Diz um ditado bem conhecido no Brasil que jabuti não sobe em árvore. Se está lá é porque alguém o colocou. O conflito recente entre forças indianas e chinesas no Himalaia bem que poderia ser catalogado na categoria dos “jabutis”. Afinal, a quem interessaria, a esta altura dos acontecimentos, reacender uma questão de fronteira que segue irresolvida há mais de cinco décadas e cuja solução pode levar outras cinco? Qual fato ou fatos novos fizeram reacender uma velha disputa em momento tão inoportuno, sobretudo para a China que se vê às voltas com a mais grave crise econômica dos últimos 40 anos e sob fogo cerrado dos Estados Unidos?
A crise do Covid-19 tem dado ensejo a muitos erros de cálculo político na Ásia, que podem ter consequências graves. Depois da líder de Taiwan aproveitar a onda de ataques dos Estados Unidos à China para dar novo impulso ao movimento separatista da ilha, a Índia aproveitou-se do mesmo contexto para avançar sobre território chinês em área de disputa histórica de fronteiras nas montanhas do Himalaia. O conflito entre tropas dos dois países deixou 20 militares indianos mortos e um número não divulgado de baixas no lado chinês, aumentando a tensão entre os dois países.
Desde a breve guerra entre China e Índia, em 1962, em razão da mesma disputa fronteiriça, é a primeira vez que escaramuças entre soldados dos dois países na região resulta em mortes. A Índia vem implantando obras de infraestrutura ao longo da fronteira em disputa e construiu parte das instalações no lado chinês da Linha Atual de Controle (LAC), como o próprio primeiro ministro indiano admitiu, ao afirmar que a China não havia invadido território reivindicado pela Índia, desencadeando o atual conflito.
Os Estados Unidos, que vêm tentando atrair a Índia para sua Estratégia Indo-Pacífico com o objetivo de manter o predomínio militar americano na região e “conter” a China, viram no episódio uma oportunidade de convencer a Índia, que tradicionalmente sempre foi um país “não alinhado”, a escolher um dos lados. Para isso contam também com a simpatia do primeiro ministro indiano, Narendra Modi, um dos líderes mais pró-americanos que a Índia já teve.
Em artigo recente, publicado no site TheDefensePost (https://www.thedefensepost.com/author/inderjeetandatul/), os estudiosos Inderjeet Parmar, professor de política internacional da City University of London, e Atul Bhardwaj, pesquisador honorário na mesma instituição, chamaram atenção para a relação entre o conflito e a estratégia dos Estados Unidos de domínio das rotas marítimas de comércio internacional.
Segundo os autores, “as tensões China-Índia persistirão porque estão ligadas à Guerra Fria EUA-China, que é uma batalha titânica sobre quem dominará o mundo – poder marítimo ou poder terrestre. Os Estados Unidos governam as ondas e estabelecem os termos e condições para a grande maioria do comércio global. A China, por outro lado, está ocupada construindo uma ponte terrestre sobre a Eurásia, o que prejudicaria o domínio marítimo dos EUA”.
Para que o comércio global continue a fluir preferencialmente pelas rotas marítimas, sobre as quais os Estados Unidos têm amplo domínio, herdado dos ingleses, é preciso impedir a qualquer custo a construção de rotas de comércio internacional terrestres que permitam à China realizar seu comércio internacional por caminhos não controlados pela marinha norte-americana.
Desde 2013, a China está empenhada na construção da chamada “Nova Rota da Seda” que está interligando via infraestrutura terrestre, rodoviária e ferroviária, um conjunto de 64 países da Europa, Eurásia, Oriente Médio, Ásia Central e Sudeste Asiático. Um desses projetos é o Corredor Econômico China-Paquistão, que passará próximo à área atual de conflito, e que permitirá uma saída direta da China ao Oceano Índico, rota fundamental para o abastecimento de petróleo para a China, evitando a navegação pelo Estreito de Malaca, no sudeste asiático, sob o controle dos Estados Unidos. Como dizem os autores do trabalho, tal projeto será um ataque direto à estratégia americana de poder marítimo que visa sufocar o transporte mercante chinês no Estreito de Malaca, entre a ilha indonésia de Sumatra e a Malásia.
Para que o comércio mundial siga fluindo pelos oceanos, é fundamental que as fronteiras terrestres permaneçam bloqueadas. Desse modo, o tensionamento nessa sensível área de interconexão entre a Ásia Central e o Sul da Ásia em que China, Índia e Paquistão fazem fronteiras entre si é fundamental para o que o comércio na região continue a fluir pela via marítima “sob o olhar atento das forças navais superiores e da indústria de serviços marítimos. Foi exatamente assim que a energia marítima britânica e americana garantiu que 90% do comércio global continuasse a usar rotas oceânicas”.
Muito bom! Importante conhecermos como se movimentam as forças econômicas no mundo. Até para compreendermos em como elas atuam por cá! Obrigada