Indigenismo, Imperialismo e a Questão Nacional

As populações indígenas na encruzilhada de uma batalha geopolítica que antecedeu a Segunda Guerra Mundial.

A justa comoção despertada pelas recorrentes violências contra as populações indígenas no Brasil, praticadas há tempos em nome de interesses inconfessáveis, chama a atenção para problemas estruturais da formação da Nação brasileira: a exclusão de grande parte do seu contingente humano do estatuto efetivo da cidadania e, também, a exclusão de grande parte do seu extenso e ecumênico território do desenvolvimento econômico e social.

Assim, algumas considerações se fazem necessárias. As violações contra a dignidade humana ocorridas na Amazônia, sendo os indígenas algumas das suas principais vítimas, não foram inauguradas no atual governo, ainda que esse, provavelmente mais do que outros no passado recente, não tome as devidas providências na proporção necessária para coibir tais práticas.

Homem de Estado e de negócios, Nelson Rockfeller arregimentou dinheiro, religiosos e antropólogos para manipular populações indígenas em favor dos interesses dos Estados Unidos e das atividades privadas de sua família.

A denúncia dessas violações, justíssima e correta, não pode, mesmo que involuntariamente, se vincular-se ao oportunismo dos que visam a mera substituição ou desgaste do governo, também por motivações inconfessáveis e sem a preocupação em sanar os problemas fundamentais da região e da Nação. Não se trata de destituir ou “queimar” A ou B, mas de propor soluções viáveis para questões candentes, que coloquem o Brasil acima de interesses particularistas.

Além disso, é necessário tomar a devida cautela em relação à retórica e às narrativas difundidas por grandes organizações estrangeiras supostamente indigenistas, com forte apoio do aparato midiático das potências ocidentais. A oposição simplista e binária entre, de um lado, algumas ONG’s e fundações “filantrópicas” e, de outro, governos de cunho neoconservador, está longe de corresponder à realidade. Apesar da boa-fé de muitos cidadãos comuns, militantes políticos e até mesmo lideranças partidárias e quadros institucionais de renome em aderir ao primeiro lado, motivados por um digníssimo sentimento moral humanitário, os interesses a que esse lado se vincula frequentemente não são aqueles que aparentam ser.

O primeiro lado, não raro, busca vetar o desenvolvimento econômico e social de grandes parcelas territoriais dos países subdesenvolvidos por meio de um preservacionismo ecológico aparentemente intransigente e de um indigenismo romântico que faz vista grossa para as péssimas condições materiais de vida de grande parte dos indígenas. O segundo lado, por sua vez, busca o mesmo, porém apostando em uma ocupação econômica meramente extrativista e/ou primária-exportadora, muitas vezes informal, descoordenada e operacionalizada por grupos estrangeiros. Ocupação econômica essa que, em razão da falta de desenvolvimento, de indústrias de maior complexidade e de infraestruturas físicas e sociais, serve frequentemente como único meio de obtenção de renda na região. As agressões aos indígenas e ao meio ambiente decorrentes disso são o resultado, deliberado ou não, da combinação entre o ambientalismo e o indigenismo difusos, de um lado, e da manutenção de um regime econômico de perfil colonial, de outro.

Os tribunais da Alemanha nazista chegaram a declarar os índios das Américas “Arianos honorários”, visando aliciá-los para o colonialismo do Terceiro Reich e contra os Estados Unidos e seus aliados no hemisfério americano.

Em consequência, grande parte da população vive abaixo dos padrões básicos de dignidade. Embora o crescimento demográfico da população indígena esteja acima da média nacional, a mortalidade infantil nas aldeias é o dobro da do País, e entre os Xxavante e Ianomâmi é nove vezes maior[1]. As taxas de analfabetismo e tuberculose são quase o triplo, e estima-se que a expectativa de vida seja 20 anos menor que a do restante da população[2]. Mendicância, fome, doenças, prostituição, suicídio, alcoolismo, tudo isso são a triste realidade que acomete muitos indígenas na condição de pobres e miseráveis em um País periférico e colonizado.

Não é incomum historicamente que a causa indigenista seja utilizada como recurso de legitimação de interesses imperialistas e anti brasileiros, avessos à soberania nacional e ao ativismo estatal em prol do desenvolvimento econômico e da justiça social em muitas partes do território, sobretudo aquelas mais ricas em recursos estratégicos cobiçados pelos países centrais e suas empresas. Isso, evidentemente, não desabona a luta daqueles que realmente se mobilizam pela preservação da vida, da cidadania e da dignidade dos índios, muitas vezes contrariamente aos interesses estrangeiros.  

