A criação e fortalecimento do Exército Argentino como instituição profissional se deu no século XIX, especialmente durante o longo período de Juan Manuel de Rosas.
O Exército foi consolidado ao mesmo tempo em que se deu a apropriação da terra fértil e do estabelecimento da pecuária e da agricultura no território, o que permitiu um cruzamento da propriedade da terra com a própria formação do Exército, processo completamente diferente da formação do Exército brasileiro.
Com essa consolidação, formou-se a aristocracia dos “terratenientes” baseada na posse da terra e na oficialidade do Exército argentino que se mesclam no século XIX.
Nasceram aí as grandes famílias militares, que se confundiam com a aristocracia da terra, os Avelaneda, Alcorta, Aramburu, Urquiza, Alvear, Uriburu, Lanusse, Martinez de Hoz.
O Exército argentino chega ao século XX como uma poderosa instituição dominante do Estado, consolidado pela grande entrada de recursos proporcionados pela pecuária entre 1870 e 1914, quando a Argentina passou a ser a maior fornecedora de carnes para a Europa, possibilitada pela invenção da frigorificação pelos ingleses.
Fortalecido por grandes recursos, o Exército argentino tornou-se um poder pairando sobre instituições que por poucos períodos foram realmente constitucionais, porque a arbitragem do Exército se exercia com naturalidade e constância sobre as presidências civis, além do fato de nove Presidentes militares constitucionais terem se empossado antes da ditadura final de 1976, nomes clássicos como Rawson, Ramirez, Farrell, Uriburu, nos anos 50, Lonardi, Aramburu, nos anos 70, pré-ditadura Ongania, Levingston, Lanusse.
Esse Exército, simbolizado no século XIX pela sua esplêndida cavalaria sem igual na América Latina, pelo DNA de ultradireita, que nunca foi remotamente assemelhado ao espírito aberto e democrático do Exército brasileiro, a ponto de na Segunda Guerra Mundial a Argentina ter se isolado na América Latina por uma neutralidade pró-nazifascista. Só declarou guerra ao Eixo em março de 1945 para poder entrar nas Nações Unidas, mas sem nenhum efeito prático, ao contrário, a Argentina de Peron, também emanação do Exército embora não da aristocracia militar, foi o refúgio final de mais de 500 nazistas que escaparam das cortes de julgamento dos Aliados.
Esse ambiente aristocrático podia ser visto no “Círculo de Armas”, clube militar do Exército argentino, no centro de Buenos Aires. Estive em um evento nesse palácio, com um cerimonial que parecia medieval, entre lanceiros e escudos, uma atmosfera de ordem de cavalaria mais do que de um exército moderno.
A grande aposta
Sempre no poder, por suas figuras fardadas ou por influência sobre presidentes civis, o Exército Argentino chegou a 1976 como dono do poder sem intermediários e sem disfarces.
Instalou-se como grão-senhor da Casa Rosada no rastro da queda geral das instituições pela debacle do rescaldo peronista de Isabelita e Lopez Rega. Assumindo o poder total, não havia como o Exército, em associação com a também poderosa Marinha, escapar da crise econômica provocada por um neoliberalismo atroz de Martinez de Hoz, ministro da Economia, personagem ainda mais sinistro do que os ditadores. Vendeu tudo, inclusive o Jardim Zoológico de Buenos Aires, mas a economia afundava.
Sem saída para a crise econômica que provocava inquietação na sociedade que não se abatia mesmo após brutal repressão, o Exército argentino jogou uma carta política de alto risco, uma aposta, ao declarar guerra ao Reino Unido por causa das Ilhas Malvinas.
Contava então com o apoio dos EUA por causa da política neoliberal de ultradireita, praticada por um serviçal dos EUA, Martinez de Hoz, mas esqueceram os militares argentinos que os EUA eram aliados do Reino Unido na OTAN e tanto por doutrina como por tratado jamais deixariam de apoiar a Inglaterra. A Guerra das Malvinas foi a aposta errada para tentar obter um ganho de curto prazo e salvar o regime militar.
Não deu certo e provocou a destruição do orgulhoso Exército argentino, praticamente extinto. O que hoje se apresenta é um novo Exército reconstituído em outras bases.
Reza a lenda que durante os governos Kirchner os generais argentinos eram proibidos de ter acesso à Casa Rosada, e até hoje a outrora gloriosa instituição militar do país vizinho é alvo do desprezo da população, pagando elevado tributo pelos erros econômicos, pelos erros militares e pelos crimes contra os direitos humanos.
A lição
A história geral das organizações militares demonstra sem exceções o alto risco que a instituição militar corre ao apostar na política. Um Exército profissional como instituição guarda ciosamente seu capital institucional ao se preservar da luta política.
Foi o que aconteceu com o Exército alemão, que serviu ao Terceiro Reich sob Hitler, mas que não se envolveu na política. A esmagadora maioria dos oficiais alemães da Wehrmacht não se filiou ao Partido Nazista, com pouquíssimas exceções, como Jodl e Keitel. Os grandes comandantes mantiveram sua blindagem profissional, como von Rundstedt e von Manstein. Este último considerado o maior de todos, comandou a invasão da Polônia, da França, da Rússia, sobreviveu ao fim do Terceiro Reich e foi o criador do novo Exército alemão.
