A renúncia forçada do presidente da Bolívia, Evo Morales, em 10 de novembro, seguida pela dos três integrantes imediatos na linha sucessória, o vice-presidente Álvaro García Linera, a presidente do Senado, Adriana Alvatierra, e o presidente da Câmara dos Deputados, Víctor Borda, quebrou a ordem institucional e, sem uma garantia clara do processo de mudança, deixou um vácuo de poder que arrojou o país no caos.
A instabilidade remonta ao resultado da eleição residencial de 20 de outubro, que deu a Morales uma vitória apertada sobre seu adversário, o ex-presidente Carlos Mesa, e cujos resultados foram questionados pelos observadores da Organização dos Estados Americanos (OEA).
O parecer instava à realização de um segundo turno das eleições e funcionou como um sinal verde para que os opositores do governo inicias sem uma rebelião, liderada não pelo candidato derrotado, mas por uma figura desenraizada da política nacional, o controvertido empresário e o advogado Fernando Camacho, presidente do Comitê Pró Cívico de Santa Cruz, personagem imbuído de uma ideologia liberal sui generis, que assumiu, pelo menos publicamente, o protagonismo opositor. Com a imediata reação dos seguidores de Morales, inclusive a poderosa Federação das Associações de Bairro de El Alto (FEJUVE), carregando as bandeiras das diversas etnias formadoras da população indígena, conflitos de rua e a desordem se espalharam pelas principais cidades, sem que as forças policiais pudessem contê-los.
A violência chegou ao ponto de se incendiarem as casas de líderes políticos de ambos os lados e, em meio à baderna, a Polícia se amotinou fez a água transbordar, levando Morales a acatar o pedido de renúncia feito pelo comandante-em-chefe das Forças Armadas, general Williams Kaliman, exilando-se no México.
Além disso, manifestantes ligados ao partido de Morales, o Movimento ao Socialismo (MAS) invadiram e paralisaram a produção de uma usina de gás natural no campo de Carrasco, em Cochabamba. A estatal Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos (YPFB) enviou uma carta ao governo da Argentina, alertando para uma possível interrupção dos fornecimentos de gás afetados pelos problemas na instalação.
Nesse cenário caótico, a senadora Jeanine Añez, segunda vice-presidente do Senado, assumiu a presidência do Senado e da Assembleia e declarou-se presidente interina, em uma sessão sem quórum devido à ausência dos legisladores do MAS. Em suas primeiras horas no cargo, ela anunciou que o país está pronto para ser pacificado com a ajuda das Forças Armadas e da Igreja Católica, que mantinham um relacionamento tenso com Morales e seu governo.
É inegável que, com seus três mandatos (2019-2006), Morales deixa uma Bolívia diferente da que encontrou. Aproveitando a bonança dos preços das matérias-primas, seu governo favoreceu e soube canalizar recursos para reduzir a injustiça social e recompor o sistema econômico, abalado pelos choques neoliberais impostos desde a década de 1980, com as propostas do comunista estadunidense Jeffrey Sachs.
A taxa média de crescimento anual variou entre 4-7%. Os níveis de pobreza, pobreza extrema e analfabetismo diminuíram consideravelmente. Foram realizadas obras de infraestrutura, inclusive, contrariando as condicionalidades do ambientalismo radical, e criados centros de pesquisa de tecnologias avançadas, como a nuclear.
Não obstante, o próprio caos institucional instaurado após a renúncia de Morales reflete uma vulnerabilidade intrínseca do seu projeto de governo, que, a despeito dos progressos socioeconômicos, era desprovido de uma ideia de coesão nacional, com a construção de um forte tecido institucional baseado nos valores mais fundamentais da identidade cultural mais preciosa de todos os cidadãos, o ethos que une as nações, também chamado de soberania fundamental.
Em vez disso, seu projeto se concentrou em exaltar uma identidade poliétnica e dividir o país entre brancos, categoria onde cabem os mestiços (opressores ou colonizadores), e os povos indígenas (oprimidos). Esta ideologia do “etnacionalismo” se refletiu claramente no preâmbulo da Constituição de 2009, assinado pelo próprio Morales, na qual o Estado nacional é substituído por um Estado plurinacional, e assim define o país: “Refundamos a Bolívia. Deixamos no passado o Estado colonial, republicano e neoliberal, para ser um Estado Unitário, Social, de Direito Plurinacional.”
