A China é a primeira grande economia a criar a moeda digital de seu banco central, o yuan digital. Outros países estão tomando iniciativa semelhante. Segundo a revista inglesa The Economist, mais de 50 autoridades monetárias, representando o grosso do PIB mundial, estão explorando essa possibilidade[i]. Trata-se de uma iniciativa de grande importância que pode modificar radicalmente o modo de funcionamento de todo o sistema bancário e financeiro mundial, com profundas implicações não apenas econômicas, mas também geopolíticas.
Para entender o papel disruptivo que a criação das moedas digitais pode ter sobre o sistema bancário e financeiro mundial é preciso entender a diferença entre a moeda digital e o “dinheiro eletrônico” como conhecemos hoje, representado por transferências eletrônicas de dinheiro, pagamentos por aplicativos da internet, cartões de crédito e outras formas de pagamentos digitais.
A diferença básica é que todas as formas atualmente existentes de “dinheiro eletrônico” são, na realidade, apenas um meio de transferir dinheiro escritural, ou seja, dinheiro registrado em nossas contas bancárias, para outra conta no próprio país ou mesmo internacionalmente – nesse caso utilizando o sistema SWIFT (Sistema de Telecomunicações Financeiras Interbancárias Mundiais) – mas que poderá a qualquer momento ser transformado em papel moeda.
Com a moeda digital tudo isso muda. Primeiro porque o papel moeda deixa de existir; a moeda digital é apenas um código eletrônico complexo que não pode ser alterado e cujas transações são protegidas por criptografia – daí o nome “criptomoedas”. No caso das criptomoedas privadas – como o Bitcoin, Bitcoin Cash, Ethereum, Theter, Litecoin, dentre outras – onde não há uma autoridade central que acompanhe essas transações, “elas precisam ser registradas e validadas uma a uma por um grupo de pessoas, que usam seus computadores para gravá-las no chamado blockchain”[ii]. O blockchain é um enorme banco de dados público onde consta o histórico de todas as operações realizadas com cada unidade da moeda digital. Sua função é validar cada nova transação para assegurar que os mesmos bitcoins não tenham sido previamente usados por outra pessoa. No caso das moedas digitais dos bancos centrais, como é o caso do yuan digital, o controle e a garantia das transações é feito pelo banco central que emitiu a moeda, ou seja, a tecnologia blockchain não é utilizada. Nesse caso, a moeda digital emitida por um banco central perde o “atrativo” das criptomoedas privadas, ou seja, o anonimato das transações, mas preserva todas as demais características da moeda digital.
Segundo porque a transferência de dinheiro prescinde da intermediação de um banco. O dinheiro ficará no ciberespaço e poderá ser acessado por meio de um aplicativo instalado em um telefone celular e no computador, ou seja, uma “carteira digital”, ao invés de uma carteira de notas, como usamos hoje. A transferência desse dinheiro de uma pessoa para outra prescinde a intermediação de um banco. No caso das moedas digitais privadas a transferência se dá, como vimos acima, por meio da tecnologia blockchain. No caso das moedas digitais dos bancos centrais a intermediação é feita pelo próprio banco central, dispensando a intermediação de um banco comercial, como ocorre hoje com as transferências eletrônicas de dinheiro. Difícil imaginar um mundo sem bancos, pelo menos da forma como conhecemos hoje, com seus suntuosos edifícios e suas logomarcas definindo a própria paisagem urbana das grandes metrópoles, mas, no limite, essas instituições de intermediação para a transferência de dinheiro deixam de ser necessárias. Grosseiramente comparando é a mesma mudança que ocorreu com a invenção do e-mail. Antes, para enviar uma mensagem precisávamos de um intermediário, no caso o correio, para entregar uma carta ou telegrama. Com o e-mail a presença desse intermediário é dispensável.
