Duas matérias publicadas no mês de julho nos jornais Valor Econômico (13/7) e o Estado de S.Paulo (16/7), abordam o tema da falta de remédios básicos, tanto na rede pública de saúde como em farmácias e hospitais particulares. Em ambas as reportagens são apontadas diversas causas, mas as duas destacam que a principal dificuldade é a importação de insumos básicos para produção dos medicamentos, também conhecidos como IFA (Insumos Farmacêuticos Ativos). Esses IFAs, também chamados de princípios ativos, são aquelas moléculas usadas em quantidades muito pequenas, na ordem de miligramas, que agem no organismo humano no combate às doenças. Como sua administração em quantidades tão diminutas seria impossível, são misturadas a outros produtos chamados de excipientes, como celulose, lactose, dióxido de silício, caramelose sódica, talco, óxido de ferro e uma infinidade de outros produtos para dar formato às cápsulas e comprimidos, para que possam ser engolidas ou injetadas e esses princípios ativos liberados no organismo humano. Sem esses IFAs, portanto, não dá para fazer o medicamento; sem eles, o remédio viraria apenas uma cápsula de talco ou de qualquer um desses excipientes sem eficácia.
O processo de produção do medicamento envolve várias etapas, das quais a mais e importante e, geralmente a mais lucrativa, é a produção do IFA ou princípio ativo. Dali para a frente é só misturar, fazer os comprimidos, embalar, distribuir etc. Como esses IFAs são utilizados em quantidades mínimas em cada comprimido ou cápsula, sua produção não ocorre em grandes volumes, mas, no máximo, em quilos. E um quilo desses princípios ativos podem custar uma fortuna, na casa das centenas de milhares de dólares. Segundo o último levantamento da Associação Brasileira da Indústria de Insumos Farmacêuticos (Abiquifi), em 2019, o Brasil importou US$ 2,26 bilhões em insumos farmacêuticos ativos.
Para os grandes laboratórios farmacêuticos internacionais, um oligopólio de uma dúzia de empresas multinacionais que dominam a produção de medicamentos, obviamente não interessa sair construindo fábricas para produzir esses princípios ativos pelo mundo afora. Por várias razões: primeiro por economia de escala. Se esses produtos são produzidos em quilos e não em toneladas, faz mais sentido concentrar a produção em um lugar só, pois com isso se economiza em capital fixo, máquinas, instalações etc. Mas talvez a razão mais importante nem seja essa. A questão central é o controle sobre o conhecimento.
Houve um tempo em que o valor de uma empresa era medido principalmente por seu capital fixo. Como o conhecimento científico por trás das principais invenções da primeira e da segunda revolução industrial estavam amplamente difundidos, a propriedade dos meios de produção, nos quais estava materializado esse conhecimento, era o fator mais relevante. Para se fazer um motor de ciclo Otto (gasolina) ou ciclo Diesel, a ciência envolvida era basicamente o conhecimento das leis da termodinâmica, que se aprendia no ginásio. O grande desafio era construir uma fábrica, produzir ou adquirir as máquinas e equipamentos, construir laboratórios de controle de qualidade, produzir enfim todas aquelas coisas que nos acostumamos a ver nas grandes fábricas. Enquanto vigorou esse paradigma, o valor de uma empresa estava sobretudo nos seus ativos materiais, prédios, máquinas, equipamentos etc.
Mas com o advento da chamada Terceira Revolução Industrial lá pela segunda metade do século passado as coisas começaram a mudar. Inovações na área de microeletrônica, microbiologia, nanotecnologia, tecnologia de informação alteraram completamente os termos da equação. Agora, para saber o valor de uma empresa não bastava olhar para seu ativo fixo, mas aquela outra parte do balanço, onde estavam registrados seus ativos imateriais, ou seja, o conhecimento.
