Se os eleitores de Javier Milei votaram nele imaginando que fosse fazer o que prometeu podem tirar o cavalo da chuva. Isso não vai acontecer. O que não quer dizer, contudo, que o que virá pela frente seja necessariamente melhor do que as loucuras que propôs em sua campanha eleitoral. Acabar com o Banco Central, dolarizar a economia argentina, romper relações com a China e o Brasil, liberar o uso de armas de fogo pela população e permitir a venda de órgãos estavam entre suas promessas de campanha ou causas que ele apoia. Mas nem tomou posse e já mudou o rumo da conversa, colocando tantos condicionantes para que de fato faça o que prometeu que mesmo que passasse o resto da vida na presidência da Argentina, provavelmente jamais faria. A começar pela proposta que provavelmente mais iludiu os eleitores, a de dolarizar a economia argentina.
Como dolarizar uma economia do tamanho da Argentina se o país tem reservas líquidas negativas de US$ 10 bilhões e só saiu do sufoco nos últimos meses por causa de um empréstimo de 40 bilhões de dólares feito pela China? Como romper com a China e o Brasil se esses são os dois principais mercados para exportação da produção argentina? Em 2022, a Argentina exportou para o Brasil US$ 15,3 bilhões de dólares e importou do Brasil US$ 10,2 bilhões de dólares, gerando um saldo comercial a favor da Argentina de US$ 5,1 bilhões. Tão importante quanto isso é o fato que mais de 80% do que a Argentina exporta para o Brasil são produtos da indústria de transformação, com destaque para caminhões, pick-ups e automóveis, que representam cerca de 40% do total.
Sem o mercado brasileiro, para onde a Argentina poderia exportar esses produtos de maior valor agregado que geram muito mais empregos e com melhores salários do que a produção agrícola? Sem os dólares recebidos da China e do Brasil, a situação cambial do país que já não é boa estaria muito pior. Como passar outras propostas malucas se tem trinta e poucos deputados numa Câmara com mais de duzentos, sendo a maioria de oposição?
O mais provável é que o plano econômico a ser implantado seja o do partido de Macri, seu principal fiador no segundo turno das eleições e que já governou a Argentina por quatro anos antes do atual governo peronista e que deixou o país em pior situação do que lhe entregou a ex-presidente Cristina Kirchner, o que foi decisivo para a volta dos peronistas ao poder. O novo ministro da Economia é Luis Caputo, ex-presidente do Banco Central da Argentina, velho conhecido da banca internacional e integrante de destaque da fina flor dos políticos e empresários que Milei esculhambava em performances midiáticas e que prometeu varrer da vida política argentina caso fosse eleito presidente.
Em reunião com empresários, Caputo em 24/11 já avisou: “Nosso ‘approach’ é um ‘shock’ fiscal e monetário desde o primeiro dia, o roteiro é ortodoxo e sem loucuras”. Ou seja, se Milei, conhecido na Argentina como “el loco”, que ganhou as eleições porque os eleitores achavam que só alguém louco o suficiente poderia dar um jeito na terrível situação do país, já está sendo posto de saída em uma camisa de força pela turma de Macri e Patrícia Bullrich, a terceira colocada no primeiro turno. Ou seja, os eleitores elegeram Milei, mas irão engolir Macri e Bullrich, que sequer para o segundo turno foi. Mal tomou posse é já evidente que Milei cometeu o maior estelionato eleitoral, para decepção de seus desesperados eleitores.
Tudo na vida pode ser visto a partir de duas perspectivas: a da comédia e a da tragédia. Daí o ditado: seria cômico se não fosse trágico. Provavelmente muitos eleitores argentinos foram levados pelo lado cômico de Milei, mas agora deverão se defrontar com o lado trágico de sua escolha. E talvez a maior tragédia não seja o fato de uma figura por demais extravagante ter sido eleito presidente de país tão importante como a Argentina, mas o que de fato sua eleição representa: a total falência do sistema político do país que foi incapaz de gerar uma alternativa que não fosse o continuísmo de um governo que deixa o país com uma inflação de 140% e 40% da população na pobreza ou um aventureiro midiático sem passado e sem futuro. De fato, o que acontece hoje na Argentina seria cômico se não fosse trágico. Mas consolem-se os irmãos argentinos: já passamos por isso no Brasil e sobrevivemos.