No dia 20 de janeiro, Donald Trump tomou posse como o 47° presidente dos Estados Unidos. Tal como prometeu durante a campanha, assinou, nas primeiras horas como presidente, uma centena de “ordens executivas”. A maior parte delas trata de questões de imigração e segurança interna. Trump ignorou os principais desafios globais e econômicos dos EUA. Duas delas – a saída dos Estados Unidos do Acordo de Paris e da OMS – terão impactos importantes em nível internacional.
O perdão dado aos 1.600 envolvidos na invasão do Capitólio em 6 de janeiro de 2022 já era esperada, mas surpreendeu pela abrangência, beneficiando até pessoas condenadas por atacarem agentes da lei. Uma coisa é ouvir promessas e ameaças, outra é assistir ao vivo as coisas acontecerem. Embora esperadas, muitas das atitudes de Trump não deixam de ser chocantes.
Ronald Reagan, junto com outros líderes, como a britânica Margaret Thatcher e o alemão Helmut Kohl, apoiados e impulsionados por vários ideólogos de universidades ultraconservadoras e think tanks, moldaram o que mais tarde seria conhecido como neoliberalismo. Em questões econômicas, ambientais ou de política externa, essa volta de Trump prenuncia um novo período de caos sistêmico? Em que medida a volta de Trump representa a consolidação do novo paradigma buscado pelo conservadorismo do século XXI? [1]
Embora com aplicação imediata, muitas dessas ordens executivas dependem de aprovação no Congresso para se efetivarem. Muitas delas também podem ser contestadas na Justiça. É o que já está acontecendo com algumas, como a que veda a cidadania americana a crianças nascidas de imigrantes ilegais e a que bloqueou a destinação de fundos federais para programas aprovados pelo Congresso.
Trump tem consciência de que diversas dessas medidas podem ser consideradas ilegais a depender da interpretação que se dê à Constituição dos Estados Unidos nos artigos e emendas que tratam do assunto. Conta, contudo, com a maioria no Senado e na Câmara dos Representantes, bem como com a maioria conservadora na Suprema Corte, para, ou alterar a lei, ou dar-lhe uma interpretação que lhe seja favorável.
Muitos temiam que um dos principais objetivos de Trump ao retornar à Casa Branca seria o de vingar-se não só de seus inimigos, mas também dos aliados que, na sua opinião, o traíram ou não foram fiéis o suficiente em seu primeiro mandato. É o que parece estar acontecendo. Estranhamente, contudo, Trump parece mais motivado para punir antigos aliados caídos em desgraça do que os supostos inimigos, internos e externos.
No plano externo, Trump, até agora, vinha poupando China e Rússia, tendo se voltado primeiro contra Canadá, México, Panamá e Dinamarca, velhos aliados dos Estados Unidos. No caso do Canadá e México, impôs tarifas de 25% sobre as exportações desses dois países para os Estados Unidos, além de “sugerir” que o Canadá ser tornasse o 51° estado americano. Posteriormente concordou em suspender a nova tarifa por um mês, frente à repercussão negativa da medida nos próprios Estados Unidos.
No caso do Panamá, Trump quer retomar o controle do canal, construído pelos Estados Unidos no início do século passado, mas transferido para o Panamá, em 1977, no governo de Jimmy Carter. No caso da Dinamarca, Trump quer anexar a Groelândia ao território americano. No caso da China, Trump anunciou uma sobretaxa de 10% sobre todas as usas exportações para os Estados Unidos, aquém dos 60% que havia prometido durante a campanha.
No plano interno, uma das primeiras medidas foi cancelar a proteção pessoal oferecida pelo governo a alguns membros proeminentes de seu primeiro governo – Mike Pompeo, Brian Hook e John Bolton – ameaçados de morte por terem sido responsáveis por algumas ações dos Estados Unidos contra o Irã. Também está demitindo funcionários de carreira do FBI e do Departamento de Justiça que estiveram envolvidos nas centenas de processos aos quais respondeu nos últimos quatros anos.
Trump sabe que, independentemente do que faça nos próximos quatro anos, não poderá almejar a reeleição, pois a Constituição dos Estados Unidos estabelece que o período máximo para o exercício da presidência por uma só pessoa é de oito anos, consecutivos ou não. A opinião pública, portanto, dificilmente será um parâmetro ou obstáculo importante para balizar suas ações na presidência nos próximos quatro anos.
