China tem muito espaço para crescer

    As dificuldades que a China vem enfrentando para retomar o crescimento depois da pandemia da Covid-19 são um tema recorrente na imprensa internacional. A preocupação faz sentido na medida em que a China é hoje o principal motor de crescimento da economia mundial. Segundo Steven Barnett, representante residente do FMI na China, embora o fundo tenha revisado para baixo as previsões de crescimento da China, espera-se que o país contribua com 1/3 do crescimento mundial neste e nos próximos anos (China Daily, 14/10). Qualquer problema mais sério que a China venha a enfrentar, portanto, afeta não apenas o bem-estar do povo chinês, mas tem implicações em todo o mundo. Nunca é demais lembrar que a China é o principal parceiro comercial de mais de uma centena de países. Há, contudo, em muitas dessas análises sobre o desempenho econômico da China um alarmismo exagerado, que mais reflete uma torcida velada para que a China vá mal do que uma análise ponderada dos problemas que a economia chinesa enfrenta e os meios que possui para superá-los.

    O principal indicador que vem sendo utilizado para avaliar as dificuldades e as perspectivas da economia chinesa é a taxa de crescimento do PIB, o que, por si só, já é um problema, uma vez que uma coisa é crescer 10% quando seu PIB é um trilhão de dólares e outra é crescer 5% quando seu PIB é US$ 18 trilhões, como ocorre hoje. Tendo se mantido próxima a 10% por cerca de 30 anos, entre 1978 e 2008, a taxa de crescimento da China sofreu uma queda brusca com a eclosão da pandemia da Covid-19, como, aliás, todo o resto do mundo. Tendo suspendido as rigorosas medidas de isolamento no início de 2023, a expectativa era de que o crescimento econômico voltasse rapidamente aos níveis pré-pandêmicos. De fato, no primeiro trimestre de 2023, a economia da China deu sinais de uma rápida recuperação, mas os números do segundo trimestre indicaram uma certa perda de folego daquele impulso inicial, o que tem gerado todo tipo de especulação sobre o futuro da economia chinesa.

     O fato é que, ao que tudo indica, a economia da China deve crescer em torno de 5%, em 2023, em linha com o que o governo chinês havia projetado para este ano. Visões alarmistas de que a China estaria à beira de uma grave crise econômica, que o modelo de crescimento chinês está esgotado, não fazem, portanto, nenhum sentido. Há que se reconhecer, contudo, que a China de fato enfrenta importantes desafios e ameaças, cuja origem pode ser encontrada tanto em problemas estruturais internos, tais como envelhecimento da população, diminuição dos retornos de escala, deterioração da vantagem dos retardatários e aumento dos custos ambientais, bem como em problemas conjunturais internos e externos.

    Dentre os problemas conjunturais internos, talvez o mais relevante seja a crise do setor imobiliário, responsável por cerca de 25% do PIB da China. De acordo com o banco UBS, o número de casas que tiveram a construção iniciada em julho foi 65% menor em relação ao nível do segundo semestre de 2020. O banco também projeta que as vendas e as construções de imóveis se estabilizarão em 50% a 60% do pico alcançado nos anos 2020 e 2021 (Valor 27/9).

    No fronte externo destaca-se a desaceleração da economia mundial, agravada pela guerra na Ucrânia e, agora, por um novo conflito no Oriente Médio e, não menos importante, o cerco que os Estados Unidos tentam impor à China como forma de evitar seu desenvolvimento econômico. Os últimos dados da Administração Geral da Alfândega da China mostram que comércio internacional da China no período janeiro-setembro de 2023 caiu 0,2% comparativamente ao mesmo período do ano anterior, para 30,8 trilhões de yuans (US$ 4,13 trilhões). As exportações cresceram 0,6%, para 17,6 trilhões de yuans e as importações caíram 1,2% para 13,2 trilhões de yuans (China Daily, 14/10).

    É preciso considerar, contudo, que muito desses “problemas” apontados pela imprensa mundial são na verdade o resultado de medidas tomadas conscientemente pelo governo chinês com o objetivo de corrigir certos desvios que poderiam comprometer o desenvolvimento de longo prazo do país. O problema frequentemente apontado como o mais sério da economia chinesa, que é a crise do setor imobiliário, não foi o resultado da explosão de bolha especulativa que se formou de forma espontânea e descontrolada como ocorreu no Japão, em décadas passadas, e mais recentemente nos Estados Unidos, dando origem à crise financeira global de 2008, mas o resultado de uma ação deliberada do governo visando desalavancar o setor, cujas tendências não estavam de acordo com o que o governo chinês considerava ser seu papel para o  desenvolvimento saudável da economia.

    Há também o problema do endividamento dos entes subnacionais (províncias e cidades) e do próprio setor privado, que leva alguns a especular sobre uma eminente crise financeira na China. Trata-se igualmente de um exagero, uma vez que a maior parte das dívidas é tomada em moeda local, os principais bancos são estatais e o governo tem amplo controle de seu setor bancário e financeiro. A hipótese de que a quebra de algum grande banco chinês poderia desencadear uma crise sistêmica, como ocorreu no Ocidente não existe, uma vez que todos os grandes bancos são estatais e o grosso de seus empréstimos é também para entes estatais, ou seja, o governo deve para ele mesmo. No limite, corta-se débitos e seus correspondentes créditos nas contas do governo e o problema deixaria de existir.