Em particular, a defesa da “autodeterminação indígena”, com direito à autodemarcação de terras e autoproteção do território, estabelecida no Relatório Especial das Nações Unidas sobre os direitos dos povos indígenas[3], de 2016, ameaça gravemente a soberania nacional brasileira e retira do Estado brasileiro o controle sobre parte significativa do território nacional. A desestatização do território e o enfraquecimento dos vínculos institucionais, materiais e simbólicos de pertencimento à Nação brasileira abrem espaço para a irrupção de “nacionalidades” alheias a essa última e, assim, para a balcanização amazônica e o controle direto da região por governos e empresas estrangeiros, muitos dos quais abertamente ligados a algumas das ONG’s atuantes na região.

A proposta é prejudicial, inclusive, aos interesses dos próprios povos indígenas, pois priva-os do pertencimento à cidadania brasileira, que só pode existir nos marcos político-institucionais do Estado-nação. As novas “nacionalidades”, criadas artificialmente e, portanto, precárias em todos os âmbitos, seriam incapazes de prover as infraestruturas e os serviços básicos essenciais à dignidade humana, tornando-se suscetíveis à ação estrangeira disfarçada de indigenismo.

A instrumentalização da justa causa indigenista para fins pouco nobres não é uma novidade. Ao contrário, faz parte, há séculos, da estratégia das potências norte-atlânticas para a ocupação e a exploração dos abundantes recursos espaciais e naturais presentes na Amazônia. Evidentemente, muitas organizações e militantes em defesa dos indígenas são movidos por ideais francos e legítimos que não se imiscuem com interesses clandestinos, e precisam ser diferenciados daqueles que meramente instrumentalizam a causa para propósitos de ordem geopolítica. Porém, ao longo da história, tal instrumentalização é recorrente e continua existindo.

A chamada Lenda Negra, conjunto de detrações feitas pelos países da Europa setentrional desde o século XVI sobre o Império Espanhol para reduzir seu poder brando (soft power), já mobilizava, desde então, uma pretensa defesa indigenista, acusando os espanhóis de cometerem atrocidades contra os “bons selvagens” indefesos.

A Lenda Negra ganhou força no início do século XVII com o aumento do interesse de países como Inglaterra e Holanda pelas possessões ibéricas no continente americano, levando esses países a recrudescerem suas práticas de pirataria. A publicação em 1609 do livro Mare Liberum, do jurista holandês Hugo Grotius, pedindo a liberdade comercial no Atlântico em benefício da Holanda e em detrimento de Espanha e Portugal, e a criação da Companhia Holandesa das Índias Ocidentais, em 1621, demonstram os reais interesses por trás das denúncias pseudo-humanitária desses países à suposta truculência específica aos espanhóis na conquista da América. A preocupação anglo-holandesa não era pelo bem-estar dos povos pré-colombianos remanescentes.

O ativismo supostamente indigenista comandado de fora já rendeu grandes prejuízos territoriais ao Brasil. Caso marcante foi a da Questão do Pirara, iniciada no começo do século XIX e encerrada em 1904, quando o Brasil perdeu cerca de 20 mil km² do seu território na Amazônia. Missões “científicas” e “religiosas” inglesas, a pretexto de catequisarem e defenderem os índios da região, serviram de pontas-de-lança da ocupação dessa parte do país pela Inglaterra, contrariando séculos de territorialidade luso-brasileira. A Inglaterra reivindicou seus direitos na região e, em 1904, o rei italiano Vítor Emanuel III, juiz do tribunal de arbitragem entre Brasil e Inglaterra, decidiu em favor dessa última.

Em seu brilhante e robusto livro Seja Feita a Vossa Vontade – A Conquista da Amazônia: Nelson Rockefeller e o Evangelismo na Idade do Petróleo, publicado no Brasil pela Editora Record em 1998, os jornalistas estadunidenses Gerard Colby e Charlotte Dennett, bastante simpáticos à causa indigenista, denunciam, com farta documentação, a associação escusa entre organizações evangelizadoras de indígenas, sobretudo o Summer Institute Of Linguistics (SIL), associado ao Wycliff Bible Translators, e os interesses político-empresariais dos EUA na Amazônia, representados principalmente pela CIA e pela família Rockefeller.

O Marechal Rondon defendia os índios e sua integração à sociedade nacional. A antropologia colonial pretende segregar os índios e apartá-los do esforço comum de construção dos Estados nacionais.

Sob o pretexto de estudar as línguas indígenas para traduzir a Bíblia e catequisar os índios latino-americanos, o SIL, na verdade, servia de representante da CIA e dos Rockefeller para o mapeamento das condições linguísticas, políticas, sociais e geológicas amazônicas com o objetivo de facilitar o planejamento da conquista da Amazônia; para a predação violenta das populações indígenas e da floresta amazônica com o intuito de explorar ao máximo as riquezas naturais da região em benefício apenas do grande capital estrangeiro; e, também, para conspirar e apoiar golpes de Estado contra governos nacionalistas opostos à dominação estadunidense, como os de Getúlio Vargas e João Goulart no Brasil e o do general Juan José Torres na Bolívia.

