A fé, amigo leitor, é parente da esperança. E a esperança, nós sabemos, é irmã siamesa da promessa. O que há em comum entre a fé, a esperança e a promessa? O tempo. O tempo determina o parentesco. Não existe entre nós um único ser humano que seja capaz da incoerência de cultivar algum tipo de fé ou de esperança no passado. No máximo o saudosista, o passadista que cria um passado ideal, mítico, contudo, de modo meramente instrumental. O pretérito fantástico serve apenas de termo de comparação, de parâmetro que viabiliza a possibilidade de crítica do presente – a nostalgia saudosista é um método de avaliação do vigente. Repito: ninguém semeia qualquer esperança ou fé em um passado melhor!
E a promessa? A promessa, amigo leitor, segue os mesmos passos, a mesma dança, a mesma valsa do tempo. Em que sentido? A promessa é um tipo de expectativa sobre o tempo futuro. Não quero falar da dimensão religiosa e sagrada da promessa que, todavia, é inegavelmente uma expressão de nossa relação com o tempo. De nossa experiência no tempo e para o tempo. No futebol, a experiência de torcer, o sentimento histriônico da paixão em muitos casos encontra expressão no sentido mítico e sacro da fé, da promessa e da esperança. No fundo, leitor, a Paixão Popular é um lugar de fé, peregrinação e esperança. O torcedor é um devoto. E a devoção é o antônimo do cansaço e da desesperança.
A Seleção de 1958, de um modo geral, não inspirava nem a fé, nem a esperança ou a promessa de uma campanha triunfal. Antes de falar da campanha de 58 e do Craque Zagallo, eu gostaria de dizer algumas últimas palavras sobre a promessa. O futebol é uma espécie de Igreja dos esportes, o lugar das promessas. O motivo é simples, torcedor: a promessa é um fenômeno que se manifesta na imanência do tempo presente e, ao mesmo tempo, possui o poder de viabilizar um tipo de crença no tempo futuro. A incerteza do porvir não é só incerteza. O futuro é temido, pois, além de incerto não é nada e, na condição de vazio, de vácuo, o amanhã não-é, não possui ser. A promessa, portanto, viabiliza a passagem do não-ser ao ser, possui o mágico poder da hipóstase, de atribuição de ser ao não-ser.
E o escrete de 1958? Hoje, se negamos o escrete de 58, não tenhamos dúvida: — é ainda a frustração de 50 que funciona. Gostaríamos talvez de acreditar na seleção. Mas o que nos trava é o seguinte: — o pânico de uma nova e irremediável desilusão. E guardamos, para nós mesmos, qualquer esperança. Só imagino uma coisa: — se o Brasil vence na Suécia, se volta campeão do mundo! Ah, a fé que escondemos, a fé que negamos, rebentaria todas as comportas, e sessenta milhões de brasileiros iam acabar no hospício. Mas vejamos: — o escrete brasileiro tem, realmente, possibilidades concretas? Eu poderia responder, simplesmente, “não”. Mas eis a verdade: — eu acredito no brasileiro, e pior do que isso: — sou de um patriotismo inatual e agressivo, digno de um granadeiro bigodudo.¹ A citação do mestre resume as expectativas sobre a equipe de 58.
Se a Seleção inspirava a fé, a esperança e a promessa de vitória para uma minoria, a verdade é que o escrete era uma equipe perfeita. O silêncio causado pelo Maracanaço produzia a hipermetropia geral. Uma parte considerável da crônica não era capaz de enxergar o que estava próximo: a força de um elenco impecável! O Brasil de 1958 era impecável! Impecável, primoroso, distinto, esplêndido! Em geral, a falta de confiança do brasileiro em si mesmo, como um narciso às avessas – para usar uma expressão do próprio Nelson – impede o patrício de enxergar a sua real condição. Didi, Zagallo, Pelé, Garrincha, Vavá – o Selecionado era perfeito como um poema parnasiano. Cada craque era como um verso. A métrica perfeita. O escrete era de um rigor apolíneo.
