Quanto mais avança a compreensão dos benefícios que o uso da inteligência artificial pode trazer para a humanidade, mais aumenta a preocupação com os malefícios que seu mau uso pode acarretar. Não é muito diferente da energia atômica que, quando descoberta em meados do século passado, gerou as mesmas preocupações, levando, inclusive, ao estrito controle de seu uso, seja por regulações nacionais, seja por tratados internacionais.
Faz todo sentido, portanto, que o uso da inteligência artificial, cujo potencial disruptivo na sociedade é enorme, seja igualmente regulado ao nível nacional e internacional por meio de leis e tratados internacionais que impeçam o seu mau uso.
É compreensível que as chamadas “Big Techs”, a meia dúzia de grandes oligopólios globais de tecnologia (Apple, Microsoft, Alfabeth (Google), Amazon, Nvidia, Tela e Meta (Facebook, Instagram, WhatsApp, Messenger) vejam com maus olhos qualquer tentativa de regulação para o uso da inteligência artificial, uma vez que restrições para seu uso podem significar menos oportunidades de negócios e, consequentemente, menos lucros. Mas já passou da hora de colocar um freio na voracidade desses conglomerados tecnológicos para acumular poder e lucros.
Alguém disse que seria mais fácil extinguir a espécie humana do que o capitalismo. Não mais, pois o avanço da inteligência artificial tem potencial para destruir o próprio sistema capitalista, pelo menos da forma como o conhecemos. É o que defende o economista e ex-primeiro-ministro grego, Yanus Varoufakis que em livro publicado em 2023 (Techno Feudalism – What Killed Capitalism) afirma que o sistema capitalista (e também o socialista) está sendo substituído pelo que ele chama de “tecno feudalismo”.
A principal razão para isso, segundo ele, é que esses grandes oligopólios de tecnologia obtêm sua renda não mais por meio do trabalho pago, mas da exploração do trabalho não pago de bilhões de internautas que diariamente alimentam um gigantesco banco de dados por eles controlados. Por meio das plataformas e seus algoritmos, essas “Big Techs” são capazes, por um lado, de definir o que as pessoas podem consumir, ler ou assistir e, por outro, quem poderá fornecer tais bens e serviços, extraindo uma renda tanto dos consumidores, quanto dos fornecedores.
Tome-se, por exemplo, o mercado de livros e a Amazon. Depois de levar à quase extinção as livrarias físicas dos países onde atua e pôr de joelhos todas as editoras que agora dependem de sua plataforma para chegar com seus livros e publicações aos leitores, passou a cobrar “taxas” para a entrega dos livros que em muitos casos representam mais de 50% do valor de cada exemplar. Coisa não muito diferente ocorre também com os serviços de transporte pessoal com o Uber, os serviços de entrega de refeições etc. Sob o falacioso argumento de garantir a liberdade de escolha para consumidores e fornecedores de serviços, essas plataformas estão destruindo todo o sistema de regulação entre o capital e o trabalho, construído ao longo de séculos, para submeter tanto um quanto o outro ao controle dos algoritmos por eles manipulados.
Não é de admirar, portanto, que os governos dos países mais ricos do mundo, como os Estados Unidos e a União Europeia, cuja existência está umbilicalmente ligada à manutenção da ordem capitalista, preocupem-se com esses conglomerados, pois sentem que o seu próprio poder e razão de existir está em jogo. As plataformas, por seu turno, sabem que seu principal inimigo é o Estado, pois é a única instituição com capacidade de impedir ou dificultar seu amplo domínio sobre a sociedade.
