Carro elétrico vira o jogo do mercado automobilístico

Há cinco anos, a China exportava ¼ da quantidade de automóveis que o Japão exportava. Em janeiro de 2024, a indústria chinesa de automóveis informou que exportou 5 milhões de veículos, em 2023, ultrapassando o Japão. A BYD vendeu 526 mil veículos elétricos no quarto trimestre de 2023, superando a Tesla, que vendeu 484 mil. Estima-se que por volta de 2030 a China poderá dobrar sua participação no mercado global de veículos, chegando a 30%.

Aquilo que era uma vantagem dos fabricantes ocidentais de veículos de combustão interna – seu enorme parque industrial instalado, seus gigantescos centros de pesquisa dedicados ao aprimoramento de uma tecnologia poluente, herdada da segunda revolução industrial – o motor de ciclo Otto ou ciclo Diesel – com custos cada vez mais elevados para se conseguir pequenos ganhos marginais em termos de consumo e desempenho – tornou-se uma desvantagem.

No novo mundo dos carros elétricos todo aquele conhecimento conta muito pouco, na medida em que o automóvel se transforma de um equipamento essencial mecânico em um aparato tecnológico não muito diferente de um smartphone, um tablet ou um computador, cujo valor principal está nos softwares que comandam seu funcionamento. Enquanto as gigantes ocidentais do setor lutam para entrar nesse novo mundo em que seu conhecimento analógico e mecânico conta cada vez menos, grandes empresas de tecnologia reconfiguram toda a indústria se apresentando como realmente são: empresas de tecnologia que, entre outras coisas, também fazem carros. Não é por acaso que empresas mais conhecidas por produzir smartphones e outras utilidades eletrônicas, como a Huawei e a Xiaomi, estão entrando no setor.

Como afirmou a revista Economist (11/01), “O ET5, um sedã elétrico da Nio, montadora chinesa fundada em 2014, leva apenas quatro segundos para acelerar de zero até os 100 km/h. Isso é mais ou menos igual ao Porsche Carrera, carro esportivo alemão movido a gasolina adorado pelos viciados em adrenalina”. Além disso, todo o processo de montagem de um carro elétrico é muito mais simples do que o de um carro convencional, utiliza mão de obra muito menos especializada e em menor volume, o que reduz seu custo de produção.

Os governos ocidentais estão fazendo o que podem para socorrer sua velha indústria, voltando a abençoar, inclusive, o que era anátema no cânone de políticas que consideravam não puníveis com o fogo do inferno nas práticas dos países menos desenvolvidos: as políticas industriais. O governo Biden, por exemplo, lançou três programas de política industrial após a aprovação pelo Congresso americano da Lei de Investimentos e Empregos em Infraestrutura (Infraestrutura), da Lei sobre Chips e Ciência (Chips) e da Lei de Redução da Inflação (IRA)2, nos quais está investindo recursos na ordem de US$ 1,2 trilhão para reerguer a indústria norte-americana tradicional e dar um novo impulso em sua indústria de alta tecnologia, nomeadamente na produção de semicondutores e no desenvolvimento da inteligência artificial. Velhos teóricos das políticas industriais, como Laura Tyson, que passaram vinte anos quase esquecidos, são convocados para oferecer uma nova racionalidade às mesmas.

Em artigo publicado em 17/11/2023 no site Project Syndicate, Laura Tyson e John Zysman afirmaram: “a nova política industrial para o século XXI deve ter em conta as novas realidades globais, centrando-se em dois objetivos: assegurar um fornecimento adequado e competitivo dos produtos e tecnologias necessários para alcançar a prosperidade econômica e a segurança; e assegurar uma posição no desenvolvimento e implantação das tecnologias da próxima geração que se espera sejam essenciais tanto para a segurança nacional como para a transição para uma economia neutra em carbono. Dado que um sistema de abastecimento nacional totalmente integrado verticalmente é uma fantasia, estes objetivos exigem que os EUA e outras economias avançadas utilizem a política industrial para alcançar posições significativas de alavancagem nos mercados para produtos e tecnologias específicos de importância econômica e geopolítica estratégica”.

