O filósofo alemão Karl Marx escreveu no “18 Brumário de Luiz Bonaparte” – obra em que analisa acontecimentos revolucionários na França, entre 1848 e 1851, que levaram ao golpe de estado após o qual Luís Bonaparte nomeou-se imperador, com o nome de Napoleão III, emulando seu tio, Napoleão I – que “Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha, e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado”.
Não sabemos se Biden leu Marx, mas, se não leu, deve estar aprendendo na prática o significado dessas palavras. Com o fim da União Soviética e da Guerra Fria, no início dos anos 90, o foco principal da política externa dos Estados Unidos deslocou-se para outros temas e regiões. Logo que tomou posse, Biden teve um encontro com o presidente da Rússia, Wladimir Putin, em Genebra, no qual, segundo a imprensa noticiou na época, teria sinalizado para o colega russo que não queria problemas com a Rússia, pois o foco principal da política externa americana agora era a China. Passados poucos meses daquele encontro, eis que os norte-americanos se veem obrigados a reajustar o foco de sua política externa e colocar novamente a relações com a Rússia no centro de suas preocupações.
Depois de ver a Aliança Atlântica avançar em direção ao leste, colocando sob seu guarda-chuva nuclear mais de uma dezena de países que no passado fizeram parte ou estiveram sob influência direta da antiga URSS, Putin resolveu pôr os pés na parede. Para ele é inaceitável que a Otan avance sobre o que considera parte de um todo indivisível, unido pela história, pela língua e pela cultura, que é a Rússia, a Ucrânia e a Bielorrússia, a chamada “Rússia de Kiev”. Muito menos ter armas nucleares da Otan voltadas contra Moscou em um país onde metade dos seus 50 milhões de habitantes falam russo como primeiro idioma e mais de 10 milhões são originários da Rússia.
Um enfrentamento armado na região certamente não estava nos planos de Biden, que está mais preocupado em promover sua agenda de meio ambiente e democracia, mas é com isso que vai ter que lidar nas próximas semanas se não se chegar a algum acordo. Algumas falas de Biden dão a entender que a invasão da Ucrânia pela Rússia é inevitável. Mas não é isso o que a Rússia deseja. O que Putin quer é o compromisso de que a Otan não se expanda mais para o leste, o que inclui a garantia formal de que a Ucrânia jamais fará parte daquela organização e a retirada de armas e tropas da organização dos países da Europa Oriental. Obtido esse compromisso, Putin se daria por satisfeito.
O problema é que essa não é a preferência do complexo industrial-militar norte-americano, que se alimenta de guerras. Por isso, estão pagando para ver e torcem para que Putin dê o próximo passo. Será uma ocasião e tanto para vender armas, principalmente se os aliados europeus dos Estados Unidos tomassem as dores da Ucrânia e resolvessem correr em sua defesa. Não parece, entretanto, que seja esse o desejo dos europeus. A Alemanha depende do gás russo e a França não ficou nenhum pouco satisfeita ao ser passada para trás pelos Estados Unidos no caso do cancelamento do contrato de venda de submarinos para a Austrália.
Há vários cenários possíveis. O primeiro seria a aceitação por parte dos Estados das exigências russas de que a OTAN retire tropas e armas da Europa Oriental e impeça a Ucrânia de entrar na aliança. O segundo cenário seria a não aceitação pelos Estados Unidos das exigências russas, mas com o recuo de Putin da ameaça de invadir a Ucrânia. O terceiro seria a invasão da Ucrânia pelos russos e a generalização de um conflito na região, envolvendo os aliados europeus dos Estados Unidos. O quarto seria a invasão da Ucrânia pela Rússia sem que houvesse o envolvimento direto dos Estados Unidos e seus aliados europeus no conflito, mas apenas o apoio financeiro, logístico e humanitário à Ucrânia para resistir a uma invasão russa.