No caso da indústria farmacêutica, o desenvolvimento de um novo princípio ativo tornou-se uma atividade que envolvia investimentos na casa das centenas de milhões de dólares. Obviamente, uma empresa que gastasse um montante dessa ordem para desenvolver um novo medicamento para recuperar o dinheiro investido precisava pensar em dominar não cinco ou dez por cento do seu mercado nacional, mas sim do mercado mundial. E assim também ocorreu em outras áreas. Difícil encontrar qualquer ramo de atividade de alta tecnologia que não seja dominado mundialmente por meia dúzia de empresas. Tome-se a área de microprocessadores; três empresas – TSMC, de Taiwan, Intel, dos Estados Unidos, e Samsung da Coréia do Sul – dominam o mercado mundial. Na área de fabricação de máquinas de litografia usadas para gravar chips de ponta há uma única empresa que domina todo o mercado mundial, a ASML, da Holanda.
Tudo isso levou a um processo inédito de concentração do capital no mundo e à pressão dessas empresas, não só químicas e farmacêuticas, mas em todas as áreas de tecnologia de ponta, por mudanças nas regras internacionais de comércio de forma a alcançar duas coisas. Primeiro a desregulação do mercado internacional, de forma a permitir que o campo de livre atuação dessas empresas deixasse de ser apenas seus mercados nacionais, mas o mundo todo. A ideia era “nivelar o campo de competição” ou nas palavras de jornalista Thomas Friedman, que escreveu um livro famoso a respeito do tema, “aplainar o mundo”. Era preciso que os países renunciassem a parte de poder para fazer regras regulando a atividade econômica em seus territórios e passassem a aceitar leis e regras globais, que permitissem a essas empresas organizar seus negócios em escala mundial, sem serem molestadas por governos com pendores nacionalistas querendo impor normas locais que poderiam dificultar seus negócios.
A segunda questão, tão ou mais importante, era a proteção do conhecimento. Como o conhecimento havia se tornado o principal ativo das empresas, era preciso que se estabelecessem regras muito mais rígidas para sua proteção. As velhas regras sobre patentes não serviam mais, pois ofereciam proteção limitada ao inventor, uma vez que seu objetivo era, a troco de um monopólio temporário, incentivá-lo a dividir seu conhecimento com toda a sociedade. Mas agora a coisa toda tinha mudado. Proteger o conhecimento por meio de leis de patentes mais rígidas ou segredo de negócios era essencial para preservar o valor da empresa.
A esta altura estávamos em meados da década de 1980 e o GATT (Acordo Geral de Comércio e Tarifas), organização que estabelecia as regras para o comércio internacional, iniciava sua sétima rodada de negociações, a Rodada Uruguai. Nas seis rodadas anteriores, realizadas entre 1949, quando o GATT foi criado, e em 1986, quando se iniciou a Rodada Uruguai, em Punta Del Este, discutiram-se apenas tarifas aduaneiras. Mas o paradigma havia mudado. Para “aplainar o mundo” era preciso estabelecer regras globais não só para o comércio, mas para toda a atividade econômica, nomeadamente para a proteção dos investimentos no exterior e um rigor muito maior na proteção do conhecimento.
Foi daí que nasceram os dois acordos que viriam a atender aos reclamos das grandes multinacionais, principalmente de medicamentos: o acordo chamado TRIMS que obrigava os membros da nova organização criada ao final da Rodada Uruguai (1984-1994), a Organização Mundial do Comércio (OMC), sobretudo os países em desenvolvimento, a renunciarem aos velhos mecanismos de política industrial que permitiram aos países ricos proteger sua indústria local e chegar aonde chegaram, e o acordo TRIPS, aumentando o nível de proteção sobre o conhecimento. Dentre as várias inovações introduzidas por pressão da indústria farmacêutica, uma foi estender o prazo de proteção das patentes de dez para vinte anos; a outra foi criar a chamada “patente de importação”.