É certo que com maioria escassa no Senado e na Câmara dos Representantes, Trump depende da fidelidade quase absoluta dos senadores e deputados republicanos para levar à frente muitas de suas ações e propostas. Mas, ao que tudo indica, não está muito disposto ao diálogo com seu próprio partido e prefere recorrer às ameaças. Conta para isso com um enorme poder financeiro e o apoio acrítico do eleitorado republicano para punir os infiéis, como um de seus principais aliados, Elon Musk, já deixou claro, ao afirmar que financiará a campanha para derrotar nas próximas eleições primárias qualquer parlamentar republicano que ouse votar contra Trump no Senado ou na Câmara. Trata-se, enfim, de um jogo pesado que, aparentemente, ninguém no Partido Republicano está disposto a enfrentar.
Mas, o que esperar, enfim, do governo Trump nos próximos quatro anos?
Dado o caráter errático e personalista de seu estilo de governar, é quase impossível fazer previsões. Aparentemente, as chamadas razões de Estado, que normalmente balizam as ações dos governantes, independentemente de suas filiações partidárias, não terão tanto peso no seu processo de tomada de decisões, sobretudo agora, que Trump se livrou da burocracia do Partido Republicano nos cargos chave do governo, que o impediram de levar adiante ideias consideradas temerárias em seu primeiro governo.
Para ocupar os principais cargos no novo governo, Trump cercou-se de auxiliares cujo principal predicado para ocupar os cargos é a mais cega e absoluta fidelidade. Isso já ficou evidente, por exemplo, na escolha do Secretário de Defesa – Pete Hegseth, ex-âncora da Fox New, acusado de agressão sexual e consumo excessivo de álcool, aprovado no Senado com o voto de minerva do vice-presidente JD Vance – e do Secretário da Saúde – Robert F. Kennedy Jr., possuidor de um longo histórico de militância antivacina. Os EUA foram o país com o maior número de mortes da pandemia, seguidos pelo Brasil.
Se há algo que se pode afirmar com certa segurança a respeito do perfil de seu novo governo, é que será um governo fortemente influenciado por uma poderosa oligarquia financeira que se acercou de Trump, como ficou evidente pela presença massiva dos CEOs das Big Techs em sua cerimônia de posse. A rápida conversão do CEO da Meta (Facebook, WhatsApp e Instagram) Mark Zuckerberg, ao ideário trumpista, não se dá apenas para evitar que todo o espaço no governo seja ocupado pelo concorrente Elon Musk, dono da Tesla e da X (ex-Twitter), mas principalmente porque não só ele, mas todos os oligarcas das Big Techs perceberam que se trata de um governo que facilitará seu projeto de domínio e monopólio nos Estados Unidos e em todo o mundo.
Elon Musk sem nem mesmo possuir um cargo oficial no governo, daqueles sujeitos à aprovação e controle do Congresso, vai se mostrando como um dos homens mais fortes no governo Trump, com acesso a dados confidenciais do sistema de pagamento do Departamento do Tesouro dos Estados Unidos. Por meio de um e-mail, Musk praticamente fechou uma das principais agências do governo americano – a USAID – a poderosa Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional, criada em 1961, e que ao longo de décadas tem sido uma poderosa alavanca nas mãos do governo norte-americano para promover os interesses dos Estados Unidos no mundo.
Outra frente de batalha importante ocorre na área da inteligência artificial (IA), quando em janeiro último uma empresa chinesa lançou no mercado o aplicativo DeepSeek, derrubando as ações de suas concorrentes nos Estados Unidos com uma fórmula gratuita e de baixo custo. Moral da história: o único caminho para os Estados Unidos enfrentarem a China é melhorar a inovação na sua atividade industrial, e não copiando o modelo defensivo dos ingleses para proteger sua indústria têxtil contra a ascensão dos próprios Estados Unidos no século XIX.
E quanto a fazer a “América Grande de Novo” (MAGA), trazer as indústrias de volta para os Estados Unidos e reviver a era do “American Way of Life” da baixa classe média branca do auge do Fordismo? Se você faz um diagnóstico errado do problema, dificilmente a solução proposta dará bom resultado. E, ao que tudo indica, é o caso da leitura que Trump faz do problema dos Estados Unidos, se é que de fato ele acredita nisso, o que é muito pouco provável.
O discurso de Trump é que o resto do mundo, nomeadamente a China, estão roubando os Estados Unidos e são os principais responsáveis pela fuga de indústrias e empregos do território norte-americano. Para remediar tal situação, propõe como solução a aplicação de tarifas, sua receita preferida. Para tornar mais palatável essa solução amarga, vende a falsa ideia de que quem pagará as tarifas são os exportadores externos e não o consumidor americano.
