Resenha Estratégica – Vol.18 – nº 14 – 14 de abril de 2021.
No célebre conto de Hans Christian Andersen, um embusteiro se finge de alfaiate e empenha-se em extorquir um vaidoso imperador, arrancando-lhe muito dinheiro em troca da promessa de confeccionar um luxuoso traje que, no entanto, segundo ele, apenas pessoas inteligentes poderiam ver. Quando, por fim, o monarca decide desfilar pela cidade para exibi-lo, todos fingem admiração com a magnificência da roupa inexistente, para não denunciar uma possível falta de inteligência, até que uma criança aponta o óbvio: ele estava nu em pelo.
É possível que o ministro da Economia Paulo Guedes tenha lido Andersen antes da sua estada em Chicago, onde se aprofundou em alguns dos clássicos da economia (sempre no original, como faz questão de enfatizar). Mas, comandando a economia de um País onde a Receita Federal – vinculada ao seu ministério – pretende taxar os livros por considerar que apenas ricos os compram, é irônico que insista em agir como o falso alfaiate do conto, vendendo a ilusão de que a esperada recuperação da economia estaria logo ali na esquina, bastando insistir um pouco mais na aprovação das míticas “reformas” e na venda do que resta do patrimônio do Estado – ladainha que vem repetindo desde que assumiu o cargo.
Em paralelo, a “nudez” da economia, agravada pelas consequências da pandemia de Covid-19 – caos sanitário, estagnação produtiva, desemprego recorde, preços de alimentos e combustíveis em alta etc. -, ameaça o País com dramáticos desdobramentos, que podem escalar facilmente para convulsões sociais de grandes proporções.
E não são apenas “crianças” oposicionistas que têm chamado a atenção para a alfaiataria fictícia de Guedes. Em um artigo publicado no “Estadão” de 12 de abril, o economista Luís Eduardo Assis, ex-diretor do Banco Central e professor da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP) e da Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP) em São Paulo, disse sem rodeios que o desemprego deverá se agravar e não haverá qualquer recuperação econômica sem uma ação firme do governo. Para ele:
O nível de emprego é nosso ponto nevrálgico, o nervo exposto do dente cariado da economia. (…) O que o IBGE nos conta é trágico. O total de pessoas desocupadas subiu de 11,9 milhões em janeiro de 2020 para 14,3 milhões em janeiro último. O número de pessoas fora da força de trabalho saltou de 65,7 milhões para 76,4 milhões no mesmo período. Também entre janeiro de 2021 e janeiro do ano passado a massa de rendimentos efetivamente recebidos passou, em termos reais, de R$ 255,6 bilhões para R$ 226,5 bilhões, queda de 11,4%. Este tombo foi parecido com a redução no número de pessoas ocupadas no setor privado com carteira assinada, da ordem de 11,6%. O recuo no número de empregadores foi ainda maior, 12,4%. O contingente de trabalhadores domésticos despencou 21,4%, ao passo que no setor de alojamento e alimentação o declínio alcançou 28,1%, sempre na comparação entre janeiro de 2021 e janeiro de 2020. (…) Pesquisa da XP-Ipespe de março mostra que 45% dos pesquisados acreditam que é pequena ou muito pequena a chance de manterem o emprego nos próximos seis meses. A mesma enquete registra que 65% acham que a economia está no caminho errado.
