O impasse boliviano

    Artigo publicado em O Estado de S.Paulo em 19/10/2011.

    Os dissabores que o presidente Evo Morales está enfrentando na Bolívia decorrem diretamente de seu erro de privilegiar as etnias em prejuízo da nação. De origem indígena, ou, para usar os termos da moda, oriundo do povo originário aimará, Morales caiu no canto da sereia do multiculturalismo e apoiou a institucionalização, como inscrito na Constituição da República, de um “Estado Plurinacional”, “intercultural”, repartido em “comunidades” descentralizadas e autônomas.

    O vice-presidente García Linera traduziu essa formação complexa como “uma nação de nações”.

    Nações diversas incrustadas num Estado tolhido de exercer a soberania nacional plena sobre o seu território forjam incidentes como o que a Bolívia atravessa. O governo da República sente a fraqueza do poder central ao ser confrontado por nações comunitárias que impedem a passagem de uma rodovia pelo Território Indígena e Parque Nacional Isiboro Sécure (Tipnis). Trata-se de um projeto de desenvolvimento nacional, mas três etnias em particular – moxeños, yurakarés e chimanes, que reúnem cerca de 13 mil indivíduos – reagem como se as terras que ocupam fossem autônomas, e não parte do território nacional boliviano e, portanto, sujeitas ao controle da nação e às diretrizes do Estado.

    A institucionalização de um Estado multinacional é uma experiência contraditória com a noção histórica de que uma nação pode conter minorias e diversidade de toda ordem – étnica, cultural, política, etc. –, mas não pode permitir que elas concorram entre si de modo a impedir a formação de uma identidade comum. Ao contrário, o Estado só merecerá esse nome se se sustentar na unidade nacional mais ampla, ou seja, como expressão de um país soberano cuja organização política contemple o sentimento de comunidade em que a nação é uma só. O conjunto das instituições (governo, forças armadas, administração) há de ter o largo alcance da isonomia plena e indistinta, mesmo quando Estados confederados reúnem várias nações.

    O risco das autonomias nacionais baseadas em minorias instalou-se na Bolívia a despeito de o partido de Evo Morales, o Movimento para o Socialismo (MAS), ter superado em sua plataforma eleitoral o equívoco do indianismo excludente. Grosso modo, a maioria de origem indígena – que constitui dois terços da população boliviana, de aproximadamente 10 milhões de pessoas – não tem a suposta unidade que lhe é atribuída. Descende dos aimarás do altiplano e dos quíchuas dos vales, permeados ou apartados de 36 grupos étnicos andinos e amazônicos, os quais – em graus e com força diferentes – se identificam como povos distintos e são estimulados a reivindicar o status de nação. Só a centralidade da questão nacional, e jamais a fragmentação étnica, tem condições de unificá-los em torno da identidade agregadora que forja a nação.

    O presidente Evo Morales, já eleito duas vezes, venceu batalhas importantes, como a nacionalização do petróleo e do gás, e resistiu às tentativas de separatismo dos departamentos mais importantes, como Santa Cruz, Pando, Beni e Tarija. Mas é em seu campo ideológico que trava o combate mais difícil. Sua popularidade sangra nas ruas e o governo implode e se desestabiliza na proporção em que a arquitetura das etnias autônomas é apropriada e reformatada pela oposição, por dissidências e por interesses externos.

    Na doutrina política, tais forças parecem nostálgicas do comunismo primitivo, cuja “economia doméstica”, como observou o filósofo alemão Friedrich Engels no estudo clássico A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, teve importância até “a fase média da barbárie”. Estradas, energia, máquinas, ciências, todo o processo civilizatório da humanidade é rejeitado como contaminação do modo de vida indígena, raptando-lhe a pureza original.