    Como afirmou Yu Yongding, da Academia Chinesa de Ciências Sociais, em artigo no jornal Valor Econômico (05/10), “embora haja poucas dúvidas de que a era do crescimento sustentado de dois dígitos acabou, a China está bem-posicionada para alcançar uma taxa de crescimento significativamente maior do que a maioria das economias desenvolvidas no futuro próximo. Afinal, o PIB per capita da China ainda é menos de um quarto do dos Estados Unidos. A chave para o sucesso está na política econômica: embora mantendo o curso da reforma e da abertura, a China deve usar alavancas fiscais e monetárias para responder aos dados do crescimento e dos preços. Se o crescimento e a inflação forem lentos, a expansão fiscal e a monetária devem estar a caminho. Por outro lado, se a inflação subir de modo acentuado, um aperto deve ocorrer, mesmo que resulte em crescimento menor”.

    De acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI) o PIB per capita da China (medido pelo poder de compra) foi 28% do nível dos EUA e 50% do PIB per capita da Polônia, em 2022. Ou seja, se a China elevar seu PIB per capita para o mesmo nível da Polônia, isso significa dobrar o tamanho de seu PIB.  O PIB per capita da China em relação ao dos EUA passou de 2% para 28% dos níveis dos EUA em 42 anos, de 1980 a 2022. Isso representa pouco menos que quatro duplicações. Será outra duplicação em, digamos, 20 anos, inconcebível? O espaço que a China tem para crescer é enorme.

    Ainda segundo Yu, “o que está claro é que o governo da China está comprometido em limitar os desequilíbrios fiscais. Isso significa manter os títulos do governo abaixo de 60% do PIB e o déficit orçamentário abaixo de 3% do PIB – muitas vezes por uma margem significativa. Embora a relação déficit orçamentário/PIB tenha ficado em 2,8% do PIB em 2009, ela foi reduzida para 1,1% em 2011, quando o governo correu para sair de seu ciclo de estímulo de CN¥ 4 trilhões (US$ 555 bilhões). Muitos economistas e funcionários do governo da China se orgulham de ter feito um trabalho melhor do que a maioria dos países europeus ao seguir as regras fiscais estabelecidas pelo Tratado de Maastricht. Embora não haja como negar que os passivos contingentes do governo chinês são altos, devido à dívida do governo local, a posição fiscal da China ainda é muito mais robusta do que a da maioria dos países ocidentais. Sem dúvida, a relação déficit orçamentário/PIB da China vem crescendo desde 2015. Mas isso tem sido em grande parte o resultado de cortes de impostos, não de um aumento nos gastos do governo. Embora poucos observadores ocidentais reconheçam isso, a economia do lado da oferta é mais influente na China do que nos EUA”.

    Muitos analistas apontam que o principal problema macroeconômico da China é o baixo nível de consumo, associado com uma elevada taxa de poupança, tanto das famílias, como das empresas. Isso tem deixado o crescimento econômico totalmente dependente do investimento, o que em uma conjuntura global de fraco crescimento torna-se um grande problema, pois, diante de uma demanda externa e interna fracas, as empresas tendem a investir menos. Os investimentos públicos que sempre foram uma importante válvula de escape também sofrem restrições devido ao endividamento elevado dos entes subnacionais. Um outro componente importante do investimento é o setor imobiliário, que como vimos, passa por um processo de ajuste profundo. Ou seja, diante da impossibilidade de manter a economia crescendo apenas com base no investimento e no setor externo, a única saída que resta é aumentar o consumo interno.

    Martin Wolf, do Financial Times, em artigo recente no FT (27/9), afirma: “O perigo não é o de alguma enorme crise financeira: a China é um país credor; a grandíssima maioria de suas dívidas foi captada na própria moeda; e seu governo é dono de todos os bancos importantes. Uma política de contenção financeira funcionaria muito bem. O perigo, em vez disso, é o de uma demanda fraca crônica. No ambiente internacional de hoje, será impossível gerar tanto um enorme boom de exportações quanto superávits consistentes na conta corrente. A taxa de investimento já é espetacularmente alta, ao mesmo tempo em que o crescimento está em desaceleração. Não há como justificar um investimento não imobiliário ainda maior. As alternativas óbvias são o aumento do consumo público e privado”.

    O mesmo Martin Wolf, em outro artigo no FT (20/9), observa que “o problema econômico mais intratável é a dependência excessiva dos investimentos alimentados pelo crédito, e não pelo consumo, enquanto fonte de demanda e, paralelamente, a dependência excessiva do acúmulo de capital, e não da inovação, como fonte do aumento da oferta. Assim, de 2009 a 2022 (inclusive), a contribuição dos aumentos na “produtividade total dos fatores” (uma medida a eficiência no uso de recursos) foi em média de cerca de 0,5 ponto percentual por ano, bem abaixo dos dois pontos percentuais por ano alcançados de 2000 a 2008. Isso também é muito lento. No entanto, vale lembrar os pontos fortes desse país enorme, que forma 1,4 milhão de engenheiros por ano, tem o escritório de patentes mais movimentado do mundo, possui uma população altamente empreendedora e está demonstrando potencial de liderança mundial na produção de veículos elétricos, para citar apenas um exemplo”.

    Segundo Yu Yongding, no já citado artigo, “O governo identificou recentemente a demanda insuficiente como um dos principais desafios econômicos enfrentados pela China. Esta é talvez a mudança mais importante nas diretrizes de política macroeconômica do país nos últimos anos”.

    Luís Antonio Paulino
    Luís Antônio Paulino é professor doutor associado da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e membro da equipe de colaboradores do portal “Bonifácio”.

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