Não bastasse o ambiente tóxico da política americana, no qual a ainda enorme influência do ex-presidente Trump sobre o Partido Republicano torna a construção de qualquer consenso virtualmente impossível, Joe Biden vê-se, agora, às voltas com divisões dentro de seu próprio partido.
Dada a exígua maioria dos democratas na Câmara e o empate entre republicanos e democratas no Senado, qualquer racha entre eles pode inviabilizar a aprovação de projetos de interesse do governo. Depois de costurar a aprovação no Senado, em agosto passado, de um pacote US$ 1 trilhão em investimentos em infraestrutura, com apoio de 19 senadores republicanos, o governo Biden quer aprovar um novo pacote de US$ 3,5 trilhões em investimentos sociais e medidas para combater a mudança climática para os próximos 10 anos.
O plano de infraestrutura, de US$ 1 trilhão, destinará US$ 65 bilhões para expandir o acesso de alta velocidade à Internet; US$ 110 bilhões para estradas, pontes e outros projetos; US$ 25 bilhões para aeroportos; e o maior financiamento para a Amtrak desde que o serviço ferroviário de passageiros foi fundado em 1971. Ele também estimula a mudança para veículos elétricos com novas estações de recarga e fortificações da rede elétrica que serão necessárias para abastecer esses carros.
O pacote de investimentos sociais e de combate às mudanças climáticas introduziria o ensino pré-escolar universal para crianças de três e quatro anos, limitaria os custos de creches para crianças menores de cinco anos em 7% da renda da maioria das famílias e estenderia os pagamentos mensais diretos para famílias com crianças. O pacote também forneceria fundos para dois anos de faculdade comunitária gratuita, aumentaria as bolsas de estudo do governo para estudantes universitários de baixa renda e investiria em faculdades e universidades historicamente negras.
As propostas de Biden iriam expandir o esquema de seguro saúde do governo para os idosos além dos cuidados médicos básicos para também cobrir serviços odontológicos, auditivos e de visão, e introduzir 12 semanas de licença familiar e médica remunerada. O último pilar inclui centenas de bilhões de dólares para programas federais destinados a combater a mudança climática, incluindo um esquema que pagaria as concessionárias para aumentar seu fornecimento de energia renovável, bem como créditos fiscais para indivíduos que compram veículos elétricos.
Para que esses dois pacotes de investimentos possam ser executados, eles precisam ser transformados em lei, mas as divisões internas no partido democrata estão obrigando presidente da Câmara, Nancy Pelosi e o líder da maioria no Senado, Chuck Schumer, a postergarem sua votação, enquanto Biden tenta costurar um consenso entre as diferentes alas do Partido Democrata. De um lado, a ala mais à esquerda do partido não aceita votar o pacote de infraestrutura acordado com os republicanos sem a garantia de aprovação do pacote de investimentos sociais e medidas de combate às mudanças climáticas e, de outro, a ala moderada considera o valor de US$ 3,5 tri para esse pacote de investimentos sociais e climáticos muito elevado e deseja reduzi-lo para US$ 2 trilhões ou menos.
Na sexta-feira, 5 de novembro, depois de um dia inteiro de debates, que opôs democratas moderados aos progressistas, a Câmara aprovou o projeto de lei de US $ 1 trilhão para obras de infraestrutura e enviou o projeto para a sanção final do presidente. Mas o projeto de lei sobre investimentos sociais e mudança climática continua em espera, com meia dúzia de democratas moderados a conservadores retendo seus votos até que uma análise apartidária do Comitê de Orçamento do Congresso ateste que seu valor final, agora reduzido para US$ 2 trilhões é realmente este.