As implicações de uma mudança como essa seriam enormes tanto ao nível econômico quanto ao nível geopolítico. Atualmente algo em torno de 80% do dinheiro em circulação é criado pelos bancos comerciais que guardam apenas uma fração dos depósitos à vista que recebem e emprestam o restante, criando a chamada moeda escritural, cuja existência está registrada em nossos saldos bancários. Ao controlar o chamado depósito compulsório, ou seja, o quanto o banco comercial deve recolher ao banco central dos seus depósitos à vista, o banco central controla a capacidade de os bancos comerciais criarem dinheiro. Isso é um instrumento importante para a execução da chamada política monetária que, ao lado, da política fiscal são as duas alavancas que o governo maneja para o controle das principais variáveis macroeconômicas, como taxa de juros, taxa de desemprego, taxa de câmbio, etc. Tudo isso teria que ser repensado.
No caso das criptomoedas privadas, o governo não teria nenhum controle sobre o volume de moeda em circulação e muito menos sobre as transações realizadas. Seria o mundo dos sonhos dos anarcocapitalistas. No caso das moedas digitais dos bancos centrais a relação com o público deixaria de ser indireta, intermediada pelos bancos, e passaria a ser direta. Isso permitiria ao governo, por exemplo, transferir dinheiro diretamente para o cidadão no caso de uma ajuda emergencial, como foi agora na pandemia da Covid-19, ou de forma regular nos programas de renda mínima. Existem hoje no mundo cerca 1,7 bilhão de pessoas sem acesso a contas bancarias e que não podem, portanto, ser alcançadas por nenhum programa de transferência de renda patrocinado pelo Estado. Nesse caso, bastaria um telefone celular ou um cartão magnético recarregável e o problema estaria resolvido. Haveria ainda a vantagem de se controlar práticas ilícitas, uma vez que todas as transações seriam rastreadas. Práticas ilegais, como corrupção, tráfico de drogas, de armas se tornariam muito mais difíceis de serem realizadas.
Mas o principal impacto dessas mudanças pode ser o geopolítico. Hoje, cerca de 88% das transações financeiras internacionais, seja para comércio ou investimento, são denominadas em dólares americanos, o que obriga os cerca de 21.000 bancos do mundo a operarem com a moeda americana. No caso específico da China, segundo dados do FMI, 93% das importações e 95% das exportações são denominadas em dólares[iii]. Isso dá aos Estados Unidos uma enorme vantagem, o chamado poder de senhoriagem internacional, que lhes permite sustentar enormes déficits comerciais com o resto do mundo sem preocupar-se com seu financiamento, pois, afinal, eles mesmos produzem a moeda internacional aceita por todos.
Além desse “privilégio exorbitante”, como denominou o economista Barry Eichengreen[iv], o fato da maior parte das transações internacionais serem liquidadas de dólares americanos exige que o fechamento do circuito de pagamentos e recebimentos internacionais em algum momento passe pelo sistema bancário norte-americano, o que dá aos Estados Unidos a possibilidade de usar o dólar coma arma de pressão política à qual eles vêm recorrendo cada vez mais frequentemente. Por meio dessa prática que se convencionou chamar, em inglês, de dollar weaponization, os Estados Unidos podem congelar os ativos de indivíduos e instituições no sistema financeiro global, ao proibir os bancos de realizar transações com eles. O Tesouro Americano tem um banco de dados de pessoas e empresas sancionados designado de “Specially Designated Nationals and Blocked Persons List” que alcança praticamente todos os países do mundo. Nessa lista há, por exemplo, cerca de 250 cidadãos chineses, entre os quais, oficiais do governo e dirigentes do Partido Comunista Chinês.
O jornal Wall Street Journal lembra, por exemplo, que “as sanções deixaram Carrie Lam, a principal autoridade da China em Hong Kong, com um estoque de dinheiro em sua casa porque os bancos temiam que ao aceitar seus negócios correriam o risco de expô-los também a um congelamento americano”[v]. Se o governo americano resolver, por exemplo, impedir que a China ou a Rússia usem o dólar para o fechamento de suas transações internacionais, esses países podem de uma hora para outra ser “desligados” do sistema financeiro internacional. Não é de estranhar, portanto, a preocupação dos países que os Estados Unidos rotulam de inimigos com a dependência em relação ao dólar como a principal moeda internacional.
