As relações internacionais ainda hoje se baseiam nos princípios estabelecidos pelo Tratado de Vestfália, de 1648. Os mais importantes são o da soberania estatal (superioridade interna e insubmissão externa), que garante a cada país o direito de escolher sua própria organização interna e sua orientação religiosa; não ingerência nos assuntos internos de outros estados; Estados iguais em direitos e obrigações; Pacta Sunt Servanda (respeito pelos compromissos internacionais)[i]. O mundo é constituído, assim, por um conjunto de estados soberanos, acima dos quais não existe nenhum poder supranacional.
Obviamente existe uma determinada “ordem mundial”, conceito que se “refere ao equilíbrio internacional de poder, envolvendo as grandes potências, com suas áreas de influência, e disputas comerciais, econômicas, políticas, diplomáticas e culturais entre os Estados ou países”[ii]. Tal ordem garante uma relativa estabilidade nas relações internacionais, mas não elimina o caráter anárquico do sistema, que está permanentemente em xeque pelas disputas hegemônicas e pelas políticas de balanço de poder. A interminável sucessão de guerras e conflitos interestatais que tem assolado o mundo nos últimos cinco séculos é prova desse caráter intrinsicamente anárquico do sistema estatal vigente.
Para contornar os efeitos disruptivos de tal sistema, os Estados lançaram mão de diferentes arranjos ao longo da história, como a Sociedade ou Liga das Nações, criada em 1919 e autodissolvida em 1946, e a Organização das Nações Unidas, criada em 1948. A Carta da ONU acolhe nos incisos 1 e 4 de seu artigo 2º os mesmos princípios do Tratado de Vestfália:
1) A Organização baseia-se no princípio da igualdade soberana de todos os seus Membros;
4) Todos os Membros devem abster-se, em suas relações internacionais, de ameaças ou uso da força contra a integridade territorial ou independência política de qualquer Estado, ou de qualquer outra forma incompatível com os Propósitos das Nações Unidas.
Em 2005, a Assembleia Geral da ONU introduziu uma importante mudança nesses princípios, ao aprovar um documento que estabeleceu a “Responsabilidade de Proteger”. Tal princípio salienta que “cada Estado, individualmente, tem a responsabilidade de proteger a sua população de genocídio, crimes de guerra, limpeza étnica e crimes contra a humanidade”. Estabeleceu ainda que os Estados se comprometeram a estar “preparados para empreender uma ação coletiva, de modo decisivo e oportuno, por meio do Conselho de Segurança, no caso de inadequação dos meios pacíficos e do fracasso manifesto das autoridades nacionais na proteção de suas populações” contra tais atrocidades em massa. Foi com base nessa “Responsabilidade de Proteger” que o Conselho de Segurança da ONU autorizou a ação estrangeira que derrubou o governo de Muammar Kadafi, na Líbia, em 2011, e que lançou o país no caos em que permanece até hoje.
Na medida em que a globalização avança, o que se percebe é a tendência de transferir para o âmbito do controle internacional temas que até hoje estavam restritos à esfera nacional, como foi o caso acima mencionado dos direitos humanos. A bola da vez parecer ser a questão ambiental. Na medida em que aumenta a preocupação com o meio-ambiente, aumenta a pressão para que a ONU e particularmente seu Conselho de Segurança avoquem para si a “responsabilidade de proteger o meio ambiente” tal como ocorreu em 2005 com a questão dos direitos humanos. Ou seja, estabelecer, como no caso dos direitos humanos, que os Estados estejam “preparados para empreender uma ação coletiva, de modo decisivo e oportuno, por meio do Conselho de Segurança, no caso de inadequação dos meios pacíficos e do fracasso manifesto das autoridades nacionais de proteger o meio-ambiente”. Obviamente as coisas ainda não chegaram a esse ponto e uma formulação tão explicita ainda não existe, mas isso é uma questão de tempo.
