O conflito Estados Unidos – China frente aos interesses das corporações privadas

    Durante o período da Guerra Fria, a formulação da estratégia de enfrentamento entre as duas grandes potências – os Estados Unidos e a ex-URSS – podia se dar ao luxo de ignorar as relações econômicas, dado o limitado intercâmbio comercial existente entre elas. Isso não é mais possível. A corrente de comércio entre Estados Unidos e União Soviética durante todo o ano de 1979, quando chegou ao seu pico, foi de US$ 4,5 bilhões.  O comércio entre Estados Unidos e China alcançou, em 2023, US$ 758 bilhões. Ou seja, o que a ex-URSS e os Estados Unidos comercializam entre si em um ano, na década de 1970, corresponde, hoje, às trocas comerciais entre Estados Unidos e China em dois dias.

    Se a globalização não é propriamente algo novo, a grande novidade é a emergência da rivalidade entre grandes potências em um mundo altamente conectado. Nessa nova conjuntura, os interesses geopolíticos dos países não são necessariamente os mesmos das empresas multinacionais localizadas em seus territórios. Querer controlar e coordenar tudo o que as empresas realizam em nível bilateral é uma tarefa impossível, sobretudo nos Estados Unidos. Como afirmou Rana Foroohar, em artigo para o Financial Times (18/03), “a América pode ser descrita como uma grande corporação burocrática, um conglomerado tão massivo, complexo, diversificado e interessado que é difícil para ele trabalhar de forma eficaz ou produtiva. As operações são isoladas. A procura de renda é abundante. As divisões não podem trabalhar juntas.”

    Quando os Estados Unidos resolveram ir com tudo para cima da China, impondo tarifas às exportações chinesas, impedindo empresas dos Estados Unidos e de seus aliados europeus de vender equipamentos de alta tecnologia para clientes chineses, como os semicondutores mais avançados utilizados em smartfones e nas ferramentas de inteligência artificial e as máquinas para a produção de chips, ou impedindo empresas americanas de investir na China, também impuseram pesadas perdas para grandes e mesmo pequenas empresas norte-americanas. Impedidas de importar ou exportar para a China, essas empresas amargam prejuízos, perdem oportunidades de negócios e veem seus mercados serem abocanhados por concorrentes de outras partes do mundo.

    Isso para não falar nos danos impingidos aos consumidores em geral. Durante os últimos 20 anos, até as vésperas da pandemia da Covid-19, a inflação nos Estados Unidos manteve-se abaixo dos 2% graças à importação de produtos baratos da China que abasteceram todos os lares norte-americanos.

    Tomemos o caso recente da TikTok, plataforma de compartilhamento de vídeos curtos de propriedade da empresa chinesa de tecnologia ByteDance, que se tornou febre entre os adolescentes americanos. Segundo a revista The Economist (13/03), 170 milhões de americanos permanecem em média 56 minutos por dia com os olhos colados nesta plataforma.

    Alegando questões de segurança nacional, o que no caso de uma plataforma que compartilha passos de dança e outras futilidades entre adolescentes é altamente duvidoso, a Câmara dos Representantes dos Estados Unidos aprovou, em 13 de março, um projeto de lei que forçaria o proprietário chinês do TikTok, ByteDance, a vender o aplicativo a um proprietário de outra nacionalidade, ou então enfrentaria uma proibição nos Estados Unidos.”

    De acordo com a mesma revista (21/03), depois que a Câmara de Representantes dos Estados Unidos aprovou o projeto, que ainda precisa ser aprovado pelo Senado, Steven Mnuchin, ex-Secretário do Tesouro dos Estados Unidos no governo Trump, disse que estava tentando comprar o TikTok.

