Pergunte a qualquer pessoa relativamente bem-informada, nascida na segunda metade do século passado, qual a imagem que tem da Alemanha. Certamente dirá que é uma grande potência econômica, líder mundial na produção e exportação de bens manufaturados de altíssima qualidade, de máquinas a automóveis. Lembrará também que é o país líder da União Europeia, cuja moeda, antes do Euro, o Marco Alemão, rivalizava em força e prestígio internacional com o dólar norte-americano. Dirá também que a União Europeia é um agrupamento que reúne 26 países em torno da Alemanha, que seguem as regras fiscais definidas pelo Parlamento e pelo banco central alemão, o Deutsche Bank. Continue a conversa e será lembrado de que o sistema educacional alemão é um dos melhores do mundo, com seu esquema de integração escola-empresas; que as empresas são geridas coletivamente por patrões e empregados; que praticamente não existem greves no país e que seu sistema de seguridade social não tem rival no mundo. Por fim lembrará que a Alemanha é um país democrático, o mais aberto aos imigrantes em toda a Europa, e também pacifista. Provavelmente essa pessoa também lembrará que depois da Primeira e Segunda Guerra Mundial nunca mais se ouviu falar em Exército Alemão.
Pois bem. Parece que tudo isso está mudando. Durante muito tempo a potência econômica da Europa, a Alemanha é agora o país com crescimento mais lento entre os 20 países que utilizam o euro. Os prognósticos são de que, depois de entrar em recessão em 2023, ficará com a economia estagnada em 2024. As relações harmoniosas entre capital e trabalho, marca registrada da social-democracia alemã, são coisas do passado. Segundo noticiou o New York Times (22/03), “Uma onda de greves este ano fez com que os alemães se perguntassem se isso está mudando agora. Segundo algumas medidas, os primeiros três meses de 2024 tiveram o maior número de greves no país em 25 anos.”
Ainda segundo a matéria, “Sob o peso do aumento dos preços da energia e da queda da produção, o país sofreu no ano passado a inflação mais elevada dos últimos 50 anos. O fardo recaiu mais pesadamente sobre os trabalhadores de baixos e médios rendimentos. Desde 2022, os seus salários reais, de acordo com um estudo recente, diminuíram mais do que em qualquer momento desde a Segunda Guerra Mundial (…) para os trabalhadores com rendimentos mais baixos, que agora se preparam para um futuro menos próspero do que o presente, há pouco em que recorrer. Cerca de 40% das famílias têm pouca ou nenhuma poupança líquida”.
E qual a razão dessa rápida decadência alemã? segundo a mencionada matéria, “Durante décadas, a economia da Alemanha prosperou de forma lucrativa, sustentada pelas exportações para a China e pelo gás barato da Rússia. Mas a invasão da Ucrânia por Moscou levou a Europa a afastar-se do gás russo que alimentava a indústria alemã. E o aprofundamento da estratégia “Made in China” de Pequim está transformando um enorme mercado asiático, que outrora foi uma fonte de crescimento para a Alemanha, num rival industrial (…) O impacto na Alemanha tem sido pior do que em qualquer outro lugar da Europa, precisamente devido à sua enorme indústria de transformação, que representa um quinto da produção econômica global do país – quase o dobro da de França ou da Grã-Bretanha.”
Não há como essas dificuldades econômicas não terem impactos políticos. Na ausência de uma alternativa democrática e progressista para o enfrentamento dessas dificuldades, o que vem ganhando corpo na Alemanha, como de resto em toda a Europa, são as forças de extrema-direita. No caso da Alemanha, o “Alternativa para a Alemanha”, um partido de extrema-direita que, segundo os serviços de inteligência alemães, dos seus 28 mil membros, 10 mil, sobretudo de sua ala jovem, são extremistas, muitos envolvidos em acusações criminais, incluindo uma conspiração frustrada em 2022 para derrubar violentamente o governo, não só é o partido mais popular nos três estados que realizam eleições este ano, como também alcança 20% das sondagens em nível nacional.
Já tendo passado pela traumática experiência do nazismo, quando os nazistas usaram as eleições para tomar as rédeas do Estado e moldar um sistema autoritário, as forças democráticas da Alemanha se veem diante de um dilema: até onde uma democracia deve ir para restringir um partido que muitos acreditam estar empenhado em miná-la, sem que isso signifique matar a própria democracia?