Apesar de a economia mundial ter apresentado um bom desempenho no primeiro semestre de 2021, sobretudo quando comparado ao mesmo período do ano anterior, momento em que a atividade econômica atingiu o fundo do poço, nocauteada pela pandemia da covid-19, não há motivos para acreditar que a crise já possa ser vista pelo retrovisor. As ameaças que estão à frente não são poucas e nuvens pesadas se acumulam novamente no horizonte.
O lento avanço no processo de vacinação nos países pobres e em desenvolvimento e o surgimento de novas cepas do coronavírus, como a variante Delta, muito mais transmissíveis e capazes de evadir-se das vacinas, podem provocar novos ciclos recessivos nas principais economias do mundo e jogar areia na engrenagem do crescimento global no segundo semestre de 2021.
Os dois principais motores do crescimento mundial nos últimos anos, a China e os Estados Unidos, dão sinais de que estão começando a desacelerar. Como destaca Ruchir Sharma, do Financial Times, “A China respondeu por mais de um terço do crescimento da economia mundial nos últimos cinco anos. Hoje, uma desaceleração de um ponto percentual no país tira 0,33 ponto do crescimento do PIB global, de modo que o mundo tem motivos para se preocupar quando Pequim aperta os parafusos”.
Depois de crescer 18,3% no primeiro trimestre do ano, a economia da China avançou 7,9% no segundo trimestre, o que corresponde a um crescimento de 12,7% no primeiro semestre de 2021 em relação ao mesmo período de 2020. Embora o governo chinês não tenha estabelecido uma meta específica de crescimento, há um piso de 6% para este ano, a ser alcançado sem maiores problemas. Taxas de crescimento na casa dos 10% ao ano, que marcaram a expansão chinesa durante várias décadas, são coisas do passado.
Na medida em que a China vai superando a etapa “fácil” do crescimento, que consistia em trilhar o caminho já aberto por outros, e passa, ela própria, a ter que abrir novos caminhos e desbravar novas fronteiras tecnológicas, é natural que as taxas de crescimento do país convirjam para a média das economias desenvolvidas. Além disso, o fato de a China também depender cada vez mais do consumo interno como principal motor de desenvolvimento da sua economia também tende a moderar suas taxas de crescimento. No primeiro semestre do ano, as vendas no varejo cresceram 23% em relação ao mesmo período do ano passado, enquanto no segundo trimestre, eles aumentaram 13,9% em relação ao ano anterior.
A alta do crédito de longo prazo, outro indicador importante para o crescimento, sobretudo dos investimentos, permaneceu fraca enquanto o governo chinês implementa políticas para controlar a alavancagem e acalmar o mercado imobiliário. Espera-se que esses esforços para reduzir o endividamento exerçam pressão baixista sobre o crescimento chinês nos próximos anos.
A revista inglesa The Economist adverte, em sua edição de 24 de julho, que “era inevitável que o crescimento econômico global diminuísse em relação ao ritmo alucinante estabelecido à medida que as economias se recuperavam da pandemia. Ultimamente, os investidores começaram a se preocupar com algo pior: que a economia dos Estados Unidos, que liderou a recuperação do mundo rico, possa desacelerar acentuadamente. Além dos gargalos de oferta e da retirada dos estímulos econômicos, o país, como muitos outros, agora enfrenta a variante Delta, ultra infecciosa. Uma desaceleração dolorosa permanece improvável. Mas a nova disseminação do vírus é o maior desses três perigos”.
Nouriel Roubini, economista norte-americano famoso por alertar, em 2005, para os riscos do mercado imobiliário americano que desaguaram na crise financeira global de 2008, alerta que “as proporções da dívida são muito mais altas do que na década de 1970, e uma mistura de políticas econômicas frouxas e choques negativos de oferta ameaçam alimentar a inflação em vez de deflação, criando o cenário para a mãe das crises de dívida estagflacionárias nos próximos anos”. É um cenário bastante sombrio, mas não pode ser descartado.
A dominância financeira sobre a dinâmica da economia global tende a tornar os ciclos econômicos cada vez mais instáveis e imprevisíveis, quando os estágios de acumulação do capital perdem sua ancoragem na economia real e a liquidez do sistema financeiro internacional, turbinada pelas plataformas digitais, torna-se quase absoluta. Em artigo recente, o economista grego Yanis Voroufakis afirmou que “hoje, a economia global é alimentada pela geração constante de dinheiro do banco central, não pelo lucro privado. Enquanto isso, a extração de valor tem cada vez mais se deslocado dos mercados para plataformas digitais, como Facebook e Amazon, que não operam mais como empresas oligopolistas, mas sim como feudos ou propriedades privadas”.
A revista inglesa The Economist, em artigo na edição de 10 de julho, comemora a retomada do crescimento, mas alerta para os riscos que se escondem sob a exuberância aparente. Segundo a revista, “Qualquer fuga da Covid-19é motivo de comemoração. Mas a economia em expansão de hoje também é uma fonte de ansiedade, porque três falhas estão abaixo da superfície”. A primeira falha é a má distribuição das vacinas, que criou um mundo em duas velocidades. Apenas uma entre quatro pessoas já recebeu a primeira dose da vacina no mundo e apenas uma em oito recebeu as duas doses.
A segunda falha é o descompasso entre oferta e demanda. A falta de microchips interrompeu a fabricação de produtos eletrônicos e carros justo quando os consumidores começam a voltar às compras. Os custos do frete de mercadorias da China para os portos do Ocidente quadruplicaram em relação ao seu nível pré-pandêmico e, em alguns países, observa-se a escassez estrutural de mão-de-obra no setor de serviços.
A terceira falha, segundo a revista, diz respeito ao que poderá ocorrer na medida em que os estímulos estatais, que mantiveram as economias funcionando, forem retirados. Segundo a revista “Em algum momento, as intervenções estatais iniciadas no ano passado devem ser revertidas. Os bancos centrais do mundo rico compraram ativos no valor de mais de US $ 10 trilhões desde o início da pandemia e estão nervosamente considerando como se libertar sem causar uma oscilação nos mercados de capitais, apertando muito rápido. A China, cuja economia não encolheu em 2020, oferece um sinal do que está por vir: apertou a política de crédito neste ano, desacelerando seu crescimento”.
Por último, mas não menos relevante, é preciso considerar como os fatores de ordem geopolítica afetarão o crescimento econômico global nos próximos meses e anos. Até recentemente considerações de natureza econômica vinham funcionando como uma trava na deterioração do ambiente geopolítico global, nomeadamente nas relações entre Estados Unidos e China. Ou seja, os interesses dos grandes conglomerados econômicos multinacionais acabavam, em última instância, sobrepondo-se às disputas geopolíticas e estabelecendo os seus limites. Tudo indica que a balança está começando a pender para o outro lado, seja porque a identificação desses grandes grupos econômicos com seus países de origem é cada vez mais fraca, seja porque considerações de ordem estratégica estão se agregando às de ordem econômica na medida em que os Estados Unidos sentem sua primazia cada vez mais ameaçada pelo avanço da China.