    Segundo o Wall Street Journal (16/3), “O governo chinês está sinalizando que não permitirá a venda forçada do TikTok, limitando as opções para os proprietários do aplicativo, à medida em que potenciais compradores começam a fazer fila para adquirir suas operações nos EUA. As autoridades chinesas criticaram os EUA por terem como alvo o aplicativo de compartilhamento de vídeos curtos. Eles também enviaram sinais ao proprietário do TikTok, ByteDance, com sede em Pequim, que os executivos da empresa interpretaram como significando que o governo preferia que o aplicativo fosse banido nos EUA do que vendido, de acordo com pessoas familiarizadas com o assunto.”

    Mas quais serão as consequências caso de fato o aplicativo seja banido dos Estados Unidos? Além dos prejuízos bilionários para os investidores americanos que já possuem mais de 60% das ações da empresa que tem sede em Los Angeles e Singapura e para os milhares de produtores de conteúdo que monetizam seus vídeos, quem vai mais ganhar com isso é a Meta, dona do Facebook, Messenger, WhatsApp e Instagram, aumentando ainda mais seu monopólio sobre as redes sociais nos Estados Unidos e no mundo.

    Segundo o Financial Times (14/03), “cerca de 60 % do grupo [TikTok] são, na verdade, propriedade de investidores “internacionais”, na sua maioria americanos. Estima-se que foram investidos 8 bilhões de dólares por empresas de capital privado, incluindo a Sequoia Capital, a Susquehanna, a General Atlantic e a Coatue Management. Os principais fundos de investimento, como Fidelity, T Rowe Price e BlackRock, também estão expostos”.  Caso o aplicativo seja banido dos Estados Unidos, de quanto será o prejuízo de todos esses investidores?

    Como destacou a mesma matéria “Há uma grande lição para os investidores aqui. Mais notavelmente, revela um paradoxo que agora assombra os mercados. Por um lado, o preço de muitos ativos, incluindo ações e obrigações, subiu de uma forma que sugere que os investidores não estão apenas otimistas quanto às perspectivas econômicas de curto prazo – mas também confiantes de que podem prever a trajetória de médio prazo como esperado. Bem. Por outro lado, como salienta Ángel Ubide, chefe de análise macro da Citadel, o mundo enfrenta atualmente mais perigos a médio e longo prazo do que a maioria dos investidores alguma vez viu na vida, sejam eles a política interna, as tensões geopolíticas, o clima mudança ou inovação. Abunda uma sensação de dissonância cognitiva, criando potencial para choques – bons e ruins.”

    E para onde iriam as verbas publicitárias que alimentam o faturamento do TikTok que, segundo o Wall Street Journal (22/03), foram de US$ 20 bilhões no ano passado? Segundo a revista The Economist, “Se os anunciantes fossem forçados a transferir os seus gastos do TikTok, as empresas nacionais de redes sociais dos Estados Unidos teriam uma sorte inesperada. Nem todos se beneficiarão igualmente. De acordo com a Kepios, uma empresa de pesquisa, 82% dos TikTokers globais usam o Facebook, 80% acessam o Instagram e 78% assistem ao YouTube, que é propriedade da controladora corporativa do Google, a Alphabet. Apenas 53% usam o X, o fórum de debates anteriormente conhecido como Twitter, e apenas 35% estão no Snapchat, um aplicativo de mensagens. Se os americanos redirecionarem os cerca de 3 trilhões de minutos de atenção que dedicaram ao TikTok no ano passado para outros aplicativos já instalados em seus telefones, Meta e Alphabet, a dupla dominante na publicidade online, serão os vencedores.”

    O caso da TikTok, contudo, é apenas um entre muitos em que o interesse das empresas e dos investidores não necessariamente coincidem com o que os governos acham ser o interesse nacional. Matéria do Financial Times republicada pelo jornal Valor Econômico (12/03), informa que “O executivo-chefe da Mercedes-Benz, Ola Källenius, fez um apelo a Bruxelas para que reduza as tarifas sobre os veículos elétricos importados da China, exatamente quando a Comissão Europeia analisa a possibilidade de aumentar impostos de importação, em meio a uma investigação sobre subsídios de Pequim para sua indústria automobilística. Na avaliação de Källenius, o aumento da concorrência por conta da China ajudaria os fabricantes europeus de automóveis a produzirem carros melhores no longo prazo. Ele afirmou que o protecionismo “vai na direção errada”. “Não aumente as tarifas. Eu sou do contra, acredito que devemos fazer o inverso: pegar as tarifas que temos e reduzi-las”, disse ele ao Financial Times.

