STF e constitucionalidade da lei do marco temporal: backlash e processo estrutural

    Artigo publicado na página Consultor Jurídico em 16 de julho de 2024.

    A decisão do ministro Gilmar Mendes de reunir para julgamento conjunto a ADC 87, ADI 7.582, ADI 7.583, ADI 7.586 e ADO 86 representa uma saudável e promissora mudança de curso. Muitos afirmam que a ideia de que o Supremo tem a prerrogativa de errar por último — levada às últimas consequências em “heroicas” decisões, monocráticas e solipsistas muitas delas —, desviaram a corte para temerária empreitada messiânica, de inspiração supostamente iluminista, com resultados deletérios para a estabilidade institucional e para autoridade da Constituição.


    Os processos reunidos para decisão conjunta pelo ministro Gilmar Mendes versam sobre a constitucionalidade da Lei 14.701/2023, conhecida como lei do marco temporal das terras indígenas, que regulamenta o artigo 231 da Constituição para dispor sobre o reconhecimento, a demarcação, o uso e a gestão das terras indígenas, fixando a data da promulgação da Constituição como marco para o reconhecimento dos direitos originários dos indígenas sobre elas.

    Depois de tramitar por 17 anos, sofrer três arquivamentos e consequentes desarquivamentos, o projeto que originou a lei foi aprovado em tempo recorde, como resposta política à decisão do Supremo Tribunal Federal no RE 1.017.365/SC, que considerou inconstitucional um marco temporal para o reconhecimento dos direitos dos indígenas sobre terras ocupadas tradicionalmente.

    No Senado, o projeto vindo da Câmara foi aprovado no mesmo dia pela Comissão de Constituição e Justiça e pelo Plenário. A inaudita rapidez, própria das decisões políticas quando se constroem sólidas maiorias sobre temas candentes, evidencia o backlash (reação legislativa a decisão judicial) [1]. Para não deixar dúvida, a votação no Senado deu-se no dia em que o Supremo fixou a tese de repercussão geral em recurso que rejeitou o marco temporal indígena.

    O ministro Gilmar Mendes acendeu a luz amarela no Supremo Tribunal Federal e agiu para buscar pôr fim à espiral conflitiva, determinando a suspensão de todos os processos judiciais que discutam, no âmbito dos demais órgãos do Poder Judiciário, a constitucionalidade da Lei 14.701/2023.

    E hasteou a bandeira branca ao prestar deferência ao Poder Legislativo:

    “No particular, chamo a atenção ao exíguo lapso temporal transcorrido entre o julgamento do RE 1.017.365/SC, concluído em 27.9.2023, e a edição da Lei 14.701/2023, de 23.10.2023, cujas partes vetadas foram promulgadas em 27.12.2023.

    Nesse curto período de tempo, não houve alteração na norma constitucional de parâmetro que justificasse eventual rediscussão do entendimento a que chegou o Supremo Tribunal Federal a seu respeito, sendo certo que a única alteração jurídica relevante a legitimar a rediscussão do tema recém-pacificado é justamente o exercício, pelo Congresso Nacional, de sua competência de conformação legal da norma contida no art. 231 da Constituição (Lei 14.701/2023) – exercício cuja constitucionalidade é discutida nas ações de controle concentrado ora apreciadas.” (grifos no original)

    E segue:

    “Considero indene de dúvidas que cabe ao Poder Legislativo a incumbência de conformar, em âmbito infraconstitucional, os ditames constitucionais, dentre os quais certamente se insere a própria proteção dos povos tradicionais brasileiros, sua organização social, costumes, línguas, crenças, tradições e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam (Constituição, art. 231 e §§).”

    Acrescentou ainda que legislar em contrário ao que pensa o Supremo não caracteriza conflito, mas diálogo institucional:

    “No próprio julgamento do RE 1.017.365/SC, diversos Ministros fizeram menção a essa salutar competência do Congresso Nacional. Nessa linha, fiz referência, em meu voto, às diversas iniciativas legislativas que tramitavam à época no Congresso Nacional acerca do tema discutido, o que qualifiquei como relevante debate a título de “diálogo institucional que não poderá ser tido como interferência entre os Poderes”.

    Evitando resvalar em críticas acerbas ao Poder Legislativo por, em curtíssimo espaço de tempo após o julgamento pelo Supremo do marco temporal, haver votado legislação em sentido diametralmente oposto, o ministro diz na decisão considerar legítima “a rediscussão do tema recém-pacificado”, por meio do “exercício pelo Congresso Nacional de sua competência de conformação legal da norma contida no art. 231 da Constituição (Lei 14.701/2023)”.


    Mas acrescenta que a provocação da jurisdição constitucional pelas ações de controle concentrado, que reuniu para julgamento conjunto, é igualmente legítima:

    “De igual modo, nas ADIs 7.582, 7.583 e 7.586, há, como já dito, inúmeros e densos argumentos quanto à inconstitucionalidade da legislação em tela, por meio dos quais se defende que o Parlamento desconsiderou frontalmente o que foi decidido por esta Corte nos autos do RE 1.017.365/SC, em relação ao qual não haveria margem de conformação pelo Poder Legislativo.”