Além disso, tanto o governo americano quanto a União Europeia vêm cogitando tomar uma série de medidas protecionistas, além das já em curso, visando barrar a entrada dos carros elétricos chineses em seus respectivos mercados. Mas não se trata de algo simples de ser feito, mesmo porque as montadoras ocidentais ainda dominam cerca de metade do mercado de automóveis na China e uma escalada protecionista contra os carros chineses na Europa e nos Estados Unidos poderia ser acompanhada por medidas de igual teor contra as montadoras ocidentais na China. O Grupo Volkswagen, por exemplo, vendeu 3,2 milhões de carros na China em 2023, cerca de um terço das suas vendas globais.

Os governos ocidentais alegam que o governo chinês está oferecendo bilhões de dólares em subsídios para sua indústria de carros elétricos, como se eles próprios não estivessem fazendo o mesmo. Mas o que mais conta a favor da China nessa corrida é o fato de não ter que arrastar atrás de si o peso morto da velha indústria automobilista do século XX.

Além disso, o tamanho do mercado chinês e a disposição dos consumidores chineses de adquirem carros elétricos é muito maior do que no Ocidente. Há hoje na China 150 fabricantes de automóveis, inclusive os estrangeiros. Como destaca a já mencionada matéria da Economist, “Em novembro, cerca de 42% das vendas de automóveis na China eram de baterias puras ou híbridas. Isso está muito à frente da UE, com cerca de 25%, e da América, com apenas 10%”.

“A maioria dos analistas calcula [segundo a matéria] que até 2030 cerca de 80-90% dos carros vendidos na China serão veículos elétricos. E a China é agora, de longe, o maior mercado de automóvel do mundo, com cerca de 22 milhões de veículos de passageiros vendidos em 2022, em comparação com menos de 13 milhões na América e na Europa”. Nunca é demais lembrar que se trata de um mercado de 1,4 bilhão de habitantes, onde cerca de 400 milhões de pessoas fazem parte de uma próspera classe média com poder aquisitivo semelhante ou superior ao Ocidente.

Outro detalhe importante é que a China também domina a fabricação do componente mais crítico do carro elétrico que são as baterias elétricas. O país fabrica, atualmente, 70% das baterias de íons de lítio do mundo.

Luís Antonio Paulino
Luís Antônio Paulino é professor doutor associado da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e membro da equipe de colaboradores do portal “Bonifácio”.

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1 COMENTÁRIO

  1. Como sempre, outra excelente matéria do Prof Paulino.
    Independentemente da guerra comercial entre os países na produção dos carros elétricos, o planeta e a humanidade agradecem ao crescimento deste mercado haja vista a economia de combustíveis, a redução nas despesas com a manutenção mecânica e os benefícios ambientais dada a eliminação das emissões dos gases de efeito estufa (GEEs). Entretanto, cabem reflexões:
    – Considerando que o carvão mineral é o principal insumo das termoelétricas na Europa e responsável pelas maiores emissões de GEEs, será que o balanço entre a redução das emissões pela substituição do petróleo pelo mineral é favorável em relação ao aumento no consumo deste mineral?
    – E, mesmo sendo favorável, não comprometeria os compromissos assumidos pelos países desenvolvidos de redução total do carvão mineral até 2050?
    Ainda que o saldo das emissões dos GEEs seja favorável, o certo é que, se os países ricos querem levar a sério os acordos das COPs de reduzir o consumo e as emissões, deveriam, pelo menos substituírem o plus a mais na demanda dos caros elétricos pelos briquetes do biochar e pellets.
    Neste aspecto, o Brasil tem tudo para se locupletar das oportunidades que os carros elétricos proporcionam, dado que o país, senão único, é um dos poucos a conseguir produzir briquets e pellets de biomassa de reflorestamento e de resíduos agrícolas.

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