O problema maior, entretanto, está no senado, onde a divisão 50/50 exige o voto unânime de todos os senadores para aprovar o pacote por meio do mecanismo de “reconciliação”. Mas dois senadores da ala moderada do Partido Democrata, por razões diferentes, não aceitam votar a favor do pacote de investimentos sociais, a não ser que os gastos previstos sejam reduzidos substancialmente. Um deles é o senador Joe Manchim, da Virgínia Ocidental, um estado rural conservador e relativamente pobre, localizado na região dos montes Apalaches, cuja principal atividade econômica é a produção de carvão. Antes de entrar para a política, Manchim fez fortuna em uma firma de corretagem de carvão e tem, entre os seus principais doadores de campanha, a indústria do carvão. Frequentemente tem votado com os republicanos, para alinhar-se com eleitorado crescentemente conservador de seu estado. Especula-se que ele poderia deixar o Partido Democrata para tornar-se independente.
Manchim é contra o Programa de Pagamento de Energia Limpa, o núcleo da tentativa de Biden de agir contra a mudança climática, e quer impor requisitos de trabalho ao crédito tributário infantil estendido, um elemento-chave nos planos de investimento nas crianças do país, e limitá-lo a famílias com renda anual de até US$ 60 mil. Ele quer que o pacote de investimentos sociais e medidas para combater a mudança climática seja reduzido para US$ 1,5 trilhão e deixou claro que se opõe a uma proposta específica de gastar US$ 150 bilhões incentivando as empresas de energia a abandonar os combustíveis fósseis.
A outra senadora democrata que não concorda com o pacote de US$ 3,5 tri é Kyrsten Sinema, do Arizona. Sinema iniciou sua carreira política no Partido Verde e tornou-se conhecida por sua advocacia pelos direitos LGBT e o casamento entre pessoas do mesmo sexo em seu estado. Em 2012, foi eleita para a Câmara dos Representantes e passou a fazer parte da Coalização Blue Dog, adotando posições políticas moderadas e bipartidárias durante seu mandato. A senadora Sinema é uma grande recebedora de doações da indústria farmacêutica e empresas do setor financeiro e se opôs à proposta de dar ao Medicare – o sistema de seguros de saúde gerido pelo governo americano destinado às pessoas de idade igual ou maior que 65 anos ou que verifiquem certos critérios de rendimento – a autoridade para negociar preços mais baixos de medicamentos controlados, que são em média duas vezes e meia mais altos do que em outros países ricos. Se opôs também aos aumentos de impostos propostos pelos democratas para custear o pacote, incluindo o aumento da alíquota de imposto corporativo de 21% para 25%, à elevação da alíquota máxima do imposto de renda para pessoa física de 37% para 39,6 % e aumento da taxa de imposto sobre ganhos de capital para 28%.
Ao discutir as dificuldades de Biden para passar esse arrojado pacote de medidas, o comentarista do Financial Times, Edward Luce, observa que “É mais fácil falar de “moderados” versus “esquerdistas” do que apontar a facilidade com que os lobistas podem reduzir modestas melhorias na rede de segurança da América e mudanças para uma economia de energia limpa”.
Segundo ele, “A lacuna entre essa promessa e a realidade é explicada pelo poder duradouro dos grandes grupos de lobby. Biden queria dar ao Medicare autoridade para negociar preços mais baixos de medicamentos prescritos, que são em média duas vezes e meia mais altos do que em outros países ricos. O lobby feroz da indústria farmacêutica acabou com isso – e, com isso, uma rara chance de Washington alavancar sua influência para tornar os medicamentos mais acessíveis. A indústria de combustíveis fósseis da América também está ganhando. As tentativas de debater um imposto sobre o carbono continuam sendo estranguladas no berço. Agora os US $ 150 bilhões de Biden para dar às empresas de eletricidade um incentivo para mudar do carvão e gás para energia renovável estão sendo removidos da conta. Isso privou Biden de uma posição diplomática elevada na cúpula da mudança climática COP26 em Glasgow. Se os EUA – com emissões de carbono per capita 70 por cento maiores do que a média dos países ricos – não podem parar de usar carvão, como podem persuadir a China e a Índia? O setor de serviços financeiros também tem motivos para comemorar. Os planos de Biden de dar ao Serviço de Receita Interna um escopo modesto para monitorar as entradas e saídas brutas de certas contas bancárias também estão em declínio”.
Excelente artigo professor! uma visão cirúrgica da politica interna americana!