Resenha Estratégica – Vol. 17 | nº 23 | 17 de junho de 2020
No terceiro volume de suas memórias, publicado em 2012, o ex-secretário de Estado estadunidense Henry Kissinger descreveu assim o Itamaraty: “O serviço civil brasileiro, especialmente, o Ministério das Relações Exteriores, é de padrão mundial, sutil, inteligente e persistente. Os diplomatas brasileiros perseguem os seus objetivos de forma tão tenaz, charmosa e quase anônima, que seus interlocutores sempre correm o risco de se tranquilizar e esquecerem de que estão frente a frente com o longo alcance e a busca vigorosa do interesse nacional.”
Embora se desconheça qualquer avaliação sua a respeito, é evidente que tal descrição não se aplica nem de longe à atuação da Casa de Rio Branco na gestão de Ernesto Araújo, norteada por um alinhamento automático e servil aos EUA, indigno da tradição diplomática nacional, mas motivado por uma fantasiosa “relação pessoal” do presidente Jair Bolsonaro e seu filho, o deputado federal Eduardo “03”, com o presidente Donald Trump.
Fantasia temperada com os desvarios ideológicos de um chanceler que jamais havia ocupado um posto de primeiro escalão antes de ser guindado ao topo da diplomacia, apenas pelo critério da identidade com a bizarra e disfuncional visão do mundo do presidente brasileiro e seus filhos, todos doutrinados pelo ex-astrólogo Olavo de Carvalho a partir do seu privilegiado refúgio em território estadunidense.
Com a sua visão caolha dos EUA e da dinâmica geopolítica global, Araújo chegou a considerar Trump como o grande “guardião” dos valores judaico-cristãos do Ocidente, frente aos embates de um “globalismo” que jamais entendeu, compondo com estes elementos uma justificativa para o atrelamento incondicional do Brasil a uma nova vestimenta do vetusto embate ideológico da Guerra Fria.
É fato que Trump tem confrontado certos segmentos neomalthusianos do Establishment oligárquico, o qual nunca integrou, mas a sua política externa manteve a orientação dos seus antecessores, infestada pelos preceitos da predestinação calvinista e do “excepcionalismo” estadunidense, de funestas consequências para o Hemisfério Ocidental, para o qual a sua marca registrada tem sido uma draconiana política antiimigração.
Ademais, se Araújo tivesse realmente alguma preocupação com os valores cristãos, não deixaria de atentar para a sua crucial relevância no renascimento espiritual e soberano da Rússia de Vladimir Putin, parceira do Brasil no grupo BRICS e cujo peso específico na reorientação da ordem de poder global em curso não pode ser ignorado.
A relação com outra parceira no BRICS, a China, que encabeça com a Rússia a integração físico-econômica do eixo eurasiático como o novo centro de gravidade geoeconômico e geopolítico do planeta, mostra, igualmente, um vício de origem. Em lugar dos ataques juvenis ao gigante asiático, que têm gerado ruídos desnecessários nas relações com o nosso maior parceiro comercial, agindo como linha auxiliar de Washington, uma diplomacia orientada por interesses nacionais se empenharia em negociações sérias para criar sinergias entre os dois países, em torno de garantias alimentícias do Brasil e da participação chinesa na modernização da economia nacional, inclusive, com a construção de eixos de infraestrutura transcontinentais, que funcionem como uma contrapartida sul-americana à dinâmica eurasiática catalisada pela Nova Rota da Seda encabeçada por Pequim.
Assim, até agora, apesar das concessões unilaterais seriais feitas aos EUA, a maioria impróprias de uma Nação soberana, o Brasil de Bolsonaro não recebeu em troca qualquer gesto relevante, sequer de reconhecimento, por uma relação que se assemelha a uma vassalagem inusitada nas relações bilaterais. Ao contrário, o governo de Trump tem “brindado” o País com uma sequência de ações contrárias às expectativas de Brasília, as quais deveriam reforçar o entendimento de que, na diplomacia, os interesses nacionais estão acima das relações pessoais, reais ou imaginárias.
Na mais recente, Washington anunciou a intenção de apresentar um inédito candidato próprio à presidência do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), um alto assessor de Trump, depois de Brasília ter comunicado uma candidatura brasileira ao cargo, tradicionalmente ocupado por latino-americanos. Fiel ao novo estilo, o Itamaraty limitou-se a emitir uma nota afirmando ter recebido “positivamente o anúncio firme” da candidatura estadunidense.
Da mesma forma, no enfrentamento da pandemia de covid-19, os EUA não hesitaram em interferir nas compras brasileiras de equipamentos médicos na China e em outros países, chegando a apreender carregamentos durante escalas dos aviões cargueiros em aeroportos estadunidenses. Nem, tampouco, em proibir por tempo indeterminado a entrada de voos e cidadãos provenientes do Brasil. Para nada disso serviu a “relação” com Trump.
Para complicar, o atrelamento à agenda de Washington tem ensejado ações e momentos constrangedores à diplomacia brasileira nos foros internacionais, colocando em risco o respeito amealhado ao longo de décadas por um profissionalismo de alto nível, como reconhecido por Kissinger.
A rigor, o Brasil de Bolsonaro e Araújo interessa aos EUA como linha auxiliar em três eixos da agenda estadunidense: a contraposição às pretensões da China no Hemisfério Ocidental, o reforço do reconhecimento de Jerusalém como capital de Israel e o apoio a uma política intervencionista na Venezuela. Menos mal que, nos três quesitos, têm prevalecido posições mais lúcidas, como as vocalizadas pelo vice-presidente Hamilton Mourão.
Por outro lado, a necessidade de reorientação da agenda diplomática nacional não implica em um retorno incondicional a diversos aspectos do “pragmatismo globalista” que tem caracterizado boa parte da atuação do Itamaraty durante a “Nova República”, como a acomodação quase incondicional às pautas de restrições tecnológicas e condicionantes motivados por questões ambientais, indígenas e outras, prevalecentes desde o final da década de 1980 – em grande medida, motivada pelo desgastado sonho de consumo de um assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas.
Ironicamente, o único aspecto positivo da política externa do Governo Bolsonaro é o embate com o aparato internacional que instrumentaliza politicamente as questões ambientais e indígenas, como se refletiu no discurso do presidente na abertura da 74ª Assembleia Geral das Nações Unidas, em setembro passado. Muito pouco, considerando-se o peso específico, a trajetória diplomática do País e a necessidade imperiosa de enquadrar a política externa em uma estratégia de retomada do pleno desenvolvimento.
Com as suas dimensões, recursos humanos e naturais, capacidade produtiva e base científico-tecnológica, o Brasil pode e deve atuar no quadro mundial como uma Nação plenamente soberana favorável ao novo marco cooperativo e não-hegemônico que busca se consolidar no cenário internacional, na sequência do esgotamento da hegemonia unilateral dos centros de poder instrumentalizados no comando da superpotência estadunidense.
Para tanto, porém, será imprescindível retomar os princípios de soberania e dignidade encarnados na atuação de uma diplomacia comandada por estadistas do porte de Osvaldo Aranha, San Tiago Dantas, Araújo Castro, Azeredo da Silveira, Saraiva Guerreiro e alguns outros, representantes de uma tradição de colocação dos interesses permanentes do Estado acima das idiossincrasias dos eventuais ocupantes dos governos.