O Bundeswher na República Federal faleceu em 1973, sepultado com honras oficiais e a presença do Chanceler da Alemanha, do qual era Assessor Militar, presentes altos oficiais americanos e britânicos.
O General Hans Speidel, Comandante Militar de Paris durante a ocupação alemã de 1940, foi em 1955 Comandante da Força Terrestre da OTAN com sede em Paris. O máximo do profissionalismo, o mesmo oficial comandar duas forças sob bandeiras completamente diferentes, só possível porque esses homens sempre foram militares profissionais e não se envolveram em política.
O envolvimento de um Exército profissional na política empresta ao Governo o prestígio do Exército. No caso do Brasil, as Forças Armadas são a instituição melhor avaliada exatamente porque são consideradas de Estado, esse papel e essa missão serão dissolvidas na política de partidos e de facções, com um prejuízo desproporcional ao pequeno ganho de curto prazo que alguns empregos significam para poucos oficiais, sem ganho para a Instituição.
Muitos governos, na complexa história política da América Latina, USAM as forças armadas como “peão de jogo”, às vezes usam o nome e o escudo das Forças Armadas sem mesmo usar sua eficácia física, mas mesmo nessa operação desgasta-se o capital institucional das Forças Armadas, em benefício de um pequeno grupo lutando pelo poder e se apropriando do imenso capital institucional das Forças Armadas, que por vezes não percebem essa apropriação, cujos custos serão imputados à instituição em caso de fracasso desse grupo e desse governo, turvando a profissionalização e o poder institucional de longo prazo da instituição. É um jogo no qual dificilmente as Forças Armadas ganham.
O exemplo dos Estados Unidos
Um caso clássico de força armada profissional que não se envolve na política é o dos EUA, onde é inadmissível por força de lei e de cultura política o envolvimento da força armada na política e no Governo.
A profissionalização das forças armadas é ciosamente guardada, oficiais na ativa não ocupam cargos civis, o que pode ocorrer e ocorre com frequência quando estão na reserva, MAS aí não se envolve a instituição militar, a ocupação de cargos é a título pessoal.
Grandes nomes militares na reserva chegaram aos mais altos cargos como Eisenhower na Presidência e George Marshall como Secretário de Estado. A prevalência do poder civil sobre o militar se deu como um dos seus pontos máximos a demissão do todo poderoso General Douglas Mac Arthur em plena Guerra da Coreia pelo presidente Truman, que sequer tinha alto prestígio, enquanto Mac Arthur era um herói nacional, mesmo assim nunca se discutiu o poder do Presidente em demiti-lo sem maiores explicações.
O general Pedro Aurélio de Góes Monteiro foi o chefe militar da Revolução de 1930, liderada por Getúlio Vargas, e ficou conhecido como condestável do Estado Novo. Nos governos Vargas foi de comandante do Exército a ministro da Guerra. No ocaso da existência deixou em depoimento a advertência contra o espírito de “milícia e gendármico”, como a pior mazela das organizações armadas.
O envolvimento da força armada no governo é SEMPRE UMA APOSTA DE RISCO, algo que uma instituição de Estado não pode se permitir. É a lição da História.
[…] A tragédia da aposta política do exército argentino. https://bonifacio.net.br/a-tragedia-da-aposta-politica-do-exercito-argentino/ […]
Simplificações terríveis e clichês. Por tal tipo de pensamento isentista é que os militares bateram continências para comunistas e ainda hoje fazem de tudo para agradar essa gente que os despreza. Se existe a necessidade real da intervenção do exercito é porque justamente ele destruiu a raiz politica que era adaptada ao Brasil, a monarquia, e é hoje chamado justamente para cumprir o poder moderador que por golpe o exercito exilou.
Excelente artigo! Ainda que os mais empenhados possam indicar os crimes cometidos por soldados alemães durante a guerra que enodoariam o mito construído da ‘Wehrmacht limpa’ necessário dentro do cenário de reconstrução alemã e estabelecimento do Bundswehr; cabe notar, quanto a dinâmica do regime nazista, que o mesmo, visando contrabalançar e superar as, muitas vezes, fortes restrições da oficialidade ‘Junker’, procurou fortalecer o seu próprio instrumento militar altamente doutrinado, a SS, que cuidava da aplicação da ‘Solução Final’ e de todas políticas genocidas sobre a população civil, seguindo na invasão ao território soviético, sempre atrás das tropas da Wehrmacht.
Parabens pelo excepcional artigo, extremamente pertinente e atual.
Os oficiais em serviço junto ao governo tem sido ciosos em nao para ermitir serem vetorres de entrada do virus poolitico partidario iedeologico na Força. Temo contudo pelos possiveis efeitos da eventual exposiçao prolongada a luz da politica. PPor parte da populaçao como sera vista uma possivel derrocada do governo. Ai reside a motivaçao dos que estao no Planalto. Tem que dar certo. Parabens pelo artigo. GenVillas Boas