Breve manual da indisciplina e da anarquia: discurso do tenente Asdrúbal Gwaier Azevedo no Clube Militar

Cristo dorme na tempestade. Pintura de Eugene Delacroix (França, 1798-1963)

A impunidade do general Pazuello remete à memória dos piores momentos de indisciplina, anarquia e desrespeito à hierarquia nos meios militares. 

O discurso do jovem tenente Gwaier, em 1922, e os apartes repletos de insolência e ofensas recebidas e assacadas contra seus superiores e colegas devem ter efeito educativo para que não se reproduzam, segundo observação do filósofo Ortega y Gasset, para quem o passado não nos serve para dizer o que fazer hoje, mas para dizer o que não fazer.

(transcrito do livro História Militar do Brasil, do historiador Nelson Werneck Sodré)

“Ten. Gwaier – Em defesa do Exército, desse Exército enxovalhado pelo presidente da República, desse Exército que V. Exa., general Setembrino, de modo algum representa. (Trocam-se apartes).

Marechal Presidente – Atenção. Quem está com a palavra é o senhor tenente Gwaier.

Ten. Gwaier – O sr. Boanerges já havia declarado, antes de abrir a sessão, que viria me apartear com violência.

Maj. Boanerges – Não é verdade.

Ten. Gwaier – Quem me disse foi o Ten. Siqueira Campos.

Ten. Siqueira Campos – Verdade; não querer sustentar é outra coisa.

Maj. Boanerges – Eu não disse assim.

Ten. Gwaier – V.Exa. disse, mas não tem importância, seus apartes não me interrompem.

Cap. Duarte do Carmo – O sr. Major Boanerges é um oficial digno, mais digno que V.Exa.

Ten. Gwaier – Mais digno que V.Exa.

Cap. Duarte do Carmo – V. Exa. É incompetente e malcriado e não sabe português.

Ten. Gwaier – V. Exa. tem razão: eu fui aluno do senhor seu pai.

Cap. Duarte do Carmo – Protesto, meu pai era um homem competente e sabia comandar.

Ten. Gwaier – Tinha tanta competência que se permitiu transferir sine die um eclipse total do Sol. Isto está escrito nos boletins do Exército; eu apelo para o sr. Ten. Siqueira de Brito que, na ocasião, servia no 1º Batalhão de Engenharia.

Cap. Duarte do Carmo – O Ten. Brito é um oficial digno e não pode afirmar isto.

Ten. S. Brito – Sou amigo do cap. Duarte do Carmo e peço a S. Exa. que me perdoe, porém a afirmação do ten. Gwaier é verdadeira.

Cap. Duarte do Carmo – Muito obrigado a V. Exa.

Ten. S. Brito – Não tem o que agradecer.

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Ten. Gwaier – Está direito, V. Exa. Submeterá o requerimento à votação, sr. Presidente. Os jornais noticiam que o sr. Presidente da República, para enxovalhar o Exército, vai mandar amanhã os seus agentes fecharem o Clube Militar, baseado numa lei que fecha as sociedades de anarquistas, de caftens e de exploradores do lenocínio. Maior injúria não se pode fazer. Suprema afronta jogada às faces do Exército nacional!

Maj. Euclydes Figueiredo – O sr. presidente da República tem toda razão.

Ten. Gwaier – V.Exa. concorda que o presidente da República feche o Clube militar baseado naquela lei?

Maj. Euclydes Figueiredo – Concordo.

Ten. Gwaier – Então V. Exa. é caften? É explorador do lenocínio? É anarquista? Queira desculpar porque, francamente, eu não sabia.

Maj. Euclydes Figueiredo – Eu respondo a V. Exa. como homem. Respondo sua audácia.

Ten. Gwaier – À vontade. Escolha lugar e marque hora. Sob minha honra de militar o juro, lá estarei.

Marechal Presidente – O sr. tenente Gwaier vai modificar essa linguagem. V. Exa. Está convidando os seus superiores para brigar.

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Ten. Gwaier – Sr. Presidente, se eu soubesse que os defensores do governo epitacista aparteariam o Ten. Brito com tanta rudeza de linguagem e grosseria, não teria tocado na prisão daquele oficial, para não assanhar os gaviões e os abutres que rasgam a dignidade alheia.

Ten. Pacheco – Gavião é V. Exa.

Ten. Gwaier – Eu sou gavião e V.Exa. é a rolinha.

Gen. Potiguara – Está se dirigindo a mim?

Ten. Gwaier – V. Exa. aparteou o Ten. Brito com grosseria?

Gen. Potiguara – Não. Mas sou solidário com os apartes dados a V. Exa.

Ten. Gwaier – Então permita que lhe diga: V. Exa. Também é um corvo faminto que procura rasgar a honra alheia.

Gen. Potiguara – V. Exa. Se atreve a chamar o sr. presidente de República de bandido?