Aparentemente o cenário com maiores chances de ocorrer no momento é este último. Primeiro porque os Estados Unidos já deixaram claro que não aceitam as exigências russas, pois não querem dar a impressão de que foram dobrados por Putin. Segundo porque é o cenário que mais interessa ao complexo militar-industrial norte-americano. Terceiro porque na ausência de um acordo talvez não reste outra opção para Putin se não quiser passar a imagem de que blefou. Quarto, porque é praticamente impossível que os membros europeus da OTAN se disponham a entrar em conflito bélico com a Rússia. Para eles a palavra de ordem é “resistir até o último ucraniano”. E nunca é demais lembrar que a quantidade de armas nucleares existentes na Europa é suficiente para destruir o mundo 16 vezes.
Há, obviamente, outros cenários possíveis, como uma invasão limitada do território ucraniano pela Rússia, apenas com o objetivo de criar um corredor entre a Rússia e a Criméia. Mas nada garante que, uma vez iniciado, o conflito militar possa ser assim limitado. Além do mais, isso não impediria que o que restasse da Ucrânia aderisse à Otan de forma ainda mais radical.
É preciso ainda considerar que novas sanções econômicas que os Estados Unidos prometem fazer contra a Rússia podem ter algum efeito dissuasório sobre Putin. Muitos oligarcas russos certamente não gostariam de ter suas contas bancárias bloqueadas no Ocidente. Mas em episódios anteriores, como a anexação da Crimeia pela Rússia, em 2014, as sanções não funcionaram. A Europa depende do gás natural da Rússia para gerar energia e aquecer-se no inverno. Os russos estão entre os maiores exportadores mundiais de trigo e minérios, dos quais a Europa também depende. Além do mais, a Rússia hoje está em situação muito mais cômoda, com mais de US$ 600 bilhões em reservas. E isso para não falar da sólida aliança que está sendo construída entre Moscou e Pequim. A verdade é que hoje a Rússia depende menos da Europa Ocidental do que esta depende da Rússia. Putin está com a faca e o queijo na mão.
Algumas observações:
1) A Rússia não tem e nunca teve qualquer intenção de “invadir a Ucrânia”, seu objetivo é apenas impedir um ataque militar ucraniano em grande escala a Donetsk e Luhansk (os ataques menores nunca cessaram desde 2014, principalmente com artilharia e agora, com drones turcos, causando literalmente milhares de mortes, principalmente civis).
2) A Rússia não precisa cruzar a fronteira para neutralizar o exército ucraniano, pode fazer isto do seu território, com uma interferência eletrônica maciça nas comunicações ucranianas e ataques de mísseis (muitos deles hipersônicos) contra os centros de comunicação, comando, controle e inteligência e áreas de concentração das forças de Kiev. Segundo especialistas militares americanos, isto seria conseguido em menos de 24 horas. Em 2014, três brigadas mecanizadas ucranianas que se preparavam para invadir Luhansk foram literalmente pulverizadas dessa maneira; oito anos depois, os recursos russos são bem maiores.
3) As concentrações de tropas “próximo” à fronteira (em muitos casos, a mais de 250 km), que nem de longe chegaram aos números estratosféricos citados “ad nauseam” na mídia, tiveram motivação semelhante à das provocações permanentes da OTAN junto às fronteiras com a Rússia e no Mar Negro (que diminuíram depois que o destróier inglês HMS Defender foi rechaçado à bala e bomba, no ano passado), ou seja, “estamos atentos e olhem o que podemos fazer” – e os especialistas da OTAN têm plena consciência disto.
De resto, Moscou já deixou claro que quer ter os seus interesses estratégicos devidamente considerados. Como já dizia o velho chanceler soviético Maksim Litvinov, na década de 1930, quando propôs durante anos uma coalizão contra Hitler, a segurança tem que ser coletiva e a paz, indivisível (e não estou endossando as atrocidades stalinistas). Ou seja: não estão dispostos a aceitar mais uma versão global da “Revolução dos bichos” de George Orwell – todos os países são iguais, mas alguns são mais iguais do que outros. Enquanto Washington, Londres, Bruxelas etc., não se dispuserem a entender e aceitar isso, haverá problemas.
Excelente análisis. Muchas gracias