Intérpretes do Brasil – Câmara Cascudo

Luís da Câmara Cascudo

Felipe Maruf Quintas

Luís da Câmara Cascudo (Natal, 1898 – Natal, 1986) foi um dos mais importantes folcloristas e antropólogos brasileiros. Sua copiosa obra constitui um verdadeiro inventário analítico do folclore e da cultura popular do nosso País. Sua produção mais importante, Dicionário do Folclore Brasileiro, estudada em todo o mundo, foi publicada em 1952 pelo Instituto Nacional do Livro e prefaciado por Antônio Balbino, ministro da Educação do segundo governo Getúlio Vargas, em nome do Governo Federal.

Dotado de profundo amor pelo Brasil, Câmara Cascudo, adepto do integralismo na década de 1930, renunciou desiludido a essa ideologia quando os integralistas tentaram depor Getúlio Vargas. Condecorado em 1938 pelo ditador italiano Benito Mussolini, em razão do seu livro “Memória de Stradelli”, sobre um viajante italiano que transitou pelo Rio Amazonas no século XIX, ele devolveu a comenda em 1942 após submarinos italianos torpedearem navios brasileiros. Em suas memoráveis palavras, “Não uso medalhas de quem mata brasileiros”[1].

Câmara Cascudo notabilizou-se pelo estudo metódico e minucioso dos hábitos, costumes, mitos, lendas, ditos e crenças do povo brasileiro, em suma, do folclore nacional. Possuidor de vasta erudição e conhecedor de numerosos autores estrangeiros – cuja discussão ele aprofunda em seu tratado teórico “Civilização e Cultura” (1973) -, ele estabeleceu, como método, a fidedignidade aos modos existenciais tradicionais do povo, evitando qualquer camisa-de-força doutrinária que distorcesse o seu significado. Seu treinamento livresco não bloqueou nem distorceu a sensibilidade para experiência imediata da população simples.

Em sua concepção, haveria, em todos os povos, uma dualidade entre “uma cultura sagrada, oficial, reservada para a iniciação, e a cultura popular, aberta apenas à transmissão oral” (Cascudo, 1988 [1952], p. xxiii). Ambas seriam igualmente caracterizadoras da cultura de cada povo. Porém, se a primeira era amplamente valorizada, estudada e celebrada, faltava elevar o folclore, enquanto manifestação da cultura popular, ao mesmo nível de importância e reconhecimento, de modo a captar o significado autêntico daquilo que, criado pelo povo e a ele pertencente, era “negado pelo letrado, esquecido pelo professor, ironizado pelo viajante”.

Câmara Cascudo dedicou-se, então, a essa tarefa. Para o autor, o folclore seria a “Ciência da psicologia coletiva, cultura do geral no Homem, da tradição e do milênio na Atualidade, do heroico no quotidiano, é uma verdadeira História Normal do Povo” (Cascudo, 1986 [1946], p. 15). Por meio do folclore, seria possível conhecer o que há de habitual e cotidiano no homem, ou seja, conhecer “o que é da terra e fala da terra”. Não se estaria, pois, em presença de um universal abstrato, mas de uma identidade orgânica, definida pelas tradições elaboradas ao longo da história e pelo enraizamento a um corpo coletivo pertencente a determinada espacialidade. Não interessavam a Câmara Cascudo os “cidadãos do mundo”, mas os seres humanos portadores de uma cultura específica e inseridos em um lugar e uma sociedade. Afinal, como ele afirmou, “O Homem é universal fisiologicamente. Psicologicamente é regional” (Cascudo, 2004 [1973], p. 18).

Além da reprodução escrita dos mais variados aspectos folclóricos brasileiros, Câmara Cascudo também investigou as suas origens. Suas conclusões, de que “A proporção entre os elementos indígenas, africanos e brancos no Folclore brasileiro, é 1.3.5” (Cascudo, 1986, p. 19) e que frequentemente ocorre a justaposição de aspectos indígenas e africanos e de portugueses e africanos, são bastante ilustrativas do fato da formação brasileira não ser redutível a apenas um entroncamento continental, mas uma síntese de três fontes heterogeneamente distribuídas. Tão errada quanto a afirmação de uma origem puramente europeia do Brasil seria a da preponderância do africano na nossa história, tão ao gosto do racialismo importado dos Estados Unidos. Cascudo observa, pois, que o Brasil não é nem o prolongamento da Europa tampouco da África, mas uma síntese original em que o elemento ibérico ocupa importância de realce.

Câmara Cascudo atribuía a convivência do índio, do negro e do branco à origem e à riqueza do folclore brasileiro.

A obra de Câmara Cascudo é, portanto, indispensável ao estudo e ao conhecimento da brasilidade profunda, da brasilidade vivida e contada diariamente não pelos mestres eruditos da palavra, não pelos especialistas acadêmicos e científicos, mas pelo povo brasileiro na sua cotidianidade, nas suas relações com o sagrado, no seu modo peculiar de existir coletivamente. É na verdade do povo que o autor procura a verdade do País.

Referências:

CASCUDO, Luís da Câmara (1986 [1946]). Contos Tradicionais do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo.

__________________________ (1988 [1952]. Dicionário do Folclore Brasileiro. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo.

__________________________ (2004 [1973]). Civilização e Cultura. São Paulo: Global.  


[1] https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs27129806.htm

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Mestre e doutorando em Ciência Política na Universidade Federal Fluminense (UFF).

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3 COMENTÁRIOS

  1. Parabéns pelo artigo, Quintas. Você também é um grande intérprete do Brasil. Um intelectual de verdade, preocupado com a questão Nacional e os dilemas do nosso Povo. Me permitindo um trocadilho infame, seu texto é um Cascudo na cabeça dos liberais – dos liberais de esquerda e direita. Saudações Trabalhistas… e Tricolores!

  2. Parabéns pelo artigo- ensaio, Felipe Quintas.
    Câmara Cascudo, foi genial. Profundo na identidade do povo brasileiro.
    – Câmara Cascudo, deu um “:Cascudo ” na concepcão de cultura elitista.

  3. Excelente! Modestamente eu lhe digo que essa é minha leitura sobre a formação do povo brasileiro, ou seja, o resultado de um encontro étnico cultural que a partir daí brotou nossa identidade nacional.

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