Gen. Hastinfilo – Eu lhe repilo, tenente.

Ten. Gwaier – Ele não é somente bandido, é ladrão também; está provado.

Gen. Potiguara – V. Exa. se arrependerá disto.

 Ten. Gwaier – Registre-se a ameaça.

Gen. Potiguara – V. Exa. não está ameaçado; eu lhe aparteei calmo e rindo!

Ten. Gwaier – Há homens, sr. presidente, cujo riso parece uma operação de descontos a juros de usuários. Assim é o riso do gen. Potiguara.

Cap. Teopomo de Vasconcelos – V Exa. é indigno de vestir a farda do Exército. Não agrida os seus superiores.

Ten. Gwaier – Eu falei com o gen. Potiguara e não com sua ordenança.

Cap. T. de Vasconcelos – Ordenança é V.Exa.

Ten. Gwaier – É V. Exa. que, como capitão, se prestou aos papeis mais infames, como sejam os de perseguidor e algoz dos seus colegas.

Cap. T. de Vasconcelos – V. Exa. está se alterando e o sangue lhe chegando às faces.

Ten. Gwaier – Sim, porque onde não tem sangue é na fisionomia dos cadáveres. Onde não tem sangue é na fisionomia de V. Exa. que é um cadáver moral (Trocam-se violentos apartes).

Marechal Presidente – Se os oficiais continuam nessa linhagem, eu sou obrigado a suspender a sessão. Todos nós somos do Exército, e o que se está passando aqui é uma vergonha que depõe contra a nossa cultura e educação. Continua com a palavra o sr. tenente Gwaier de Azevedo.

Ten. Gwaier – Os meus agressores ponham a carapuça. A observação do sr. presidente atinge aqueles que me obrigam a responder com violência apartes violentos e indelicados.

Cel. Gomes de Castro – Indelicado é V. Exa. que não tem educação.

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Marechal Fontoura – Não apoiado! V. Exa. é um infame.

Ten. Gwaier – V.Exa. não sabe nem escrever o próprio nome. Para que e por que se mete a apartear? Resultado: eu lhe respondo, V.Exa. não sabe coisa alguma e é, portanto, obrigado a se calar.

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Ten. Gwaier – Até quando sofreremos tão grandes ignomínias? Unamo-nos e teremos os aplausos da nação inteira, toda ela mais ou menos ferida pela perfídia, pela inépcia… (Protestos – Muito bem!) pela prepotência de um presidente cretino, infame e déspota.

Gen. Potiguara – Cretino é V.Exa.

Ten. Gwaier – Cretino é V.Exa. Não estamos no Contestado, onde V.Exa. mandava fuzilar a torto e a direito. Isto é um costume seu…. e muito antigo.

Cel. Santa Cruz – Eu estou revoltado com a linguagem desse oficial.

Ten. Gwaier – V. Exa. está revoltado porque não pode me pegar no 1º Regimento de Cavalaria, para me raspar a cabeça, como faz com os soldados.

Cel. Santa Cruz – Isto é uma infâmia.

Ten Gwaier – V. Exa. pode me informar porque todo o mundo o conhece por Rapa-côco?

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Cel. H. Moura – V. Exa. está preso!

Ten. Gwaier – Perdeu boa ocasião de ficar calado. Se eu, dizendo tudo isto, não soubesse que seria preso, seria idiota.

Cel. José de Lima – V. Exa. é um indisciplinado!

Ten. Gwaier – É verdade.

Cel. José de Lima – V. Exa. olhe para a minha cara e veja quem sou, atrevido!

Ten. Gwaier – Eu não conheço V. Exa. direito mas, pela cara, parece um coveiro de cemitério, em tempo de epidemia.

Cel. José de Lima – Protesto! Protesto!

Outros Oficiais – Muito bem! Muito bem!

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Cap. Jovino Marques – O sr. Artur Bernardes é homem digno, e eu lhe repilo como superior.

Ten. Gwaier – V. Exa. não tem idoneidade para fazê-lo.

Cap. Jovino Marques – Tenho. Não sou como V. Exa. Sou um oficial de critério. Sou limpo.

Ten. Gwaier – Se fundo de panela, quando sai do fogo é limpo, eu concordo que V. Exa. também o seja. Limpo como fundo de panela. Ora bolas!

Cap. Jovino Marques – Repita!

Ten. Gwaier – V. Exa. quer que repita de novo? V. Exa. precisa ver node está. Eu estou armado e não tenho ameaças de quem quer que seja. Estou no meu direito.

Gen. Setembrino – Devia ser cassada a palavra desse oficial.

Ten. Gwaier – Pois venha V. Exa. cassar (A maioria: Muito bem!)

Gen. Setembrino – Eu lhe repilo como homem!