    Querem conservar o saber e a cosmogonia dos povos originários não a par, respeitados como devem ser, mas em protagonismo hostil ao desenvolvimento das forças produtivas. O progresso não é aceito como caminho para outras formas avançadas de organização política da sociedade. Negam a integração nacional, a superação da pobreza pelo desenvolvimento, a modernização do campo semifeudal e a industrialização das cidades. Tudo o que não é autóctone se transfigura em miragem do Ocidente decadente, em confronto com o brilho remoto do Império Inca.

    O grande vetor contemporâneo dessa doutrina regressista é o ambientalismo deformado, por ironia, originário de países desenvolvidos onde o Estado nacional jamais é posto em xeque, as populações aborígines foram dizimadas e o modo de vida perdulário esgota a natureza. Daí que o episódio em curso na Bolívia não é inocente nem espontâneo, mas uma onda que nasce nas águas turvas do equívoco étnico interno para virar um tsunami geopolítico ao gosto de quem tem interesses contrariados e se alia ao mais fraco por saber que poderá submetê-lo mais tarde, como já o fizeram em inumeráveis processos de colonização. O braço executivo dessas articulações são organizações não governamentais (ONGs) que constituem o já chamado imperialismo verde – da mesma natureza das que atuam no Brasil, conferindo a tribos da Amazônia um suposto caráter de minorias oprimidas pelo “colonialismo interno” da nação.

    Tal como lá, aqui o Estado também perde a soberania para dispor do território. Já tropeçamos nos conceitos de povos e nações indígenas, garantindo-lhes extensas áreas para usufruto exclusivo em zonas de fronteira, como as reservas dos ianomâmis e a de Raposa-Serra do Sol, na Amazônia. Já não é fácil asfaltar uma estrada ou construir hidrelétricas – obras de valor nacional satanizadas como violadoras da mãe natureza e da pureza dos povos originários.

    FONTEArtigo publicado em O Estado de S.Paulo em 19.10.2011
    Aldo Rebelo
    Aldo Rebelo é jornalista, foi presidente da Câmara dos Deputados; ministro da Coordenação Política e Relações Institucionais; do Esporte; da Ciência e Tecnologia e Inovação e da Defesa nos governos Lula e Dilma.

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    5 COMENTÁRIOS

    1. O ” primeiro mundismo sempre foi primeiramente sujo: o processo de colonizar nunca acabou, continua rolando sobre nosso complexo de vira lata .

    2. Tão atual quanto antes.
      Encontrar um denominador comum em que os povos, as etnias, tenham as mesmas oportunidades e os mesmos tratamentos no desenvolvimento das nações tem sido um grande desafio político. Constantemente temos deparados com problemas desta natureza no setor florestal, haja vista que a implantação da silvicultura no Brasil nas décadas de 60 e 70 do século passado excluiu, circunstancialmente, as comunidades no seu processo. Nos resta redesenhar o modelo de propriedade florestal mais inclusivo para dirimirmos muitos dos problemas no campo brasileiro.

    3. Concordo. O próprio Evo foi vítima da sua genuflexão ao identitarismo multiétnico e antinacional, quando começou a fortalecer o Estado-nação para fins de desenvolvimento e foi obstado por uma ampla coalizão anti-boliviana, da burguesia da media luna às ongs ambientalistas.

    4. Vejo aí um viés militarista embasado no conceito de Nação. Dos “pormenores” que formam este conceito penso na questão : território. Autonomia cultural, respeito às tradições, modus vivendi específicos que não querem ser alterados e atropelados pelo caos da pós modernidade devem ser sim tratados de forma especial. Conserva-los é crucial para que subsistam como unidade autônoma ao avassalador domínio do império cristão branco europeu. A não ser que não tenham mais valor enquanto espécie! Já podem seu substituídos! Ainda assim creio ser possível, não um meio termo, politicamente, um estado de coisas o de ambas as forças contrárias possam coexistir, um locus de intersecção em que certo hibridismo possa ser praticado sem prejuízo maior entre os opostos. Tem um ditado italiano antigo: “con la sputta i la pacienza, si chiavarebi una mosca!” Razão de ser política!

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