Resenha Estratégica – Vol. 17 | nº 19 | 19 de maio de 2020
No final de março, quando já havia certeza sobre o grande impacto da pandemia de covid-19 na economia brasileira, ainda atolada no pântano de uma estagnação de cinco anos, o Banco Central (BC) apressou-se em aprovar um conjunto de medidas para injetar R$ 1,2 trilhão no sistema financeiro. Na ocasião, o presidente do BC, Roberto Campos Neto, jactou-se de estar encabeçando “o maior plano de injeção de liquidez e capital já feito”. “A situação é confortável. As instituições estão bem provisionadas, com boa liquidez e capital sobrando (sic). É diferente do que aconteceu no passado”, afirmou. Segundo ele, “o Banco Central tem que ter condições para garantir liquidez para todo o sistema, para ter certeza que nós vamos atravessar isso sem maiores problemas (Governo do Brasil, 24/03/2020)”.
Em tese, assim como tem ocorrido em outros países atingidos pela pandemia, em especial, na Europa Ocidental, a medida se destinaria a permitir que os bancos pudessem participar das linhas de apoio oficial emergencial às empresas afetadas pela semiparalisação da economia, a maioria delas enfrentando vertiginosas quedas de atividade e faturamento. Na prática, porém, a história é outra, pois os bancos, simplesmente, entesouraram o dinheiro e não o estão repassando às empresas, por receio de níveis elevados de inadimplência dos empréstimos, devido às incertezas que pairam sobre o período pós-pandemia.
Em meados de maio, uma pesquisa da consultoria Quist Investimentos entre 100 empresas com receita entre R$ 30 milhões e R$ 300 milhões revelou que 78% delas não tiveram acesso a nenhum tipo de crédito. E estamos falando de empresas de grande porte, muito acima da realidade da grande maioria das empresas nacionais, muitas das quais encontram-se com a sua sobrevivência seriamente ameaçada. Para as pequenas e médias empresas (PMEs), responsáveis por mais de dois terços dos empregos formais no País, apenas migalhas do “apoio” intermediado pelos bancos.
“Falo com lojistas todos os dias e os recursos não chegam, eles não conseguem acessar”, lamenta Glauco Humai, presidente da Associação Brasileira de Shopping Centers (Abrasce). “O dinheiro não está chegando aonde tem que chegar, às pequenas empresas”, completa José Veloso, presidente da Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos (Abimaq) (Valor Econômico, 14/05/2020).
Na base da sociedade, o cenário é ainda mais tenebroso, revelado pelo fato de que mais de 50 milhões de pessoas tiveram que recorrer ao auxílio emergencial de R$ 600,00 concedido pelo governo federal, cuja segunda parcela só começou a ser paga em 18 de maio (sem que mais de 8 milhões de pessoas tenham conseguido receber sequer a primeira). Números que escancaram a vastidão da precariedade das condições econômicas de praticamente a metade da força de trabalho, estimada em 105 milhões de pessoas.
Os privilégios dos bancos ficam ainda mais ressaltados pelo fato de que, mesmo com os efeitos da pandemia, os “quatro grandes” – Itaú Unibanco, Bradesco, Brasil e Santander – ainda puderam anotar lucros de R$ 13,7 bilhões no primeiro trimestre (contra R$ 19,5 bilhões, no mesmo período de 2019), na contramão de quase todos os demais setores da economia, com exceção do agropecuário.
Nesse cenário, não surpreende que, segundo um editorial do jornal O Estado de S. Paulo (19/05/2020), o mercado financeiro considere que uma eventual saída do ministro da Economia, Paulo Guedes, o “Posto Ipiranga”, em decorrência das turbulências que sacodem diuturnamente o governo do presidente Jair Bolsonaro, seja o maior risco para o País, em uma cínica identificação dos seus interesses exclusivistas com os do restante da Nação.
Oriundo do mercado, Guedes tem marcado a sua gestão por uma sucessão de declarações intempestivas, nas quais ressalta uma filiação incondicional e intolerante ao credo rentista. Na notória reunião ministerial de 22 de abril, pregou aos berros a privatização imediata do Banco do Brasil, afirmando ser preciso “vender logo essa porra do BB”. Dias depois, apoplético diante da apresentação do Plano Pró-Brasil da Casa Civil da Presidência da República, para fomentar a recuperação pós-pandemia com investimentos públicos em infraestrutura – anátema para os “rentistas-mercadistas” –, comparou os proponentes do plano a “batedores de carteira” do governo.
Outra notícia reveladora do caráter do pitoresco “capitalismo sem risco” à brasileira – pelo menos, para os “sócios” dos grupos detentores do poder – é a de que o governo federal está articulando uma operação para permitir que o setor elétrico tenha acesso a empréstimos facilitados para enfrentar as perdas de receita decorrentes da pandemia. O pacote é estimado entre R$ 10-12 bilhões, mas, como de hábito, parte do custo será repassada aos consumidores, já afetados pela retração econômica.
O problema não reside na proteção às empresas, ainda mais em um setor estratégico como o de energia. Muitos países estão fazendo o mesmo, que é o correto. A questão é que por trás da medida está o insidioso paradigma que, a partir da década de 1990, tem convertido as empresas de infraestrutura física brasileiras em máquinas de geração de fluxos de caixa para os jogos especulativos da “globalização” financeira, em total detrimento das suas atividades-fim e dos interesses da sociedade aos quais deveriam servir. Consolidado no governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), com privatizações alavancadas com recursos públicos (em geral, do BNDES), reajustes tarifários assegurados acima da inflação e outras vantagens, esse paradigma neoliberal-globalista, apontado pelos seus beneficiários, associados e serviçais como o “único caminho” possível para as economias modernas, vê-se agora absolutamente desmoralizado sob o impacto da pandemia, que expôs às claras as suas múltiplas vulnerabilidades.
Salta aos olhos, e não só no Brasil, que o mundo pós-pandemia terá que encarar seriamente a tarefa de confrontar as estruturas de privilégios da “globalização” e do rentismo neoliberal, cujos principais resultados socioeconômicos têm sido aumentos da desigualdade e da exclusão dentro dos países e entre eles. Aqui, isto implica em uma retomada do protagonismo do Estado na orientação da economia e do estabelecimento de um rumo para o País, em sinergia com uma iniciativa privada mais voltada para as suas atividades-fim, em vez de para os “jogos de tesouraria” ou a mera sobrevivência em meio à selva de políticas econômicas desenhadas para privilegiar o setor financeiro. Em setores estratégicos como o energético, não só é imperativo que se detenha toda e qualquer tentativa de aprofundamento das privatizações, mas que o Estado recupere pelo menos parte do controle sobre eles.
Em quase todo o mundo, e com privilégios superlativos no Brasil, o setor financeiro tornou-se um parasita que suga as energias produtivas das economias e das sociedades. Na reconstrução pós-pandemia, será imprescindível retirar-lhe tais privilégios e forçá-lo a retornar à sua função precípua – abandonada desde há muito – de alimentar os setores produtivos da economia real.
Em essência, é mais que hora de se extirpar definitivamente essa craca neoliberal do casco do Estado nacional brasileiro, sem o que o cenário pós-pandemia tende a tornar-se um desastre ainda maior que o coronavírus.