Linguistas e antropólogos eram recrutados para colocarem seus conhecimentos técnicos a serviço de interesses imperialistas, hostis aos indígenas e aos países em que eles viviam. Mesmo com todas essas denúncias e inúmeras críticas, o SIL, atualmente, cumpre função de consultoria formal da ONU e da UNESCO[4].

Os autores também comentam a instrumentalização do indigenismo feita pelo nazismo e pelo governo dos EUA diretamente, no contexto da Segunda Guerra Mundial. A disputa entre os dois regimes refletiu-se na luta pelo controle estratégico das populações indígenas da América Latina, visando, claro, o interesse nacional da Alemanha e dos EUA, não a dignidade dos indígenas e a defesa dos países em que eles viviam. 

O livro traz ao leitor a informação surpreendente e pouco conhecida de que os nazistas, inclusive por meio dos tribunais alemães, haviam declarado os índios das Américas como “arianos honorários”, visando aliciá-los para o colonialismo do III Reich. Intensa propaganda antidemocrática e anti-EUA era feita pelos nazistas entre os indígenas, levando, inclusive, à sabotagem da produção de estanho na Bolívia (p. 128 e 158 do referido livro). Essas informações foram extraídas de documentação oficial presente nos Arquivos Nacionais dos EUA[5], reproduzida parcialmente nas imagens seguintes. A Figura 1 apresenta as informações coletadas pelos autores e apresentadas nesse parágrafo.

Figura 1 – Justificativa oficial para a política indigenista dos EUA

A seu turno, o governo dos EUA, junto ao alto empresariado do país, preparou uma ofensiva para eliminar a influência nazista (e, também, soviética) na América Latina e fazer valer a Doutrina Monroe. O objetivo declarado, segundo essa mesma documentação, era defender o “interesse Nacional” e a “defesa nacional” dos EUA por meio de uma ativa colaboração em prol do “bem-estar econômico e social” dos indígenas, de modo a bloquear a “expansão das empresas de negócios controladas por governos totalitários” e a disseminação de propaganda pró-Eixo e antissemita nos países latino-americanos. O baixíssimo padrão material de vida dos indígenas, acusado na documentação, deveria ser combatido como forma de evitar a expansão dos regimes nazistas e soviético na América Latina e para atrelar os indígenas ao mercado consumidor dos produtos fabricados nos EUA. Na visão estadunidense, defesa e economia nacionais eram (e continuam sendo) indissociáveis.

Em 30 de julho de 1941, foi criado o Office of the Coordinator of Inter-American Affairs, conhecido pela sigla CIAA, dirigido por ninguém menos que Nelson Rockefeller, anteriormente coordenador de Relações Comerciais e Culturais entre as Repúblicas Americanas. As empresas da família Rockefeller estavam mais do que interessadas nos abundantes recursos naturais da Amazônia. Logo depois foi criada uma Seção para assuntos indígenas em seu bojo. O CIAA foi um dos principais organismos estadunidenses na América Latina e, por meio de “comitês de coordenação” locais, vinculou-se a lideranças empresariais muito influentes politicamente nos países dessa região, entre eles o Brasil.

Figura 2 – Carta a Nelson Rockefeller com a proposta de criação de uma instituição indigenista permanente

Usando a fachada de atividades culturais diversas, o CIAA gastou $140 milhões de dólares até 1944 com a agenda econômica de “arrastar a América Latina para a matriz econômica dos programas de abastecimento de guerra executados por lideranças empresariais” (Colby e Dennett, 1998, p. 143). Logo após a segunda Guerra Mundial, o CIAA foi extinto e suas atribuições foram transferidas para o Departamento de Estado.

Em 1º de novembro de 1941, o governo dos EUA criou o National Indian Institute, afiliado ao Inter-American Indian Institute, com dotação de, na época, $32.400 milhões advindos do CIAA (p. 121 da documentação). Possuía como missão trabalhar junto ao setor privado, ao meio acadêmico, à sociedade civil e aos demais governos americanos no sentido de desenvolver projetos concernentes aos indígenas. Em documento oficial dos EUA, há a menção à tradução ao espanhol e a divulgação na América Latina de trabalhos, pesquisas e exibições artísticas sobre os indígenas estadunidenses, para usar o caso estadunidense como modelo. 

O que o Instituto buscava, na verdade, era ampliar e consolidar a hegemonia dos EUA na América Latina e abrir caminho para a exploração dos vastos recursos naturais, sobretudo na Amazônia, por corporações estadunidenses. O indigenismo era o pretexto “humanista” para uma exploração econômica alheia aos interesses nacionais dos países latino-americanos e aos indígenas, enquanto cidadãos desses países.