‘’Conheci’’ Zagallo na Copa de 1994. Eu era apenas um garoto. Como qualquer menino, eu era um apaixonado pela Seleção Canarinho. O Velho Lobo era o coordenador técnico. E o que impressionava o moleque que eu era? A força de caráter, a liderança inexorável, o poder inato e insofismável para o comando. Zagallo confiava na unidade do Tempo Brasileiro, do encontro com o futuro esfuziante, vitorioso. O velho Mestre, como um devoto e discípulo de Santo Antônio, conhecia o fatalismo enamorado do Tempo Nacional – o casamento entre o presente e o futuro. Na copa dos Estados Unidos, o Velho Lobo realizava uma contagem regressiva e, ao mesmo tempo, progressiva, pois, a cada instante, a cada lance, a cada jogo, o presente realizava gradualmente o futuro: o Tetra Campeonato Mundial!
O jejum, a fila, os 24 anos – com o peso de 24 séculos – que separavam o Tri Campeonato do Quarto Título Mundial haviam esfarelado no tempo. O intervalo entre um título e outro era um nada e, o Tempo Brasileiro, o encontro marcado com o futuro havia chegado. Do mesmo modo que a conquista de 1970 possui a marca da personalidade densa, forte e rochosa do Gênio Alagoano, o Tetra era outra vez a expressão do poder e da personalidade do grande líder. Repito: Zagallo é um profeta do Tempo Nacional, o homem que encarna a confiança inabalável no futuro. O vazio do porvir, a incerteza do via-a-ser, era ‘’hipostaseada’’ pelo homem que celebra a união, a aliança, o casamento entre o presente e o porvindouro.
E sobre 1958 e o Craque? Mário Jorge Lobo Zagallo era um dos versos do poema. O ponta alagoano era o Gênio Tático do Brasil. Por que Zagallo foi um grande e vitorioso técnico? Simples! Zagallo encarnava não só a qualidade técnica de um grande craque, mas era cerebral, o craque tático de uma estrutura sistêmica perfeita. Na década de 1950, o Brasil foi o país da inovação tática. Desde o WM diagonal de Flávio Costa, a Seleção era a novidade do mundo em todos os aspectos do futebol. Do WM diagonal evoluímos e inovamos com o ‘’433-torto’’ que, ganhou fama em 1970, mas, já em 1958 apresentava os contornos de sua arquitetura arrojada. Nos anos cinquenta, amigo leitor, cada técnico brasileiro era um Oscar Niemeyer. O ‘’433’’ da Copa da Suécia era simplesmente grandioso e imaginativo.
Defendendo com uma linha de quatro, jogando com dois volantes que saíam para o jogo, tendo Pelé como ponta de lança e três na frente (Garrincha, Vavá e Zagallo), o Brasil confundia o obsoleto ‘’WM clássico’’. Um dos jogadores de frente, o ponta esquerda Zagallo recuava e, ao mesmo tempo, inventava o espaço para os homens que viam de trás – notadamente o jovem Rei Pelé. A importância tática do Velho Lobo era decisiva. Na final, nosso Heroico Ponteiro recuou até a defesa para salvar a pátria. Aos 25 do primeiro tempo, quando a partida estava empatada em 1 a 1, o Craque foi determinante – tirou em cima da linha o que seria o segundo gol dos donos da casa. Como um Felipe Camarão, o ‘’Formiguinha’’ salvou a pátria do ataque inimigo. Tal como a Batalha de Guararapes, o lance merecia um Victor Meireles para eternizar o ato. E ainda coube ao Mestre Zagallo fazer o quatro gol do Brasil. No final, 5 a 2 para a nossa Seleção!
-É difícil, amigo leitor, resumir em tão poucas linhas o homem que encarna a Brasilidade, o Tempo Brasileiro, a Fé, a Paixão e a Vocação Manifesta para o Triunfo! Para nós, os simples mortais, resta apenas a contemplação da obra do Gênio! Viva o Velho Lobo, viva o eterno Mário Jorge Lobo Zagallo!
1.Rodrigues, N. Manchete Esportiva, 31/5/1958 publicado na coletânea ‘’A pátria de Chuteiras.’’
Grande texto, muito bem escrito, muito profundo! Parabéns ao Teixeira Mendes, que é o autor do textos que mais gosto daqui! 👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼
Zagallo nunca foi craque, apenas um coadjuvante, assim como nunca foi técnico, apenas um ”ajuntador” de jogadores. O time de 70 foi moldado por Saldanha, sem Dario, que Zagallo, puxa-saco dos militares, convocou. Zagallo nunca foi grande treinador, nem inovou nada no esporte. Apenas tem seus puxa-sacos e principalmente o beneplácito da Rede Globo e seu império.
Respeito sua opinião, Joel.
Penso, contudo, que a obra do Mestre precisa ser pensada com mais calma.