Solidariedade Ibero-Americana – fevereiro de 2021.
Além da devastação das vidas perdidas, a pandemia de Covid-19 está desnudando de forma insofismável a natureza corrompida e excludente da ordem global, com a virtual monopolização da vacinação pelas nações mais ricas, enquanto a maioria da população mundial fica desamparada. Esta ordem de egoísmo institucionalizado também se estende às elites nacionais, que buscam privilegiar os seus núcleos de poder e privilégios, em detrimento da maioria das suas sociedades. Este fenômeno, que poderia ser meramente atribuído a uma visão distorcida da natureza humana, na realidade, é uma distorção promovida pela prevalecente ordem econômica e social “darwinista” (ou, mais rigorosamente, “spenceriana”, pois o criador do darwinismo social foi Herbert Spencer, e não Charles Darwin), que, em nome da modernidade “globalista”, promove entre as nações e os indivíduos o princípio da “sobrevivência dos mais aptos”. Ou tomando de empréstimo as quase esquecidas lições de Platão, o que poderíamos chamar o “Princípio de Trasímaco”, em referência ao truculento personagem da sua República, para quem a justiça é o interesse dos mais fortes.
A distribuição mundial da campanha de vacinação contra a Covid-19 tem ressaltado as desigualdades globais. Até fevereiro, os dez países mais ricos respondiam por três quartos das vacinas aplicadas no mundo, enquanto mais de 100 países não haviam sequer iniciado suas campanhas.
De fato, é difícil se escapar à constatação de que grande parte do mundo é governada por estruturas de egoísmo institucionalizado, tanto entre os países como dentro deles, com determinação crescente para submeter a grande maioria das sociedades aos seus desígnios exclusivistas, entanto as mantêm distraídas, confundidas e dominadas, por meio de agendas diversionistas, como o radicalismo ambientalista, a defesa de uma imagem distorcida dos direitos humanos e da democracia ou a chamada pauta identitária, que enfatiza uma plêiade de alegados direitos individuais e os coloca acima dos interesses maiores das sociedades e da promoção do Bem Comum.
Tal situação foi o tema da categórica advertência do chanceler mexicano Marcelo Ebrard, em uma videoconferência do Conselho de Segurança das Nações Unidas, em 17 de fevereiro: dez países que representam 60% do Produto Interno Bruto (PIB) global aplicaram três quartos das primeiras doses das vacinas contra a pandemia de Covid-19, enquanto há mais de 100 países que não aplicaram uma sequer.
“Nunca havíamos visto uma divisão tão profunda, que afetasse a tantos em tão pouco tempo… Urge reverter a injustiça que está se cometendo, porque disto depende a segurança de toda a humanidade. ” – sentenciou ele (BBC Mundo, 17/02/2021).
Por ironia, Ebrard falava em nome da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC), da qual o México ocupa a presidência rotativa (e da qual o Brasil se afastou).
A ironia fica por conta da desastrosa conduta de grande parte das elites dirigentes do subcontinente ibero-americano, a qual está agravando ainda mais o enfrentamento da pandemia na região, que responde por 25% das mortes por Covid-19 em todo o mundo, embora represente apenas 8,5% da população mundial.
Na Argentina, Peru e Equador, os ministros da Saúde se viram forçados a renunciar, por favorecimentos indevidos a parentes, correligionários e membros das elites locais, nos respectivos programas de vacinação. No Brasil, seis governadores estão sob investigações da Polícia Federal e sete secretários de Saúde estaduais já foram afastados por suspeitas de corrupção na compra de equipamentos e na construção de instalações de emergência para o combate à pandemia, além de numerosas outras irregularidades já comprovadas. Antes do início da vacinação, órgãos do Poder Judiciário tiveram o desplante de reivindicar prioridade no recebimento das vacinas. E, em praticamente todos os países, multiplicam-se as denúncias de favorecimentos nas filas de prioridades.
O desequilíbrio na disponibilidade das vacinas, citado por Ebrard, é apenas a ponta do iceberg da atuação de tais estruturas de egoísmo, epitomizadas na “globalização financeira” das últimas décadas, cuja principal façanha tem sido o aprofundamento das desigualdades socioeconômicas em escala global, tanto entre os países como dentro deles.
A tendência é comprovada por numerosos estudos e admitida até mesmo por organismos multilaterais, como o Fundo Monetário Internacional (FMI), Banco Mundial, Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD) e outros.
O aspecto mais trágico desse quadro é a constatação de que, pela primeira vez na História, a humanidade dispõe de conhecimento e condições objetivas para concretizar uma meta que até há pouco pareceria utópica: proporcionar que virtualmente todos os habitantes do planeta, em uma geração ou pouco mais, possam aspirar a níveis de vida dignos e próximos dos conquistados pelas nações avançadas. Se esta meta não está na agenda política mundial, não é por insuficiência de recursos humanos, escassez de recursos naturais (inclusive alimentos, matérias-primas, energia e água) ou alguma suposta crise ambiental, como a inexistente influência humana no clima global – mas pela hegemonia das estruturas de egoísmo e o desconhecimento da grande maioria da população esclarecida sobre o seu funcionamento e influência nas políticas públicas que influenciam diretamente o seu cotidiano e suas vidas.
No ápice de tais estruturas encontra-se o sistema financeiro internacional “globalizado”, de longe, o maior obstáculo e fator de “insustentabilidade” para um desenvolvimento cooperativo e harmônico da humanidade, que lhe permita deixar para trás três séculos de uma modernização bastante seletiva da economia mundial e de avanço irregular do processo civilizatório, refletidos no aprofundamento das desigualdades e do déficit global de justiça que se mostra na resposta à pandemia.
O Brasil foi atingido pela pandemia em meio a uma estagnação socioeconômica que se arrasta desde 2015, sem perspectiva de superação com as políticas econômicas vigentes e agravada pela temerária passividade com que suas elites dirigentes assistem à deterioração das suas capacidades produtivas – com exceção do setor agropecuário –, de pesquisa e inovação, requisitos insubstituíveis para a retomada de um processo de desenvolvimento de longo prazo e para o enfrentamento dos grandes desafios das próximas décadas.
Junto com ela, uma fragmentação raivosa que tem dividido grande parte da sociedade entre linhas de fratura políticas e ideológicas, dificultando a abertura de canais de entendimento para o enfrentamento dos graves problemas nacionais e facilitando a atuação das estruturas de egoísmo hegemônicas, igualmente, capitaneadas pelo sistema financeiro.
Não por acaso, o País é o vice-campeão mundial de mortes por Covid-19.
Desafortunadamente, para si próprio e para a Ibero-América, o Brasil se omitiu da responsabilidade de encabeçar uma resposta coordenada de toda a região à emergência sanitária, posição que lhe cabia pelas suas dimensões e capacidades científicas e industriais, ainda significativas, e por ser membro do grupo BRICS, no qual Rússia, China e Índia despontam como líderes na produção de vacinas. Todavia, mesmo com atraso, é imprescindível que se articule com países de peso, como o México, Argentina e outros, para retomar a agenda da integração ibero-americana, reorientada em torno da emergência pandêmica e da promoção de uma ordem mundial mais justa e equitativa.