Ao final, nega a herança cultural cristã comum à população boliviana: “Nós povoamos esta Mãe Terra sagrada com rostos diferentes e, desde então, entendemos a atual pluralidade de todas as coisas e a nossa diversidade como seres e culturas. Assim moldamos os nossos povos e amais compreendemos o racismo até que o sofremos desde os funestos tempos da colônia.”
Essa divisão étnica maniqueísta e destruidora de uma entidade nacional gera ódio e ressentimentos acumulados, tornando-se um terreno fértil para tendências sociais centrífugas, características dos separatismos.
Em tal contexto, isso também se mostra claramente no departamento (estado) mais desenvolvido da Bolívia, Santa Cruz de la Sierra, onde, efetivamente, um grupo da elite político-empresarial se concebe como uma população branca emprenhada de uma ideologia de excepcionalismo. Durante o processo de aprovação da Assembleia Constituinte de 2007, esse grupo se empenhou rigorosamente em prol de uma autonomia para os departamentos, mas sem sucesso.
Como sintetizou, oportunamente, um editorial do jornal La Razón de La Paz, em 14 de novembro: “A Bolívia vive tempos de profunda confusão.”
Os acontecimentos desencadeados desde a noite de 20 de outubro levaram a sociedade a um estado de comoção generalizada, no qual importa mais o que as pessoas creem que o que os dados parecem mostrar-lhes. Assim, em meio a pequenas e grandes escaramuças entre bandos rivais, a população mira, hipnotizada, o abismo.
“Tem sido evidente, embora muitas pessoas prefiram negá-lo: o estado de soçobro generalizado tem causado comportamentos corporativos e discriminadores num extremo e noutro da polarização política.”
À falta de melhores argumentos, a desqualificação, baseada em uma presumida militância política, atribuída somente pela tonalidade da pele, tem aberto espaço a múltiplas formas de violência.
“Isso tem levado, inevitavelmente, ao aprofundamento das diferenças que já existiam e que durante a campanha pré-eleitoral foram levadas aos seus piores extremos. Hoje, como talvez nem nos piores momentos da Assembleia Constituinte, o racismo é palpável nas ruas do país, inclusive, apesar de alguns dirigentes civis o negarem em seus discursos.”
Situada no coração da América do Sul, a Bolívia ocupa um lugar geográfico estratégico, com fronteiras com cinco países (Brasil, Argentina, Paraguai, Chile e Peru), além de contar com ricos recursos minerais e energéticos, o que lhe confere uma importância geopolítica especial.
Com a carta da balcanização da Bolívia presente nos cálculos dos altos poderes oligárquicos mundiais, neste momento, essa possibilidade aumenta, pois, diante dos reveses estratégicos do eixo anglo-americano do Oriente Médio e das incertezas sobre o futuro da globalização financeira, tais forças renovam o interesse no Hemisfério Ocidental, para assegurar o controle majoritário dos seus recursos naturais. Em Washington, têm-se ouvido até mesmo apelos públicos sobre a necessidade de reviver a colonialista Doutrina Monroe.
Simultaneamente, em todo o continente, têm aflorado velhas fraturas decorrentes dos clamores por uma mudança de rumo para um futuro mais digno, um novo projeto continental, que possa cristalizar as suas raízes cristãs em um sistema político e econômico compatível com elas. Nesta perspectiva, o mais conveniente para os poderes globais é manter viva a chama da Guerra Fria no continente, para que Washington bendiga a ação de figuras políticas do passado e fomente outras novas, capazes de renovar ideologias de “direita” ou “esquerda”, ambas paralisantes e castradoras das melhores energias dos povos.
Entre essas novas figuras sem raízes, temos a geração de yuppies de estilo neoconservador e propagandistas de uma mistura tóxica de neoliberalismo e fundamentalismo religioso. São os Guaidós, Camachos, Eduardos e outros, presentes em todas as nações da região, todos fanatizados por uma estrutura de crenças que promove desconstruções, mas se mostra incapaz de construir qualquer coisa que conduza ao Bem Comum.
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