O mito da desglobalização

    A guerra comercial que Donald Trump iniciou contra a China, em 2018, continuada pelo governo Biden (2021-2024) e os problemas nas cadeias de suprimentos causados pela pandemia da Covid-19 transformaram a desglobalização em um tópico dominante. Baseados em evidências estatísticas, sobretudo as referentes à relação entre comércio internacional e produção, afirma-se que o processo já está em curso. O problema é que muitas dessas estatísticas que supostamente evidenciam esse processo não levam em conta casos particulares relevantes que podem estar causando uma falsa conclusão.

    O caso mais notório é o da China. Enquanto na maioria dos países a tendência é de aumento dos componentes importados na produção de bens finais, o que, obviamente, alavanca o processo de globalização produtiva e aumenta a relação comércio/produção, na China observa-se o movimento oposto. Na medida em que o país vai subindo para patamares mais nobres nas cadeias globais de suprimento, sua produção manufatureira vai deixando de ser de simples montagem de componentes importados e passa a incorporar cada vez mais componentes produzidos localmente. Dado o peso da China no comércio global isso pode levar à falsa ideia de que o processo de desglobalização está em curso, o que não é necessariamente verdadeiro.

    Por muito tempo se utilizou o exemplo do Iphone da Apple, montado na China pela empresa taiwanesa Foxconn, para exemplificar o fato de que a China apesar de ser o maior exportador mundial de manufaturas agregava pouco valor localmente. Estudo da OCDE examinou as origens dos componentes para o Iphone 4 da Apple que foi montado na China pela Foxconn. Segundo o estudo apenas US$ 6,54 (3,4%) do preço total de fábrica de US$ 194,04 foi realmente adicionado na China. Os restantes US$ 187,50 (96,6%) do custo de fábrica vieram de materiais e componentes importados da Coreia do Sul, Estados Unidos e Alemanha.

    Isso naturalmente fazia com que a relação comércio internacional/produção aumentasse de valor, turbinando o avanço da globalização produtiva. Acontece que a China, muito antes das restrições impostas pelos EUA para importação de chips de memória e processadores mais avançados utilizados em Inteligência Artificial, já vinha se esforçando para aumentar o conteúdo local de sua produção em um movimento contrário ao observado no resto do mundo, como se vê nos gráficos a seguir.

    Valor Adicionado das Exportações da China

    Fonte: OCDE

    Valor Adicionado das Exportações dos Estados Unidos

    Fonte: OCDE

    Nos dois gráficos é possível observar que enquanto o valor adicionado localmente das exportações chinesas apresenta uma tendência de crescimento na última década, nos Estados Unidos a tendência é oposta. O mesmo ocorre para o conjunto dos países da OCDE.

    No gráfico a seguir é possível igualmente observar que, descontada a China, a razão entre comércio global e produção industrial global não apresenta nenhuma tendência de queda nos últimos 23 anos, o que igualmente desqualifica a tese da desglobalização.

     Fonte: Financial Times (23/8/2024)

    Outro fator que contribui para a queda da taxa de exportação em relação à produção da China é que a economia chinesa vem crescendo mais rápido que o resto do mundo e uma parcela crescente da sua produção vem sendo absorvida pelo seu mercado doméstico.  Como observou o jornal Financial Times (23/8/2024), “Mas o declínio da taxa de exportação em relação à produção da China reflete o fato de que sua economia cresceu muito mais rápido do que o resto do mundo. Daqui resulta que uma parte crescente da sua produção está a ser absorvida pelos compradores nacionais. E a queda da taxa de importação reflete principalmente o movimento do país na escala de valor agregado. À medida em que a sofisticação tecnológica de seu setor manufatureiro aumenta, muitos dos bens que costumavam ser importados – especialmente automóveis, bens de capital, eletrônicos e semicondutores – agora são produzidos internamente.”

    Dessa forma, como explica o Financial Times, “uma maneira melhor de descrever o que está acontecendo do que a desglobalização é dizer que o resto da economia global está se tornando menos importante para a China, mas a China continua a se tornar mais importante para o resto da economia global.”

    Se há um evidente exagero na tese de que o mundo caminha para a “desglobalização”, é preciso considerar, contudo, que a tendência ao isolacionismo por parte dos Estados Unidos pode, de fato, ter impactos negativos no processo de integração da economia mundial, pois se a China é o maior exportador mundial, os Estados Unidos são os maiores importadores. Graças ao fato de o dólar americano ser a moeda por excelência do comércio internacional, os Estados Unidos têm o exorbitante privilégio de fazer moeda e comprar o que quiserem, alimentando um déficit comercial que já está na casa dos dois trilhões de dólares.

    Obviamente, se os Estados Unidos se isolam do resto do mundo, haverá impactos negativos no processo de globalização. Condoleezza Rice, que foi Secretária de Estado dos EUA de 2005 a 2009 e Conselheira de Segurança Nacional dos EUA de 2001 a 2005, afirmou, em artigo recente publicando na revista Foreign Affairs (setembro/outubro 2024) intitulado “Os Perigos do Isolacionismo” que “O sistema internacional de hoje ainda não é um retrocesso ao início do século XX”. A morte da globalização é muitas vezes exagerada, mas a pressa em buscar onshoring, near-shoring e “friend shoring”, em grande parte em reação à China, pressagia um enfraquecimento da integração. Os Estados Unidos estão ausentes das negociações comerciais há quase uma década. É difícil lembrar a última vez que um político americano fez uma defesa vigorosa do livre comércio. O novo consenso levanta a questão: a aspiração por uma circulação mais livre de bens e serviços pode sobreviver à ausência dos Estados Unidos no jogo?

    Luís Antonio Paulino
    Luís Antônio Paulino é professor doutor associado da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e membro da equipe de colaboradores do portal “Bonifácio”.

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