O mau uso da inteligência artificial não se limita, obviamente, aos estragos que pode provocar na estrutura econômica, no sistema concorrencial e na regulação das relações entre capital e trabalho. A própria existência do arcabouço político que nasceu com e sustenta o sistema capitalista tal como o conhecemos – o estado nacional, o sistema de mercado e a democracia eleitoral pluripartidária – está em jogo, uma vez que essas novas tecnologias não só não conhecem ou reconhecem as fronteiras nacionais, como podem criar formas de socialização que tornam totalmente obsoletas as formas tradicionais hoje existentes, nomeadamente os partidos políticos, sindicatos, entre outras, estabelecendo uma aparente anarquia que mascara um controle ultracentralizado da sociedade por uns poucos monopólios que dominam essas plataformas e as ferramentas de inteligência artificial que as fazem funcionar.
Além disso, por meio da manipulação de dados, que permitem, por exemplo, colocar na boca e na imagem de um candidato palavras que ele nunca disse de forma tão perfeita (deepfakes), imperceptíveis aos nossos sentidos, pode influir de forma decisiva nos resultados dos processos eleitorais tornando o sufrágio universal, pedra angular dos sistemas eleitorais ocidentais, um jogo de cartas marcadas, transformando as chamadas “eleições competitivas” numa farsa com que os “marketeiros” de campanhas eleitorais jamais sonharam.
Não é para menos, portanto, que se note o esforço de colocar rédeas para a inteligência artificial em todo o mundo. Conforme informou o jornal “O Estado de S. Paulo” (14/3), a sessão plenária do Parlamento Europeu aprovou em 13 de março um ambicioso regulamento sobrea IA na União Europeia que proíbe o seu uso para a implantação de sistemas de vigilância em massa ou a identificação biométrica de pessoas de forma remota em locais públicos, com exceções para a localização de pessoas condenadas por crimes graves como estupro ou terrorismo.
Em artigo para o site Project Syndicate (18/4), o prêmio Nobel de economia, Joseph Stiglitz, afirmou que “No ano passado, a administração do presidente dos EUA, Joe Biden, enfureceu lobistas que representam grandes empresas tecnológicas e outras que lucram com os nossos dados pessoais ao denunciar uma proposta que teria destruído a privacidade dos dados nacionais, os direitos e liberdades civis online e as salvaguardas da concorrência. Agora, a nova ordem executiva de Biden sobre a segurança dos dados dos americanos revela que os lobistas tinham boas razões para se preocupar”.
No mesmo site, em artigo de 21 de março, Marietje Schaake, antiga deputada do Parlamento Europeu, e Steven Schuurman, cofundador e ex-CEO da Elastic, e cofundador do Centro Internacional para Gerações Futuras, afirmam que “Tendo adotado uma série de leis importantes, como a Lei da IA, nos últimos anos, a UE está numa posição única para governar as tecnologias emergentes com base num Estado de direito sólido, e não ao serviço dos lucros empresariais. Mas, primeiro, os decisores políticos europeus devem acompanhar os mais recentes avanços tecnológicos. Chegou a hora de os decisores da UE avançarem para a próxima curva. Eles devem educar-se sobre o que exatamente está acontecendo na vanguarda. Esperar até que novas tecnologias sejam introduzidas no mercado é esperar demasiado tempo.”
Segundo o Financial Times (18/3), “O presidente dos EUA, Joe Biden, e seu colega chinês, Xi Jinping, encontrara-se em novembro, discutiram a segurança da IA e concordaram em estabelecer um diálogo sobre a questão. As maiores empresas mundiais de IA também se reuniram com especialistas chineses em IA a portas fechadas nos últimos meses. Em novembro, 28 países, incluindo a China, e as principais companhias de IA firmaram compromissos amplos para trabalhar em conjunto para enfrentar os riscos decorrentes da IA avançada durante a cúpula sobre a segurança da IA promovida pelo primeiro-ministro do Reino Unido, Rishi Sunak. Na semana passada, os especialistas discutiram as ameaças relacionadas ao desenvolvimento da “Inteligência Artificial geral”, ou sistemas de IA iguais ou superiores aos humanos. “O ponto central das discussões foram as linhas vermelhas que nenhum sistema de IA poderoso deveria cruzar e que os governos do mundo todo deveriam impor no desenvolvimento e emprego da IA.”