    Complexidade da matéria


    A dimensão do conflito fica clara nesta passagem da decisão:

    “Do que sobressai dos relatos públicos de membros de ambas as Casas do Congresso Nacional, há uma desinteligência que necessita de mudança de rumos. A espiral do conflito só tem sua interrupção quando se procura atingir a gênese do conflito, ou seja, o âmago do problema, não podendo ocorrer respostas irrefletidas, ainda que sob as formas tradicionais de atuação institucional.”

    No julgamento conjunto a ser proferido, o Supremo terá que se haver ainda com o tema do aproveitamento dos recursos hídricos e a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas, preconizados explicitamente pelo Constituinte, mas que o processo político não conseguiu regulamentar, omissão à qual a decisão referiu de modo enfático:

    “De fato, a temática discutida nas ações de controle concentrado ora apreciadas suscita controvérsias acirradas, de dificílima resolução não apenas pela via dos métodos heterocompositivos de resolução de conflitos, como pelo próprio processo político regular. Veja-se, por exemplo, a questão referente ao aproveitamento dos recursos hídricos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas (tematizada, de certa maneira, nos autos da ADO 86): em que pese se tratar de atividades expressamente previstas no § 3o do art. 231 da Constituição, a necessária regulamentação para viabilizar o seu exercício até hoje não foi editada, mesmo passados mais de trinta e cinco anos da promulgação da Constituição.”

    Convocação à governança colaborativa


    Reconhecendo a impossibilidade de que uma decisão produzida por métodos heterônomos – mesmo vinda do Supremo Tribunal Federal – possa compor uma solução definitiva para o problema da demarcação e aproveitamento das terras indígenas, o ministro-relator decide convocar a República “a uma governança colaborativa do conflito, intermediado pelo Supremo Tribunal Federal”:

    “(..) entendo que o atual estágio normativo-legislativo também torna adequada a criação de uma Comissão Especial, à qual caberá, entre outras atribuições a serem definidas posteriormente:

    (i) apresentar propostas de solução para o impasse político-jurídico em todas as ações de controle concentrado, sob minha relatoria, sem prejuízo de abarcarem outras demandas em curso nesta Corte, após aquiescência dos respectivos relatores;

    (ii) propor aperfeiçoamentos legislativos para a Lei 14.701/2023, sem prejuízo de outras medidas legislativas que se fizerem necessárias, voltados à superação do impasse e novo diálogo institucional.”

    Ao invés de limitar-se à tradicional intimação para a prestação de informações, a decisão inova:

    “Determino, ainda, a intimação de todos os autores das ações de controle concentrado de constitucionalidade ora apreciadas, bem ainda dos Chefes dos Poderes Executivo e Legislativo, além da Advocacia-Geral da União e da Procuradoria-Geral da República para que, no prazo de 30 (trinta) dias, apresentem propostas no contexto de uma nova abordagem do litígio constitucional discutido nas ações ora apreciadas, mediante a utilização de meios consensuais de solução de litígios.”

    Mas faz um alerta para que os interlocutores acorram à àgora vestidos de boa-fé dialógica:

    “Todavia, considero importante registrar que, para sentar-se à mesa, é necessário disposição política e vontade de reabrir os flancos de negociação, despindo-se de certezas estratificadas, de sorte a ser imperioso novo olhar e procedimentalização sobre os conflitos entre os Poderes, evitando-se que o efeito backlash seja a tônica no tema envolvendo a questão do marco temporal”.

    Repercussão no Congresso


    A decisão do ministro foi recebida positivamente na Comissão de Agricultura da Câmara dos Deputados (tradicionalmente crítica a decisões do Supremo em matéria ambiental), em audiência pública, realizada em 2 de julho de 2024, com o objetivo de para retomar o debate em torno área Raposa Terra do Sol, em Roraima.

    O principal expositor na audiência, ex-presidente da Câmara Aldo Rebelo, discorreu acerca do que testemunhou como deputado federal e ministro da Coordenação Política do governo Lula, quando da edição do decreto homologatório da demarcação contínua da área, tendo expressado esperança de que “o grave erro” cometido no julgamento da PET 3.388 (relator ministro Ayres Britto), seja agora reparado pelo STF no julgamento das ações reunidas pelo ministro Gilmar Mendes, dando-se oportunidade de que todos os envolvidos, agentes públicos e privados e entes federativos, sejam ouvidos.

    A se ver pelo amplo e diversificado rol dos amici curiae admitidos pelo ministro-relator, isso ocorrerá.

