A primeira década do século XXI foi marcada pela potencialização de relevantes instrumentos de cooperação multilateral entre os Estados nacionais na América do Sul. Dentre os mais relevantes, constaram a criação da Comunidade Sul-Americana de Nações (CASA), em 2004, que posteriormente, em 2008, se desdobraria na União das Nações Sul-Americanas (UNASUL), e seus elementos acessórios, tais como Conselho de Defesa Sul-Americano (CDS) e os projetos da Iniciativa para a Integração de Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA), integrados ao Conselho Sul-Americano de Infraestrutura (COSIPLAN) da UNASUL. O fato de tais iniciativas terem se fortalecido de forma concomitante à ascensão de governantes de esquerda e centro-esquerda na região – tais como Chávez, Lula, Kirchner, Tabaré Vásquez, Evo e Correa – gerou uma profunda confusão numa série de análises e avaliações acerca do protagonismo do Brasil em tais articulações. Aos olhos de muitos, os esforços brasileiros respondiam às opções ideológicas do Partido dos Trabalhadores (PT), e, não por acaso, após a queda de Dilma, tanto o governo de Michel Temer quanto o de Jair Bolsonaro têm promovido o desmonte das articulações regionais herdadas do período petista.
No entanto, longe de responderem a meras vontades políticas das esquerdas brasileiras, grande parte dessas construções esteve alinhada às perspectivas de longa duração das tradições de nossa política exterior. Afinal, como destacou o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, em sua célebre obra Quinhentos anos de periferia, a América do Sul – com a qual compartilhamos nada menos do que 16.886 km de fronteiras terrestres – é e seguirá sendo circunstância inevitável, histórica e geográfica do Brasil. E basta um breve olhar à nossa trajetória diplomática para que percebamos o quanto isso esteve presente nas orientações dos governantes dos mais distintos matizes ideológicos, e o quão distante do interesse nacional se encontra nossa atual orientação de política regional, sob a chancela do ministro revisionista Ernesto Araújo.
O Barão do Rio Branco, patrono da diplomacia brasileira, reconhecia e legava centralidade às relações do Brasil com os Estados Unidos, e não por acaso estabeleceu com os estadunidenses aquilo que Bradford Burns conceituou como uma aliança não-escrita, reivindicando a Doutrina Monroe enquanto mecanismo defensivo perante as ameaças de potências europeias aos países americanos. No entanto, ao tempo em que legitimava o substrato ideológico da inserção regional dos Estados Unidos, e mesmo suas intervenções na América Central e no Caribe a partir do Corolário Roosevelt, fez questão de delimitar a América do Sul como uma zona de interesses primordiais do Brasil, onde os problemas políticos deveriam ser eximidos das gestões de potências extrarregionais.
Assim – após assistir em silêncio os europeus ameaçarem o completo bombardeio da costa venezuelana para cobrar dívidas, em 1903, e os Estados Unidos nada fazerem para honrar os ideais monroístas -, o Brasil ameaçou, em 1909, romper relações diplomáticas com os estadunidenses, após os mesmos emitirem ultimatum ao Chile pelo não pagamento de uma dívida de um milhão de dólares junto da Alsop & Co. O gesto brasileiro contribuiu para que não se repetissem os acontecimentos de 1903, e demarcou a nova postura do país para com os acontecimentos na esfera regional sul-americana. Paralelamente, seriam dirimidas as históricas escaramuças entre brasileiros e argentinos, e as melhores relações com a vizinhança resultariam nas buscas de concertação do Pacto do ABC, visando garantir a estabilidade da América do Sul a partir de uma liderança compartilhada de Argentina, Brasil e Chile.