Com o yuan digital, assim como qualquer outra moeda digital que fosse amplamente aceita, esses problemas desapareceriam, uma vez não seria mais necessário utilizar o dólar e, consequentemente o sistema bancário americano, para o fechamento das operações internacionais. Um exportador brasileiro poderia enviar sua soja para a China e ser creditado imediatamente com essa moeda digital sem ter que depender da complexa rede de bancos internacionais pelos quais o dinheiro circula para chegar às suas mãos. Além evitaria o pagamento de taxas e comissões bancárias que comem parte significativa de seu lucro. Estima-se que os custos operacionais da indústria financeira global sejam de cerca de US$ 350 por habitante da terra[vi].
Tudo isso ainda parece ficção científica, mas talvez não esteja tão distante o momento em que o papel-moeda passe a ser coisa do passado e que o sistema financeiro mundial tenha que ser reinventado. A China já está testando internamente de forma limitada o uso do yuan digital, com sucesso. Segundo informa o site Technoblog, “o governo chinês anunciou o sucesso do mais recente teste com o piloto do yuan digital, realizado na cidade de Suzhou, perto de Xangai. Lá, 181 mil consumidores receberam cerca de US$ 8,50 na criptomoeda estatal em uma campanha de distribuição para gastar em lojas participantes de um festival que ocorreu na primeira semana de maio. A conclusão desse mais recente teste faz parte de um programa maior do banco central da China, que vem testando sua CBDC com cerca de 500 mil consumidores em 11 diferentes regiões do país desde abril. Os participantes recebem acesso a um aplicativo que cria uma carteira digital exclusiva do yuan digital. Assim, eles podem realizar compras com descontos em milhares de estabelecimentos que fazem parte do projeto”[vii]. Os chineses inventaram o papel-moeda há milhares de anos; podem estar ajudando a decretar o seu fim.
[i] The Economist. The digital currencies that matter. Get ready for Fedcoin and the e-euro. The Economist, May 8th, 2021 edition.
[ii] Infomoney. Criptomoedas: um guia para dar os primeiros passos com as moedas digitais. Disponível em: https://www.infomoney.com.br/guias/criptomoedas/ Consultado em 15/05/2021.
[iii] Bird, M. China’s digital yuan poses no threat to the dollar’s dominance. Wall Street Journal, 20/04/2021. Disponível em: https://www.wsj.com/articles/chinas-digital-yuan-poses-no-threat-to-the-dollars-dominance-11618825750?mod=searchresults_pos2&page=2 Consultado em 13/05/2021
[iv] Eichengreen, B. Privilégio Exorbitante. A ascensão e queda do dólar e o futuro do Sistema Monetário Internacional. Rio de Janeiro: Editora Campus, 2011.
[v] Areddy, J. T. China is creating digital currency, first for a major economy. Wall Street Journal, 06/04/2021. Disponível em: https://www.wsj.com/articles/china-creates-its-own-digital-currency-a-first-for-major-economy-11617634118?mod=searchresults_pos2&page=1 Consultado em 13/05/2021.
[vi] The Economist. The digital currencies that matter. Get ready for Fedcoin and the e-euro. The Economist, May 8th, 2021 edition
[vii] Ignacio, B. China completa novo tese e avança no lançamento do iuan digital. Disponível em: https://tecnoblog.net/441125/china-completa-novo-teste-e-avanca-no-lancamento-do-yuan-digital/
Consultado em 13/05/2021.
A grande questão é que moedas digitais estatais seria dar aos burocratas um nível de escrutínio da privacidade pessoal que seria irremediavelmente perigoso.
Muito esclarecedor. Parabéns.