Cada vez mais as eleições na América Latina estão deixando de ser – aliás, raramente foram – um acontecimento rotineiro, quando adversários políticos se confrontam dentro dos limites impostos pelas regras democráticas que garantem a alternância do poder, para se tornarem conflitos agudos entre classes e setores sociais cada vez mais antagonizados, nos quais os resultados das urnas são considerados válidos apenas se confirmarem o desiderato das elites econômicas de manterem o poder em suas mãos.
A recente eleição presidencial no Peru, cujo resultado segue pendente, é apenas mais um episódio em uma longa fieira de acontecimentos na região, marcada por golpes e manobras pré ou pós-eleitorais para garantir que os resultados das urnas não fujam do script adrede definido pelos donos do poder. Assim foi no Brasil, em 2016 e 2018, quando um golpe parlamentar tirou do poder a presidente eleita e um julgamento político agora anulado tirou das eleições o candidato que era líder nas pesquisas. Também na Bolívia, em 2019, o presidente eleito foi impedido que assumir por um golpe comandado pela polícia local. Na Nicarágua, o atual presidente, que retornou ao poder em 2008, já mandou prender quatro ou cinco dos possíveis concorrentes para as próximas eleições. No Brasil, forças de direita têm ido para as ruas pedir intervenção militar e fechamento do Supremo Tribunal Federal, com receio de perder as eleições de 2022.
É bem verdade que esse tipo de fenômeno não ocorre apenas na região, haja vista a última eleição nos Estados Unidos e o golpe em Myanmar, neste início de ano, depois que o resultado das eleições frustrou as expectativas dos militares no poder há décadas. Isso para não falar da África, onde disputas tribais, interesses econômicos e a presença cada vez mais ostensiva do terrorismo islâmico mantêm parte considerável do continente em um estado de guerra civil permanente.
Mas o fato é que a sucessão de acontecimentos na América Latina – as manifestações de rua no Chile e na Colômbia, o golpe na Bolívia, a crise na Venezuela, os protestos que nas últimas semanas começaram a ganhar força no Brasil – revelam um estado de crise e frustação da população mais pobre, sobretudo da juventude, que perdura há décadas e que é o resultado de modelos políticos e econômicos construídos há séculos e apenas remendados a cada nova crise, baseados no monopólio da terra, na exclusão social das populações mestiça, indígena e negra e na exportação de recursos naturais.
O nível atual de frustação é ainda maior, uma vez que a pandemia da Covid-19 lançou de volta à pobreza dezenas de milhões de pessoas que graças ao boom de commodities entre 2003 e 2010 puderam ascender à classe média, com melhores empregos, salários e benefícios sociais. Se o fim do ciclo de commodities e a volta às políticas de austeridade fiscal já aprofundavam as históricas desigualdades sociais, a pandemia da Covid-19 só veio agravar a situação.
Superar o atual estado de coisas na América Latina é muito difícil, pois exige mudanças nas regras do jogo social que estão claramente enviesadas para atender os interesses de alguns setores sociais que se beneficiam enormemente do atual status quo. Não se trata, portanto, de apenas fazer ajustes e correções de rota de velhos modelos que já se mostraram incapazes de superar as contradições atuais, mas de definir uma nova rota baseada em um novo modelo de desenvolvimento capaz de superar definitivamente o atraso político e econômico da região.