As décadas se passaram, o Pacto do ABC não vingou, mas a dimensão sul-americana da política externa brasileira, com idas e vindas, voltou a se delimitar com maior clareza já na década de 1970. Por um lado, com a aproximação com a Argentina, ensejada ainda durante o regime militar, envolvendo tanto a resolução dos imbróglios de Itaipu quanto a neutralidade positiva do Brasil com relação aos argentinos na Guerra das Malvinas. Por outro, com a articulação do Tratado de Cooperação Amazônica (TCA), em 1978, envolvendo o conjunto dos países amazônicos vizinhos. Por fim, com a retomada da atividade mediadora no entorno sul-americano, visando impedir que as disputas políticas na vizinhança internalizassem os influxos da Guerra Fria e atraíssem a atividade militar das duas superpotências, Estados Unidos e URSS, para a América do Sul.
Dessa forma, ainda que o regime militar brasileiro afirmasse explícita orientação anticomunista – e nos anos anteriores tivesse apoiado atividades de contra-insurgência nos países do Cone Sul -, foi prudente ao estabelecer equidistância no conflito entre a Venezuela, de orientação anticomunista, e a Guiana, com governo de tendências socialistas, diante das escaramuças por Essequibo. Nesse mesmo sentido, buscou evitar intervenção dos Estados Unidos contra o governo esquerdista do Suriname, ao enviar a Missão Venturini para o país em 1983, estabelecendo cooperação bilateral e retirando-o da órbita de influência cubana.
Para além do sentido político-estratégico, a América do Sul demonstrou sua enorme importância na condição de mercado privilegiado para as exportações industriais brasileiras. Não por acaso, a posterior consolidação do MERCOSUL, na década de 1990, viria acompanhada da instalação do mecanismo 4+1 de negociações, que levava os países do bloco a discutir conjuntamente a adesão a novas iniciativas de liberalização comercial, tais como aquelas orientadas pelos Estados Unidos, sob o signo da Iniciativa para as Américas e da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA). Dessa forma, ao tempo em que o Brasil fortalecia os laços comerciais com o país de seu entorno imediato, retardava as negociações em prol adesão ao projeto estadunidense, estabelecendo a integração do mercado sul-americano enquanto um passo prévio a tal avanço.
Paralelamente, aprofundou-se a tendência de recuperação do protagonismo brasileiro na mediação dos conflitos na vizinhança. Tal esforço ficou evidente na mediação exercida na disputa territorial entre Equador e Peru por territórios próximos à Bacia do Rio Cenepa, em 1995; no apaziguamento nos distúrbios entre partidários do general Lino Oviedo e ex-Presidente Juan Carlos Wasmosy no Paraguai; na insistência em tratar politicamente o conflito entre o Estado colombiano e as guerrilhas de orientação marxista, evitando adesão à estratégia estadunidense de militarização da região através de instrumentos tais como o Plano Colômbia; e, por fim, na constituição do Grupo de Amigos da Venezuela – junto da OEA, dos Estados Unidos e da Espanha, diante dos agudos conflitos decorrentes do golpe de Estado contra Hugo Chávez em 2002 -, instrumento crucial para evitar a eclosão de uma guerra civil no país.
Nesse sentido, ao chegar Lula à Presidência, tanto o entendimento estratégico da América do Sul como um espaço político privilegiado da inserção regional brasileira, a ser afastada da presença ideológica e militar de potências extrarregionais, quanto um espaço a ser progressivamente integrado à economia nacional, eram orientações já predominantes na trajetória de nossa diplomacia. A própria organização do primeiro encontro entre o conjunto dos presidentes da América do Sul na Cúpula de Brasília, em 2000, ocorreu ainda durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, e teve como sua principal resultante a conformação da IIRSA.
E, longe do que fora propagado pelos antagonistas do aprofundamento da cooperação multilateral sul-americana, nem a CASA nem a UNASUL refletiram o predomínio ideológico do “bolivarianismo chavista”. Pelo contrário: as principais proposições do governo de Hugo Chávez para o concerto regional sul-americano foram recusadas pelos países protagonistas de tais iniciativas, e antagonizadas especialmente pelo Brasil. O instrumento de cooperação regional alinhado à perspectiva chavista e, por extensão, do governo socialista de Cuba esteve, à época, materializada na Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América (ALBA), da qual o Brasil nunca fez parte.