Na verdade, o grande responsável pela destruição dos antigos empregos industriais nos Estados Unidos e no resto do mundo são as inovações tecnológicas, que na sua grande maioria têm origem nos próprios Estados Unidos. É a substituição de homens por robôs e máquinas de altíssima tecnologia que tem levado a um enorme aumento da produtividade e redução de custo, diminuindo cada vez mais a participação da indústria na geração de riquezas. No sentido oposto, o setor de serviços avança como o maior gerador de empregos e de riqueza.
Mesmo na China, onde, por enquanto, a participação da indústria no PIB está bem acima da média mundial, os robôs são onipresentes, sobretudo nas indústrias de ponta. Na comemoração do Ano Novo chinês de 2025, uma das atrações mais surpreendentes do tradicional show de TV foi um espetáculo de dança executado por robôs humanoides ao invés dos tradicionais dançarinos. Mesmo que algumas indústrias, nomeadamente as montadoras de automóveis, retornem aos Estados Unidos, isso não significa em absoluto que os tais empregos que Trump promete para seus eleitores também retornarão. Não podemos também esquecer que um de seus homens de confiança, Elon Musk, dono da Tesla, opera uma grande fábrica em Xangai que produziu cerca de 947.000 carros na China em 2023. Estaria ele disposto a deixar de produzir na China, onde a Tesla bateu um recorde de vendas em 2024, vendendo mais de 657.000 unidades?
Na verdade, o que ocorre hoje nos Estados Unidos e no mundo é que uma parcela expressiva do antigo operariado industrial se tornou obsoleta e não tem uma alternativa que não seja procurar empregos, em geral mal remunerados, no setor de serviços. Frustrado, esse segmento tornou-se presa fácil de demagogos que prometem um retorno impossível a um passado que não existe mais. É pouco provável, portanto, que as promessas de Trump para a classe trabalhadora americana se concretizem.
Trump afirmou em seu discurso de posse que “O declínio americano acabou”. Trata-se de outra afirmação questionável, por diversas razões. A primeira delas é que os Estados Unidos não estão propriamente em declínio. Os Estados Unidos continuam sendo a principal economia do mundo, com um PIB real, em 2024, de US$ 29,16 trilhões, segundo projeção do Fundo Monetário Internacional (FMI). A China, com uma população mais de três vezes maior que a americana, aparece bem atrás, com PIB real de US$ 18,27 trilhões, ou seja, 62% do PIB americano.
Os Estados Unidos permanecem como a maior potência militar e tecnológica do planeta. Os recentes avanços da China na área de inteligência artificial foram obtidos a partir de processadores fabricados nos Estados Unidos. Tanto em um como em outro aspecto, apesar dos grandes avanços, a China, ainda está muito aquém do poderio americano. O discurso de que a China está prestes a ultrapassar os Estados Unidos e é uma ameaça ao poder americano convém aos interesses do complexo industrial-militar estadunidense, mas não é esse o principal objetivo dos chineses. O que a China almeja é se tornar um país desenvolvido e para isso precisa de paz. Se os chineses investem pesadamente em armamentos certamente não é para atacar os Estados Unidos, mas evitar serem molestados ou postos contra a parede, como está ocorrendo agora com os países que Trump não respeita. As chamadas relações internacionais nada mais são do que um precário equilíbrio entre guerra e paz e é preciso estar sempre preparado para o pior.
Uma outra razão pela qual a afirmação de Trump não faz muito sentido está no fato de que a ascensão e o declínio das nações são processos históricos complexos e multideterminados e não seria pela eleição de um presidente, por mais capaz e determinado que fosse, que esse processo seria revertido, caso de fato estivesse ocorrendo. O mundo mudou, é claro. Não vivemos mais o momento de unipolaridade com hegemonia americana que marcou o fim a União Soviética no início da década de 1990. Deriva daí o sentimento de declínio do império americano, mas isso é relativo. O fato de outros crescerem não significa que os Estados Unidos estejam encolhendo, apenas que as diferenças estão diminuindo, o que não seria ruim, nem para os Estados Unidos, nem para o mundo, apesar de até isso ser discutível.
[1] Restivo, Néstor, Todavía lejos de unas Trumponomics. Tektónikos. Dinámica de La Arquitectura Global. Febrero 1, 2025. Disponível em: https://tektonikos.website/todavia-lejos-de-unas-trumponomics/