E o que era isso? Até então, os países membros da Organização Mundial de Propriedade Intelectual (OMPI), concebida no século 19 (nossa adesão foi assinada pelo Imperador Pedro II, antes que Estados Unidos, Japão ou Suíça começassem a reconhecer patentes) eram obrigados a reconhecer patentes apenas para produtos produzidos em seu território. Se uma empresa quisesse que seu produto fosse protegido naquele país tinha que produzi-lo lá. Caso contrário, qualquer um poderia copiar. Os países também não eram obrigados a reconhecer patentes em todos os setores. Com a mudança do controle sobre o tema da OMPI para a OMC e a criação da patente de importação essa exigência desapareceu. Desde que uma empresa garantisse o abastecimento local por meio de importações poderia ter a proteção patentária em qualquer país, mesmo sem ali produzir o produto. Era tudo que as multinacionais de medicamentos queriam.
Isso tudo nos remete à questão inicial: por que estão faltando remédios nos hospitais e farmácias? Por uma razão muito simples. Com essas novas regras estabelecidas pelo TRIPS as empresas multinacionais que fabricam medicamentos no Brasil não precisam mais produzir os IFAs por aqui. E o Brasil que, cinquenta anos atrás, era praticamente autossuficiente na produção de antibióticos, hoje depende da importação dos IFAs para produzir amoxicilina e até dipirona, produtos em falta nas farmácias.
Veja o que diz a matéria do jornal Valor Econômico a que nos referimos no início: “Na década de 1980, chegamos a produzir 50% dos IFAs. Hoje, só produzimos 5%. Se a situação geopolítica se deteriorar na Ásia por conta da guerra, vamos acabar mendigando IFA, de pires na mão, aos Estados Unidos”, teme Andersen, que conta que a Abiquifi está tentando sensibilizar o Executivo para a questão e está dialogando com o Ministério da Saúde, o Ministério da Ciência e Tecnologia; Finep; Senai e Embrapii em busca de soluções em parceria”.
Veja, ainda, o que fala a mesma matéria: “A multinacional suíça Roche, por exemplo, encerrou a produção de dez itens entre 2018 e 2021. Entre eles, estavam cinco marcas populares para insônia, ansiedade e síndrome do pânico. Em nota, a companhia informa que sua estratégia global é concentrar os esforços em produtos inovadores, de alta complexidade e baixo volume de produção. Já o laboratório goiano Teuto, que produzia 50% da dipirona injetável no país, suspendeu a fabricação em maio, alegando que o alto custo do IFA inviabilizou as operações. A produção foi paralisada por tempo indeterminado. A cearense Farmace está fabricando o analgésico normalmente, mas não dá conta — a demanda nacional é de 30 milhões de ampolas/mês e sua capacidade produtiva é de 10 milhões de ampolas/mês. A francesa Sanofi está produzindo o item normalmente também, mas, com a demanda pelo analgésico nas alturas, não está sendo capaz de suprir o país o suficiente. Trata-se, hoje, do remédio que mais falta em almoxarifados do SUS em 23 estados”.
Aqui se faz, aqui se paga. Quando, na década de 1990, o Brasil mudou sua lei de patentes para se adaptar às novas regras do TRIPS não era preciso adotar uma lei tão rígida como a que foi aprovada pelo Congresso brasileiro, indo além do que exigia a própria OMC em pontos importantes, por pressão do lobby da indústria farmacêutica junto ao Executivo e Legislativo. A Índia não aceitou e fez uma lei muito mais favorável à sua indústria nacional. Resultado: enquanto importamos 95% do IFA utilizado no país, a Índia é um dos maiores exportadores do mundo. E assim conclui a já citada matéria do Valor: “A baixa produção nacional de insumos farmacêuticos ativos, os IFAs, sobretudo aqueles necessários à manufatura de remédios básicos, é apontada por especialistas como uma das causas centrais do desabastecimento. Atualmente, 95% dos insumos são importados da China, Índia, Europa e Estados Unidos. Disrupções nas cadeias globais de suprimento resultam no fenômeno”.