Em lugar das proposições chavistas de integração das Forças Armadas dos países sul-americanos, conformando as Forças Armadas Latino-Americanas, ou de estabelecimento de uma aliança militar resultante numa Organização do Tratado da América do Sul (OTAS), triunfou na UNASUL a proposta brasileira de construção do Conselho de Defesa Sul-Americano (CDS). Tal conselho se alinhava às perspectivas da Estratégia Nacional de Defesa (END) do país, publicada em 2008, e contou com a aceitação não apenas dos países governados pelas esquerdas, mas também daqueles com governos conservadores, vide a assertiva chancela do presidente colombiano Álvaro Uribe.
Apesar da ênfase chavista no fortalecimento do Banco do Sul, foram instrumentos tradicionais de financiamento regional, tais como o BID e a CAF, e mesmo o BNDES, que foram privilegiados nos esquemas de potencialização das obras de infraestrutura. Na Cúpula Energética de 2007, realizada em Isla Margarita, na Venezuela, as principais proposições chavistas também foram derrotadas no concerto multilateral: a criação de uma eventual Organización de Países Productores y Exportadores de Gas de Suramérica (OPPEGASUR), a construção do Gasoduto do Sul e a condenação da proliferação dos biocombustíveis.
Em todos esses debates, o Brasil antagonizou as pretensões dos ditos países bolivarianos, e principalmente da Venezuela chavista, dando centralidade aos interesses nacionais de longo prazo, consubstanciados nas mesmas compreensões que forjaram o vetor sul-americano de sua política exterior nas décadas anteriores: 1) da América do Sul como espaço de articulação política a ser afastado das influências de potências extrarregionais; 2) da América do Sul como mercado privilegiado a ser integrado, progressivamente, à economia brasileira. E o meio para atingir tais objetivos era, assim como à época de Rio Branco, construir mecanismos de cooperação multilateral que, acima das ideologias dos governantes momentâneos, garantissem uma liderança compartilhada que forjasse a estabilidade política da região.
Claramente, ainda que o PT mantivesse importantes laços político-ideológicos com os partidos governantes dos países ditos bolivarianos – tais como o Movimento ao Socialismo (MAS), de Evo, o Partido Socialista Unificado da Venezuela (PSUV), de Chávez, e o Partido Comunista de Cuba (PCC) -, não foram tais relações que nortearam a política externa do Brasil para a América do Sul. Pelo contrário: ela representou a consolidação de tendências há décadas esboçadas na trajetória da inserção internacional, e especialmente regional, do país. O fortalecimento da cooperação multilateral com os países vizinhos respondia, portanto, aos interesses econômicos e de segurança e defesa do país, e, inquestionavelmente, foi relevante para garantir que o equacionamento de conflitos políticos sul-americanos de então – como os da tentativa de separatismo na Media Luna boliviana, e aqueles entre Colômbia e Equador, e Colômbia e Venezuela – prescindisse da atuação de potências extrarregionais.
O revisionismo em voga na nossa orientação diplomática, que enxerga em tais instrumentos um mero reflexo de um suposto “bolivarianismo petista”, ignora a história e as tradições de nossa política exterior. Ao tempo em que visualizamos o completo desmantelamento da UNASUL e a fragilidade de proposições como o PROSUL, também assistimos à maior presença militar e econômica das potências extrarregionais no nosso entorno sul-americano. A total incapacidade dos países da região, e mesmo do Brasil, em lidar com a crise venezuelana é sintomática dessa desorientação, e os perigos da internalização dos influxos de uma Segunda Guerra Fria pairam, portanto, sob a trajetória errática de um chanceler que insiste em olhar para a América do Sul com as lentes de ideologias que pouco traduzem os nosso verdadeiros e essenciais interesses nacionais de longo alcance.