Revista Resenha Estratégica
Vol. 17 | nº 33 | 26 de agosto de 2020. Lorenzo Carrasco.
O que poderia ser uma rotineira eleição do novo presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) está revelando uma grave deterioração das relações hemisféricas. Pelo acordo não escrito estabelecido na fundação do banco, em 1959, a presidência seria sempre ocupada por um representante latino-americano, cabendo aos EUA a vice-presidência. Agora, o governo de Donald Trump decidiu fazer letra morta do acordo, em busca do controle direto do banco como instrumento de sua estratégia de confrontação com a China, que se converteu no principal sócio comercial de vários países da região.
Uma sensata proposta do governo do Chile, apoiada pela Argentina, México, Peru e outros países, no sentido de adiar a eleição por seis meses, para depois da fase aguda da pandemia de Covid-19 e das eleições presidenciais nos EUA, foi rejeitada pelos EUA, que querem uma eleição virtual na data original de meados de setembro – posição apoiada pelo Brasil (que pretendia apresentar uma candidatura, antes do anúncio estadunidense) e a Colômbia.
A nota conjunta do Ministério da Economia e do Itamaraty demonstra um alinhamento desavergonhado com Washington: “O Brasil e os Estados Unidos compartilham valores fundamentais, como a defesa da democracia, a liberdade e o Estado de Direito. O Brasil defende uma nova gestão do BID de acordo com esses valores.”
Na mesma linha, vai a chancelaria colombiana: “A eleição do presidente do BID é de suma importância para nossa região e para a condução do banco no maior desafio da era contemporânea… para proteger os interesses da região e a soberania hemisférica do nosso Banco Interamericano (sic)… Nossos povos necessitam de soluções que não podem ser postergadas.”
Como pano de fundo desse vexaminoso alinhamento das duas maiores economias da América do Sul com Trump, a luta pela presidência do BID tem a ver com uma pretensa reestruturação da ordem de segurança hemisférica, detonada pelos próprios EUA na Guerra das Malvinas, em 1982, ao ignorar o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR) e apoiar ostensivamente a Inglaterra. Depois disto, houve algumas tentativas de restabelecimento da ordem hemisférica, pela sua submissão à “Nova Ordem Mundial”, tarefa encetada pelo Diálogo Interamericano, cujo propósito era o de fragilizar as instituições dos Estados nacionais da região, sob um disfarce ruim de “defesa” da democracia e da liberdade, a mesma retórica que volta agora a ser apresentada.
Por outro lado, apesar da legitimidade da iniciativa de criação de uma instituição de defesa como a União das Nações Sul-americanas (Unasul), a falta de uma autêntica doutrina de integração esvaziou o empenho, como parece ser o hábito em todos os esforços de integração soberana realizados na região.
Hoje, vale recordar as palavras do chileno Felipe Herrera, fundador e primeiro presidente do BID (1960-1970), em seu discurso “Integração econômica e reintegração política”, proferido em Salvador (BA), em agosto de 1962. Na ocasião, ele assim definiu a América Latina: “(É) uma grande nação desfeita; não é uma entidade fictícia a nação latino-americana. Ela está na raiz dos nossos Estados modernos, persiste como força vital e realidade profunda. Sobre o seu singular material indígena, diverso em suas formas e maneiras, mas similar em sua essência, leva o selo de três séculos de dominação ibérica. Experiências, instituições, cultura e influências afins a formaram, do México ao Estreito de Magalhães. Assim, unitária em seu espírito e em sua força, se levantou para a sua independência.”
No livro América Latina integrada (Editorial Losada, Buenos Aires, 1964), Herrera reitera que a América Latina é um caso único, de um continente com um passado indígena comum, que manteve formas culturais e raciais muito similares, cimentadas durante 300 anos de período colonial. Segundo ele, todos esses elementos se desintegraram após a Independência, sendo, pois, o momento de se voltar a reuni-los, conservando os traços identitários de cada um deles.
Para Herrera, o BID deveria ser “mais que um banco”, mas o líder econômico e intelectual, motor do desenvolvimento tecnológico, econômico e social dentro da integração continental, tendo formulado a necessidade de criação de um mercado comum do conhecimento. Foi com esse espírito que, na presidência do banco, deu as boas-vindas à proposta da Aliança para o Progresso do presidente estadunidense John Kennedy. Antes de presidir o BID, Herrera foi ministro da Economia no governo do presidente Carlos Ibánez del Campo (1952-58), quando foi proposta a tentativa de integração econômico-estratégica com a Argentina e o Brasil, apoiada pelos presidentes Juan Domingo Perón e Getúlio Vargas, mas que deflagrou uma reação visceral dos centros de poder mundial e seus sócios internos, provocando a desestabilização política dos três países.
Em síntese, a questão não é apenas de preservar o acordo sobre quem deve presidir o BID, mas estabelecer os princípios da segurança hemisférica com base na soberania de todos os Estados nacionais, em lugar de agir como coadjuvantes de uma disputa geopolítica que pretende reviver como farsa a comédia de uma nova “Guerra Fria”.
Sempre os malditos americanos: sangue e sinismo se abraçam formando uma cultura de assassinos para machucar almas dos inocentes. A América latina deveria de unir para não se prostituir.