suficiente de alimentos, situação ainda mais agravada com a pandemia da Covid-19 e, agora, com a Guerra na Ucrânia.

    O que se passou nesta 12ª Conferência Ministerial da OMC, o órgão máximo de governança da organização, é mais ou menos o que já vinha acontecendo nas onze conferências anteriores desde que a OMC foi criada, ou seja, um embate entre países ricos e países em desenvolvimento, em que só avança a discussão sobre temas de interesse dos países ricos e das grandes empresas. Temas de interesse exclusivo dos países pobres são sempre deixados de lado uma vez que as decisões são invariavelmente tomadas por consenso.

    O caso mais gritante é a regulamentação do comércio agrícola. Uma das condições para que os países em desenvolvimento aceitassem, em 1986, a inclusão dos chamados novos temas na Rodada Uruguai – propriedade intelectual, comércio de serviços e investimentos – no mandato negociador foi a inclusão do comércio de produtos agrícolas nas regras multilaterais de comércio. Desde a assinatura do Acordo Geral de Comércio e Tarifas (GATT na sigla em inglês), em 1947, o tema do comércio agrícola foi deixado de fora por pressão dos países ricos que não aceitaram submeter suas políticas de subsídios agrícolas a controles multilaterais.

    O resultado disso foi que, enquanto o comércio internacional de manufaturas foi sendo gradativamente liberalizado, com as tarifas médias caindo da casa dos 50% para menos 5% em menos meio século, o comércio agrícola, de maior interesse para os países em desenvolvimento, continuou travado, sujeito a todo tipo de empecilhos: cotas, picos tarifários que em alguns casos ultrapassam os 1.000%, barreiras fitossanitárias impostas apenas com propósitos protecionistas, subsídios à produção e à exportação nos países ricos e assim por diante.

    Por ocasião da assinatura do acordo de Marrakech, em 1994, que deu origem à OMC, foi assinado, lateralmente, o chamado Acordo de Blair House, por meio do qual os países em desenvolvimento aceitaram a chamada “Cláusula de Paz”. Por meio dessa cláusula, os países em desenvolvimento aceitavam um prazo de 10 anos para os países ricos retirarem os subsídios agrícolas e se comprometerem, nesse período, a não entrar com nenhuma reclamação na OMC contra os subsídios agrícolas.

    Passados os 10 anos, em 2003, na Conferência Ministerial de Cancun, os países ricos voltaram a dizer que não poderiam retirar os subsídios e exigiram mais 10 anos. Nesse interim havia começado uma nova rodada de negociações, a Rodada Doha, ironicamente chamada de “Rodada do Desenvolvimento”, uma vez que seu objetivo seria resolver de vez a questão agrícola que tanto afligia os países de desenvolvimento. Entretanto, passaram-se outros 10 anos sem nenhuma resolução até que, em 2015, na Conferência Ministerial de Nairobi, os países ricos novamente disseram que não iriam retirar os subsídios agrícolas, que não tinham prazo para fazê-lo e simplesmente encerraram a Rodada Doha, que já se arrastava por mais de 15 anos sem alcançar nada de concreto. Ironicamente, ao longo desses mais de 20 anos de postergação, os subsídios agrícolas não só foram  mantidos, como aumentaram substancialmente.

    Chegamos agora, em 2022, à 12ª Conferência Ministerial da OMC, e os problemas não só permanecem os mesmos, como foram ainda mais agravados pela decisão dos Estados Unidos, no governo Trump, de boicotar o funcionamento do órgão, pois o mesmo tornou-se um empecilho para a nova orientação protecionista de anti-globalização dos Estados Unidos. Passados os seis dias da conferência previstos incialmente e mais uma madrugada para se tentar chegar a algum acordo, mais uma vez nada de substantivo foi resolvido. Como afirmou recentemente o ministro de Comércio da Indonésia, Muhammad Lutfi: “É uma perda de tempo ter de ir a essa reunião ministerial em Genebra, porque não vai acontecer nada” (Valor, 10/06).

    O pacote de acordos assinado à 4h59 do dia 18/6 mais uma vez deixou de fora, por falta de consenso, a maior prioridade do Brasil, que era a aprovação de um novo programa de trabalho para avançar na reforma do comércio agrícola global. Mesmo entre os países em desenvolvimento não houve consenso em torno do assunto, com Brasil e Índia ficando em lados opostos. Conforme noticiou o jornal Valor Econômico (17/06), “Índia e  Indonésia vetaram os programas de trabalho por não terem conseguido uma solução permanente para estoques públicos de alimentos na atual conferência ministerial, que não era aceita pelo Brasil, EUA, Grupo de Cairns (17 exportadores agrícolas), vários latino-americanos e outros países”.

    O Brasil não se opõe a que países pobres e em desenvolvimento que importam grande quantidade de alimentos ofereçam subsídios para a produção de comida para consumo local, mas não aceitou a proposta da Índia que quer que seja permitida a exportação de estoques públicos de alimentos formados com o apoio de subsídios, pois isso redundaria em graves prejuízos para os produtores agrícolas brasileiros que disputam o mercado mundial sem nenhum tipo de subsídio.

    No que diz respeito à quebra de patentes para vacinas, ferramenta de diagnósticos e terapias para o combate à Covid-19, o acordo assinado foi o que, diante da enorme pressão mundial, era o máximo aceitável para os grandes laboratórios farmacêuticos dos Estados Unidos e Europa. Uma renúncia completa da propriedade intelectual para vacinas, terapias e ferramentas de diagnóstico, como proposta originalmente por alguns países em desenvolvimento, entre eles África do Sul, Índia e Paquistão, além de mais de 150 organizações humanitárias, como os Médicos Sem Fronteiras, foi contestada por alguns países, incluindo o Reino Unido, a Suíça e a União Europeia. Entre os países ricos, o único que adotou uma posição mais flexível em relação ao tema foram os Estados Unidos. O acordo assinado na madrugada do dia 18 limitou a quebra de patentes apenas para as vacinas, excluindo terapias e ferramentas de diagnóstico. Também estabeleceu que os “membros elegíveis” para essa autorização, entre os países em desenvolvimento, seriam somente aqueles que tiveram uma participação de menos de 10% das exportações mundiais de vacinas contra a Covid-19 em 2021. Ou seja, a China, que foi o país que mais colaborou com os demais países em desenvolvimento e tinha 33,7% das exportações mundiais de vacinas contra a Covid-19, a maior parte para os países em desenvolvimento, foi penalizada e ficou de fora.

    Luís Antonio Paulino
    Luís Antônio Paulino é professor doutor associado da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e membro da equipe de colaboradores do portal “Bonifácio”.

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