Ten. Gwaier – V. Exa. já teve ocasião de repelir alguém a não ser como homem? Eu não tive, graças a Deus. (Gargalhadas)

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Gen. Setembrino – Fosse eu presidente do Clube, esse oficial não continuaria a falar.

Ten. Gwaier – V. Exa. podia ser, mas não com o meu voto. Poderia ser presidente do Clube Militar um oficial-general que, na campanha do Contestato, de parceria com os peculatários, roubou a nação em 2.600 contos, assinando recibos fantásticos de víveres e deixando os soldados morrer de fome?

Gen. Setembrino – V. Exa. provará isso?

Ten. Gwaier – Pois não! Os documentos existem.

Almirante Souza e Silva – Se dessem uma comissão a V.Exa. não há dúvida que se calaria imediatamente.

Tenente Gwaier – Não julgue o meu critério pelo de V. Exa. V.Exa. é um concessionário que dorme regaladamente nas gavetas dos fornecedores de carvão para a esquadra e teve o despudor de engolir 1.600 contos, a pretexto de abastecer de combustível o depósito da Ponta do Galeão, onde o almirante V. de Matos, militar digno e respeitado por todos os títulos, indo lá, nada encontrou, nem mesmo sombra de combustível.

Almirante Souza e Silva – Isso é uma balela.

Ten. Gwaier – O sr. Almirante V. de Matos declarou ou não tudo isso que acabei de afirmar? Faça o favor de responder, pois eu apelo para a sua dignidade de militar e para o seu passado.

Almirante V. de Matos – O que V. Exa. disse é uma verdade e ele não me desmentirá.

Ten. Gwaier – Veja, sr. presidente, eu não estou caluniando.

Gen. Potiguara – Caluniador, V. Exa. o é.

Ten. Gwaier – Foi também V. Exa. quem mandou encher de palha 15 vagões, que deviam levar roupas para os nossos soldados no Contestado; e, em vez de 30 volumes de granadas, remeteu 30 volumes de pedras. Foi, finalmente, V. Exa.  que, com o general Setembrino, fluidificou 20 mil pares de botas de montaria do Exército, que nunca foram vistos em ponto algum do planeta, a não ser nas algibeiras de V. Exa., vastas como o oceano (Protestos e Muito bem!) (O presidente chama a atenção dos oficiais).

Gen. Lima – Ladrão pode ser V. Exa.

Ten. Gwaier – V. Exa. manifestou-se sem ser chamado. Também terá que ouvir sua fé de ofício. Ei-la: V. Exa. construiu uma estrada de ferro na fábrica de pólvora com o célebre túnel pelo qual as locomotivas só puderam passar depois de arrancadas as suas chaminés, porque não fora prevista altura suficiente, sendo que a via férrea era tão bem feita que os trens gastavam 74 horas para percorrer 120 quilômetros. Desminta-me, se é capaz?

Gen. Aché – Torna-se necessária uma reação de nossa parte porque esse oficial está nos enxovalhando!

Ten. Gwaier – V. Exa. também tem rabo comprido.

Gen. Aché – V. Exa. que aponte uma irregularidade minha.

Ten. Gwaier – Vou satisfazer a V. Exa. com todo o prazer. V. Exa., na França, requisitou dinheiro do Tesouro para pagar dívidas contraídas na França e na Alemanha, consequência de jogo e libertinagem, aliás libertinagem senil, em que V. Exa. se contentava com os elogios das proxenetas à artificial eternidade do vigor brasileiro. Isto está no relatório do embaixador do Brasil, enviado ao Ministério do Exterior.

Gen. Aché – O embaixador é um infame.

Ten. Gwaier – Não sou culpado, entenda-se com ele.

Gen. Aché – V. Exa. é um oficial degenerado… Procurador destas cenas vergonhosas.

Ten. Gwaier – Dignas, entretanto, de vossa presença.

Gen. Andrade Neves – O sr. general Aché está muito acima das injúrias desse oficial energúmeno.

Ten. Gwaier – Antes ser energúmeno do que ser um devasso como V. Exa. que já desviou fundos de subscrições públicas em proveito de suas numerosas concubinas. (Protestos – Muito bem).

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Ten. Gwaier – Sr. presidente, estamos às portas da Revolução.”

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2 COMENTÁRIOS

  1. Nada disso tem a ver com a governança do PT. O memorial de Sodré, sobre o discurso de 22, ressalta que o Erário é tratado como seios de lactante a dar de mamar para uma estrutura de Estado sobre a qual não há nenhuma fiscalização, a não ser a própria palavra dos suspeitos. Uma vergonha descobrir que as Forças Armadas se prestem a isso.

  2. Isso que acontece quando aqueles que recebem a confiança do povo.se refestelam no erário. Infelizmente a ma governança do PT nos levou a esse estado de anarquia, com o tenente gwaier presidindo o Brasil

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