    Obviamente a Mercedez e outras montadoras europeias têm negócios na China e não querem ver seu acesso ao mercado chinês dificultado por eventuais represálias da China na hipótese de a União Europeia taxar ainda mais os carros chineses vendidos na Europa. Segundo a Folha de S. Paulo (15/3), “Mais de um em cada três carros da Mercedes-Benz são vendidos na China, enquanto o país representou 40% das vendas de carros da Volkswagen no ano passado.”

    Segundo o South China Morning Post (23/03), “Um antigo enviado chinês aos Estados Unidos instou a cadeia de café norte-americana Starbucks a promover o intercâmbio entre os dois países dizendo que a empresa poderia “desempenhar um papel positivo no avanço [dos laços bilaterais]”. Cui Tiankai, o embaixador mais antigo de Pequim em Washington, fez a ligação em uma reunião com o ex-presidente executivo da Starbucks, Howard Schultz, no Starbucks Reserve Roastery, no distrito de Jingan, em Xangai, na sexta-feira. “Encorajamos a Starbucks a fazer mais contribuições para promover o entendimento mútuo entre a China e os Estados Unidos e os seus povos”, disse Cui, acrescentando que a China ofereceu um “vasto mercado” à cadeia”. Ainda segundo o jornal, a China é o maior mercado para a gigante do café fora dos Estados Unidos, com cerca de 6.500 lojas Starbucks em 250 cidades chinesas no final do ano passado. A Starbucks planeja aumentar esse número para 9.000 unidades até 2025.

    Ainda de acordo com o South China Morning Post (23/03), de Hong Kong, o presidente executivo da Apple, Tim Cook, também parou em Xangai na sexta-feira, a caminho de Pequim para a CDF [China Development Forum 2024], onde os executivos dos EUA deverão constituir a maior delegação. Cook encontrou-se com o ministro do Comércio, Wang Wentao, dizendo que a China era “um mercado importante” e “um parceiro chave na cadeia de abastecimento” para a Apple. “A Apple continuará comprometida com o desenvolvimento de longo prazo na China e aumentará o investimento na cadeia de suprimentos, pesquisa e desenvolvimento e vendas da China”, disse Cook.

    Outro exemplo de como nem sempre os interesses das empresas e mesmo dos países coincidem com as estratégias de confronto advogadas pelos governos vem da indústria farmacêutica. De acordo com o jornal japonês Nikkei Asia (23/3), “Nas últimas semanas de 2022, uma pequena equipe de inspetores da Food and Drug Administration dos EUA estava longe de casa, investigando uma fábrica farmacêutica no oeste da Índia. A farmacêutica indiana Intas estava fabricando medicamentos contra o câncer para os Estados Unidos na fábrica onde, num caixote do lixo, os inspetores encontraram documentos embebidos em ácido acético. Mais documentos com dados de fabricação e testes de drogas foram destruídos e guardados em sacos plásticos sob uma escada, indicando que os executivos do Intas manipularam dados e tentaram encobri-los. Seis meses depois, a FDA classificou os medicamentos como adulterados e suspendeu as importações da planta, contribuindo para uma grave escassez de medicamentos contra o câncer que salvam vidas nos Estados Unidos. Médicos norte-americanos dizem que a escassez de medicamentos contra o câncer pode levar a milhares de mortes. A crise obrigou Washington a recorrer à China, apesar dos esforços mais amplos para reduzir a sua dependência da nação. A Qilu Pharmaceutical da China foi chamada para compensar o déficit”.

    Luís Antonio Paulino
    Luís Antônio Paulino é professor doutor associado da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e membro da equipe de colaboradores do portal “Bonifácio”.

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