No site do International Crisis Group (https://www.crisisgroup.org/), uma organização internacional que, segundo seu site, “trabalha para prevenir guerras e moldar políticas que irão construir um mundo mais pacífico” foi publicado, em dezembro último, um artigo intitulado “É hora de o Conselho de Segurança da ONU agir sobre a segurança climática”, no qual sê lê: “O Conselho de Segurança da ONU deve votar uma resolução pedindo a intensificação dos esforços internacionais para compreender e responder às implicações das mudanças climáticas para a paz e a segurança. A Irlanda e o Níger, dois membros eleitos do órgão, colocaram o projeto “em azul” – o que significa que o texto está quase na forma final.
Em 9 de dezembro, o presidente nigeriano, Mohamed Bazoum, presidirá uma sessão do Conselho sobre mudança climática e terrorismo. A votação do projeto de resolução poderá ocorrer em 10 de dezembro ou no início da semana que vem. China e Rússia não apoiam e qualquer um deles pode decidir vetar. Mas ainda há tempo para os membros da ONU colocarem seu peso nesta iniciativa, criando melhores chances para sua aprovação e, assim, atrair mais atenção da ONU para a segurança climática”.
De fato, a mencionada resolução foi posta em votação no Conselho de Segurança e, como previa o artigo, foi vetada pela Rússia e também teve o voto contrário da Índia. A China se absteve. De qualquer forma, o Brasil precisa ficar atento, pois a prosperar esse tipo de iniciativa, pressões pela internacionalização da Amazônia serão inevitáveis, nomeadamente em situações em que governos ineptos ou sem compromisso com a proteção do meio-ambiente expõem o país às pressões e às críticas internacionais.
A proposta do Triplo A, o controverso corredor ecológico que ligaria os Andes ao Atlântico, vai nessa direção. Conforme informa o site “eco”, em artigo publicado em 2017, esse corredor seria formado por “Uma grande área de 200 milhões de hectares onde vivem 30 milhões de pessoas, entre seus habitantes 385 povos indígenas de oito países sul-americanos. Este é o tamanho do que seria um imenso corredor ecológico transnacional que ligaria a Cordilheira dos Andes, passando pela floresta amazônica até o oceano Atlântico. Seriam no total 309 áreas protegidas (957.649 km2) e 1.199 terras indígenas (1.223.997 km2) ligadas pelo imenso corredor. A ideia de criar o Corredor Andes-Amazônia-Atlântico, também conhecido como triplo A ou, simplesmente, AAA, está em gestação há alguns anos e tem avançado a passos largos nos últimos meses”[iii].
Desnecessário dizer também que a causa ambiental e dos direitos humanos – dado o amplo apoio de que desfrutam – é uma cobertura conveniente para outros interesses. Veja-se, por exemplo, o indisfarçável propósito protecionista da Comissão Europeia, que apresentou em outubro passado “uma proposta para proibir a importação de madeira e de alimentos que tenham origem em áreas desmatadas. A lista de produtos da iniciativa inclui algumas das commodities mais exportadas pelo Brasil, como soja e carne”[iv]. Difícil imaginar que possa haver no mundo algum alimento que não tenha sido produzido em área desmatada, a não ser aqueles poucos coletados diretamente na natureza. Obviamente tal tipo de instrumento permanecerá como uma “espada de Dâmocles” pendurada por um fio nas mãos dos agricultores europeus, particularmente os franceses, sobre a cabeça de todos os exportadores de alimentos e matérias-primas do Terceiro Mundo.
[i] https://www.politize.com.br/paz-de-westfalia/
[ii] https://pt.wikipedia.org/wiki/Ordem_mundial
[iii] https://oeco.org.br/reportagens/triplo-a-o-controverso-corredor-ecologico-que-ligaria-os-andes-ao-atlantico/
[iv] https://www.dw.com/pt-br/ue-prop%C3%B5e-vetar-importa%C3%A7%C3%B5es-de-alimentos-de-%C3%A1reas-desmatadas/a-59851367