Depois da queda, em 2020, da atividade econômica global a um nível sem precedentes desde o final da Segunda Guerra Mundial, todos esperavam que a retomada do crescimento, em 2021, ocorreria sem maiores dificuldades, mesmo porque a pandemia da Covid-19, mesmo tendo ceifado a vida de mais de cinco milhões de pessoas em todo o mundo, não destruiu o capital fixo. Gerou capacidade ociosa que, supunha-se, poderia ser novamente ocupada, na medida em que a demanda por bens e serviços retornasse aos níveis pré-pandêmicos.
A injeção de trilhões de dólares na economia, em todo o mundo, na forma de auxílio direto às famílias ou de apoio às empresas, impediu que muitos negócios fechassem definitivamente as portas. A queda da atividade econômica, embora aguda, foi relativamente curta, de modo que a falta de oxigênio – a interrupção dos fluxos de renda – não chegou a comprometer as funções vitais do sistema produtivo.
De fato, até meados de 2021, parecia que as coisas estavam caminhando bem. A injeção monumental de dinheiro na máquina da economia não provocou a disparada da inflação que os adeptos da teoria quantitativa de moeda anunciavam e os principais bancos centrais do mundo interpretaram a discreta elevação nos preços como fenômeno temporário, decorrente de gargalos passageiros nas cadeias de suprimento. Entretanto, na medida em que as restrições à atividade econômica diminuíram e a demanda por bens e serviços voltou aos níveis pré-pandemia o que se observou foi um quadro bem mais complicado, no qual aumentos mais ou menos generalizados de preços convivem com problemas de oferta.
Isso se deveu a diversos fatores. Em primeiro lugar é preciso considerar que as cadeias globais de suprimento são estruturas extremamente complexas. Sabemos que funcionam e para o que funcionam, mas não sabemos exatamente como funcionam. A lógica que liga internamente os diversos elos de cada cadeia produtiva varia de caso a caso. Montadas ao longo das últimas décadas em paralelo com o avanço do processo de globalização, essas cadeias de suprimento formam um emaranhado de ligações quase impossível de destrinchar. E como essas estruturas sempre privilegiaram a eficiência, ou seja, a redução de custos, em prejuízo da resiliência, da flexibilidade, a sua velocidade de reorganização é muito baixa uma vez rompido seu precário equilíbrio inicial.
Acrescente-se a isso um segundo fator. A maior preocupação com a resiliência e a flexibilidade das cadeias de suprimento depois que a ruptura nos seus elos mais frágeis levou à paralisação de setores estratégicos não permite que as antigas cadeias sejam reconstituídas da mesma forma como funcionavam antes, quando a preocupação principal era apenas cortar custos. A questão é que reorganizar essas cadeias com base em um nova lógica não é algo que possa ser feito rapidamente. Desenvolver novos fornecedores e transferir a produção para novas localidades é um processo difícil e demorado. A visão neoclássica de que as curvas de oferta e demanda se cruzam gerando um novo equilíbrio quase instantâneo é ilusória. A demanda pode voltar de um dia para o outro, mas a reorganização das estruturas de oferta podem levar meses ou anos para se concretizar. E o reflexo disso será a permanência de gargalos nas cadeias de suprimentos com as inevitáveis consequências de elevação de preços e formação de filas.
Há um terceiro fator que afeta a recomposição das cadeias de suprimento. Confrontados com a queda na demanda no auge da pandemia, os produtores de combustíveis fósseis (carvão, petróleo e gás natural), que respondem por 83% da demanda por energia primária no mundo, cortaram a produção. No caso do carvão também houve o corte na produção por razões ambientais em diversos países. Com a retomada da economia, os principais produtores de petróleo no mundo – OPEP + Rússia – resistem a aumentar a produção uma vez que a escassez provocou uma elevação de 95% no preço da cesta de combustíveis fósseis em apenas um ano. O carvão triplicou de preço.
Um quarto fator a considerar é a escassez de mão-de-obra nas economias desenvolvidas. Alguns analistas atribuem isso aos generosos programas de ajuda, principalmente nos Estados Unidos, mas não parece que seja essa a causa do problema. Pelo menos é o que mostram diversas pesquisas comparando situações que se diferenciam apenas pela existência ou não desses programas de ajuda. As evidências empíricas apontam que o retrocesso nas medidas de apoio não provocou mudanças significativas na disposição de diversas categorias de trabalhadores de aceitar determinados empregos. As causas que têm levado muitos a abandonar o mercado de trabalho ou a adiar seu retorno aparentemente são outras. Há falta de motoristas de caminhões, de trabalhadores de carga em navios, de trabalhadores na área da saúde, mas as razões parecem ser mais as condições estressantes e os riscos que a pandemia da Covid-19 agregou ao exercício de certas profissões. Parcela de trabalhadores de carga ficaram presos nos navios por meses. É natural que não queiram retornar a esse tipo de trabalho. O mesmo ocorre com trabalhadores na área da saúde, dadas as condições altamente estressantes e perigosas que tiveram que enfrentar durante a pandemia. Da mesma forma, muitos dos trabalhadores que passaram a trabalhar remotamente durante a pandemia estão resistindo a um retorno em tempo integral para o escritório. As mudanças do lado da oferta em muitos segmentos do mercado de trabalho têm efeitos de longo prazo ainda desconhecidos.
Um quinto fator é que o retorno de grande parte da atividade econômica em níveis próximos e em alguns casos superiores aos do período pré-pandêmico se deu sem que a pandemia da Covid-19 esteja totalmente sob controle. Isso tem provocado novas interrupções nas cadeias de suprimento que agravaram ainda mais certos gargalos. A retomada de lockdowns em algumas localidades, o fechamento temporário de grandes portos, nomeadamente na China, quando da ocorrência de algum novo caso de Covid-19, o congestionamento dos principais portos do mundo e a consequente falta de contêineres e navios, que respondem por 80% do comércio mundial, tendem a agravar ainda mais o descasamento entre demanda crescente e oferta intermitente.
Finalmente é preciso considerar o fator China. Por um lado, a China está no meio de um esforço ambicioso para reformar sua economia, refreando dívidas domésticas e corporativas particularmente no mercado imobiliário, aumentando o controle sobre o setor de tecnologia e perseguindo metas climáticas ambiciosas. Por outro lado, a tentativa norte-americana de forçar o desacoplamento da China de suas principais cadeias de suprimento está levando a rearranjos que levarão muito tempo para se concretizar, com efeitos significativos nas principais cadeias globais de suprimento, dada a condição atual da China de “fábrica do mundo”. O exemplo mais evidente é o que ocorre hoje na produção de chips de memória e semicondutores.
Podemos argumentar, portanto, que a pandemia produziu mudanças semipermanentes em diversos fatores de oferta e que os ajustes a essas novas situações certamente não irão ocorrer na mesma velocidade do retorno da demanda, o que, certamente, deve dificultar a retomada plena da economia global para, pelo menos, até o final de 2022.