    Autocomposição como imperativo do princípio da efetividade
    A decisão aponta para o esgotamento dos métodos heterocompositivos na solução de conflitos coletivos de alta complexidade, a determinar a necessidade da prevalência da colaboração institucional:

    “(…) considero relevante salientar a necessidade de que processos como os ora apreciados, que envolvem debates político-jurídicos de intenso relevo, sejam tratados de forma diferente dos métodos heterocompositivos, mormente quando os debates jurídicos são obnubilados por questões políticas e ruídos no canal usual dos diálogos institucionais entre os Poderes, fazendo jus a uma governança colaborativa do conflito, intermediado pelo Supremo Tribunal Federal.”

    Daí que, em situações em que a heterecomposição revele-se estéril, os métodos de autocomposição já não possam nem devam mais ser tidos por alternativos:

    “Os métodos autocompositivos não podem ser mais considerados alternativos, impondo-se instar aos atores da jurisdição constitucional à mudança de cultura do litígio constitucional para que aqueles sejam uma das portas de solução da jurisdição constitucional quando houver a necessidade de ampliar as possibilidades de soluções para além das respostas tradicionais de declaração de constitucionalidade ou inconstitucionalidade, ainda que por meio das técnicas de interpretação conforme à Constituição, apelo ao Legislador ou sentenças aditivas.”

    Autocomposição e processo estrutural


    Ocorre que a abertura para a complexidade da realidade social que se verifica em decisões como a que ora analisamos continua a depender de manifestações de racionalidade, prudência e sobriedade deste ou aquele agente político, como, para ficar num exemplo, verificou-se na atuação da Procuradoria-Geral da República durante a pandemia, em atuação coordenada com o Supremo Tribunal Federal, para evitar que a crise sanitária desbordasse em conflito federativo e mesmo em crise social e política, como mostra o livro “Ações que salvam — como o Ministério Público reinventou-se para enfrentar a Covid-19”, publicada pelo Conselho Nacional do Ministério Público, e, mais recentemente, o livro “O Procurador”, escrito pelo jornalista Luis (Lula) Costa Pinto.

    Todavia, ainda que não se possa deixar de reconhecer o papel do indivíduo na história (mesmo o pensamento marxista o reconhece, como no livro clássico de Plekhanov), é princípio geral da filosofia política ocidental que é melhor um governo de leis do que um governo de homens.

    Esta coluna tem se dedicado a acompanhar o esforço do Estado brasileiro para dotar a ordem jurídica de uma lei que regule a intervenção do Judiciário em políticas públicas e propicie um marco legal-processual para a solução de conflitos coletivos de ampla repercussão e alta complexidade.

    A mais recente e promissora iniciativa advém do ato do presidente do Senado que institui Comissão de Juristas responsável pela elaboração de anteprojeto de Lei do Processo Estrutural no Brasil.

    Dentre outras resultados positivos, uma lei do processo estrutural, ao trazer maior previsibilidade para a intervenção judicial em políticas públicas, oferece um antídoto benfazejo contra a tentação demagógica da judicialização da política (Processo estrutural contra a judicialização da política: percurso inconcluso).

    Por outro lado, observamos aqui em outro momento que a tragédia que se abateu sobre o Rio Grande do Sul — a tensionar os limites da normalidade jurídica — abriu um campo de reflexão e de experimentação para fazer avançar uma nova racionalidade decisional, fundada em princípios do processo estrutural, que se alicerce sobre a realidade e favoreça o desenvolvimento econômico e social (Reconstrução do RS: New Deal e processo estrutural brasileiro)

    Finalmente, a Comissão de Juristas criada pelo presidente do Senado para apresentar um anteprojeto da lei do processo estrutural no Brasil haverá de acompanhar com atenção os desdobramentos da decisão do ministro Gilmar de convocar os poderes do Estado, instituições relevantes e atores sociais de peso econômico, político e social, para a concertação em torno da fixação dos contornos constitucionais da demarcação e aproveitamento das terras indígenas.

    O aprendizado a ser proporcionado pelo referido diálogo institucional pode produzir resultados positivos para o desenvolvimento e a sustentabilidade sócio-ambiental e constituir um passo a mais — por pequeno que seja — na realização do sonho de tantos, como Darcy Ribeiro, de que o Brasil seja uma Nova Roma, a Roma Tropical, uma Nação unificada, num Estado mestiço e uniétnico.

    Se, como Moniz Bandeira colheu em Hegel, os Estados são como organismos vivos dotados de vontade a perseguir os seus objetivos, quem poderá negar que, ao final e ao cabo, tudo possa contribuir, por caminhos por vezes insondáveis, como seja a referida decisão do ministro Gilmar Mendes, para a concretização do profético discurso “O destino brasileiro do Amazonas”, proferido pelo presidente Getúlio Vargas, em 9 de outubro de 1940, às margens do grande rio?

    Alea jacta est!

    Samuel Gomes
    Samuel Gomes, advogado e professor, mestre em Filosofia do Direito, Consultor em Poder Legislativo, Relações Governamentais e Negócios Internacionais.

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