O Ministério da Economia não demonstra maior preocupação com o colapso do nível de emprego. Enquanto os EUA rompem com paradigmas fiscais e anunciam um megaprograma de incentivo ao crescimento, ficamos aqui enroscados em dogmas e crenças. O pequeno auxílio emergencial de 2021 foi extraído a fórceps, o programa de sustentação dos empregos formais não foi renovado e a barafunda na aprovação do Orçamento de 2021, em pleno mês de abril, mostra que a política econômica se perdeu. O desemprego ainda vai se agravar no segundo trimestre. A recuperação, mais adiante, será lenta, na ausência de uma ação mais firme do governo. (…)
A menção aos EUA é das mais oportunas, pois o megapacote de investimentos públicos de 2 trilhões de dólares anunciado pelo presidente Joe Biden (ver Resenha Estratégica, 07/04/2021) remete às raízes da prosperidade econômica estadunidense, cujos fundamentos têm muito menos ideologia e muito mais pragmatismo do que se geralmente se supõe. Não é à toa que, guardadas as proporções de personagens e situações, o plano de Biden tem sido comparado ao New Deal de Franklin Roosevelt (1933-1945), com o qual os EUA começaram a sair da Grande Depressão da década de 1930. Mas é pouco provável que Guedes tenha estudado seriamente o New Deal e a tradição de intervencionismo do Estado por ele representada, a qual remonta às políticas do secretário do Tesouro Alexander Hamilton, no final do século XVIII, que lançaram as bases para a construção e consolidação da maior potência industrial e econômica do planeta, nos dois séculos seguintes (e que começou a ser desmontada apenas pela “globalização financeira” iniciada na década de 1970).
Como insinua Assis, o “Posto Ipiranga” não demonstra a menor sensibilidade social. Ao contrário, suas declarações públicas denotam um inequívoco compromisso com os interesses da sua classe social, o 0,1% do topo da pirâmide, beneficiário das políticas pró-rentismo hegemônicas no País desde a década de 1990, que converteram os títulos da dívida pública no melhor “investimento” disponível na praça, em detrimento das atividades produtivas reais (com o setor agropecuário como uma rara exceção) e do bem-estar da grande maioria da população.
Basta recordar duas dessas “pérolas”.
A primeira foi a sua insuperável crítica à suposta perdulariedade dos pobres, que não saberiam poupar: “Os ricos capitalizam seus recursos. Os pobres consomem tudo” – disse ele, em uma reveladora entrevista à Folha de S. Paulo, em novembro de 2019.
E por que será que os pobres “consomem tudo”, ministro? (Dica: antes da pandemia, cerca de um quarto das famílias brasileiras tinha renda mensal de até R$ 1.650,00, e a proporção passou para 26,7% ao final de 2020. E três em dez domicílios chegaram ao final do ano sem qualquer fonte de renda obtida por meio de trabalho. Os dados são do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada-IPEA, órgão vinculado ao Ministério da Economia [O Estado de S. Paulo, 08/04/2021]).
A segunda, na célebre reunião ministerial de 22 de abril do ano passado, convocada para a discussão do natimorto Plano Pró-Brasil da Casa Civil da Presidência, foi a afirmativa de que o governo perderia dinheiro com empréstimos a empresas pequenas, ao contrário do que ocorreria com as grandes: “Nós vamos botar dinheiro, e vai dar certo e nós vamos ganhar dinheiro. Nós vamos ganhar dinheiro usando recursos públicos pra salvar grandes companhias. Agora, nós vamos perder dinheiro salvando empresas pequenininhas (UOL, 22/05/2020).”
Ocorre que, como em quase todas as economias, as micro e pequenas empresas (MPEs) representam a maioria dos empregos formais oferecidos. Em janeiro deste ano, em meio aos efeitos da pandemia, elas responderam por nada menos que 75% dos postos de trabalho formais registrados no mês, de acordo com o Sebrae (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas).
No conto de Andersen, a vaidade do imperador o impede de constatar a vigarice do pretenso alfaiate. No caso de Guedes, a sua permanência se deve, em grande medida, à confessada ignorância econômica do presidente Jair Bolsonaro, a quem até agora serviu como um fiador do apoio dos mercados financeiros ao seu governo. Todavia, não é mais possível ignorar o caráter ilusório das suas promessas sobre a recuperação da economia.
E a solução para o dilema – que, convém enfatizar, pode assumir contornos perigosos para a estabilidade social e política do País – não reside, simplesmente, na sua substituição por alguém com mais sensibilidade para a realidade nacional, mas passa também por uma inadiável mudança de rumo que volte a privilegiar a economia real, e não apenas os interesses dos seus pares na Avenida Faria Lima e na Casa das Garças.