Gilberto Freyre, José Bonifácio e Darcy Ribeiro viam na matriz indígena da sociedade brasileira a presença fundamental para o surgimento do “povo-síntese”, sincrético e mestiço predominante na população nacional.

Como expresso pelos EUA na p. 118 da documentação, reproduzida na Figura 1, “Mais de 30 milhões de indígenas vivem no hemisfério ocidental […] Eles são a principal oferta de mão de obra latino-americana que produz muitos materiais críticos vitais para a defesa da América, incluindo borracha, estanho, cobre, vanádio, zinco, tungstênio, quinino, coque, sisal […], lã e petróleo em algumas localidades estratégicas”.

Atualmente, a USAID (United States Agency for International Development), criada em 1961, é uma das principais organizações governamentais voltadas para projetos “filantrópicos” no exterior, apresenta uma política indígena em essência não muito diferente das do CIAA e do National Indian Institute.

Figura 3 – O indigenismo como disputa estratégica e geopolítica no contexto da Segunda Guerra Mundial

Não se trata, contudo, de afirmar que toda e qualquer organização indigenista na Amazônia está associada a esse tipo de interesses. Muitos grupos são formados por pessoas idealistas e bem-intencionadas que desenvolvem projetos realmente valiosos para a promoção da dignidade dos indígenas assistidos. Muitos missionários, antropólogos, linguistas, entre outros que trabalham na Amazônia, rechaçam o tratamento cruel outrora dispendido, por exemplo, pelo SIL aos índios, e orientam seus trabalhos de maneira ética e inclusiva.

Todavia, cabe ao Estado nacional brasileiro, enquanto representação político-institucional do povo brasileiro, o papel de defender a cidadania, integrando os grupos sociais mais vulneráveis, entre eles os indígenas, a uma condição social digna e afim às suas particularidades culturais. Não há cidadania e direitos sem a vinculação ao Estado-nação e sem pertencimento à própria nacionalidade, assentada na base física de um território unificado e integrado à base simbólica de uma “comunidade de destino”, que abranja todos os membros da coletividade.

Uma ampla mobilização nacionalista e desenvolvimentista liderada pelo Estado para superar o subdesenvolvimento brasileiro e criar, para todos os habitantes de todas as regiões do país, oportunidades, chances de vida, bem-estar social e respeito às singularidades culturais locais. Essa mobilização não será efetiva e genuína sem integrar os indígenas enquanto cidadãos brasileiros, enquanto participantes integrais da comunidade nacional brasileira. A participação deles e de organizações que realmente os representem, sem usá-los como escudo para interesses imperialistas e colonizadores, é fundamental para aumentar a legitimidade das decisões políticas tomadas e a capacidade estatal de implementação de políticas públicas eficazes.  

Não obstante, essa participação só pode fazer sentido nos marcos da Nação brasileira e sob a liderança do Estado, fortalecendo a unidade e a identidade do povo brasileiro, construídas ao longo de mais de cinco séculos em um colossal processo de amalgamação étnica e cultural que deu origem a o que Gilberto Freyre chamou de “povo-síntese”, sincrético e mestiço. Assim, o ideário de José Bonifácio, do Marechal Cândido Rondon e dos Irmãos Villas-Bôas, de formar uma Nação soberana, desenvolvida e mestiça, integrando os indígenas à plena condição de cidadania e não os excluindo e oprimindo-os, pode vir a se tornar realidade.


[1] https://revistacrescer.globo.com/Voce-precisa-saber/noticia/2018/09/taxa-de-mortalidade-infantil-indigena-diminui-apenas-47-em-2017.html

[2] www.msia.org.br/wp-content/uploads/2014/06/228437833-Quem-manipula-os-povos-indigenas-contra-o-desenvolvimento-do-Brasil-Autores-Lorenzo-Carrasco-e-Silvia-Palacios.pdf

[3] https://nacoesunidas.org/wp-content/uploads/2016/03/SR-on-IPs-end-of-mission-statement-Brazil-17-03-2016-final.pdf

[4] https://www.sil.org/about/history

[5] Arquivos Centrais EAC 5200, General Records 229, Caixas 410 e 411, Pasta do National Indian Institute, Arquivos centrais do CIAA, Arquivos Nacionais no College Park

Felipe Maruf Quintas
Mestre e doutorando em Ciência Política na Universidade Federal Fluminense (UFF).

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3 COMENTÁRIOS

  1. Excelente artigo! E muito bom o histórico de intervenções. O Instituto Summer de “Linguística” me faz tremer só de ler o nome e descobri que a peste enganou até o Darcy Ribeiro, que o apoiou por ter caído no “conto da linguística”.

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