Em 1997, quando William Kristol e Robert Kagan, ao lado de outras pessoas que fizeram parte da administração de George W. Bush, incluindo Dick Cheney, Donald Rumsfeld e Paul Wolfowitz, lançaram o “Projeto para o Novo Século Americano”, cuja proposição básica era garantir mais um século de liderança americana no mundo, a situação era bem diferente da atual. Recém-terminada a Guerra Fria com a indiscutível vitória americana, havia poucas dúvidas de que os Estados Unidos permaneceriam por muitos anos como o líder mundial inconteste nos planos econômico, político e militar.
Tampouco se imaginava que haveria no mundo algum desafiante que pudesse pôr em risco a hegemonia americana. O desmembramento do antigo império soviético em uma dezena de países independentes havia privado a Rússia de metade da sua população e sua outrora poderosa economia viu-se reduzida à condição de exportadora de commodities minerais e agrícolas. A China, ainda nem admitida na Organização Mundial do Comércio (OMC), era apenas um lugar com farta mão-de-obra barata se esforçando para atrair investimento estrangeiro e exportar bens manufaturados de baixa tecnologia e qualidade inferior para o Ocidente.
Passado mais de um quarto de século daquele momento, a situação mudou completamente: sob o comando de Vladimir Putin, a Rússia, embora ainda dependente da exportação de commodities, reergueu sua poderosa indústria militar e projetou novamente sua influência econômica e militar não só em sua antiga área de influência, mas em todo o mundo. A China tornou-se a segunda maior economia do planeta, em vias de tornar-se a primeira, sofisticou sua indústria manufatureira e disputa a liderança mundial com os Estados Unidos em diversas áreas de tecnologia avançada, como a Internet 5G e a Inteligência Artificial. Por meio de uma política externa inteligente, expandiu sua influência com inciativas como o “Cinturão e Rota” por todo o planeta, nomeadamente no seu entorno e nos países em desenvolvimento.
A única coisa que não mudou nesse quarto de século foi a disposição dos Estados Unidos de manter sua primazia global. O que era, entretanto, algo aceito de forma axiomática pelo resto do mundo, dada a disparidade de poderio econômico, político e militar entre os Estados Unidos e o resto do mundo, hoje já não é algo tão evidente. A participação dos Estados Unidos no PIB mundial, segundo dados do FMI, caiu de 23% em 1980, para cerca de 15% em 2021, devendo atingir um valor ainda mais baixo em 2026. Embora ainda se mantenha como a maior potência militar do planeta, com um orçamento de defesa que já beira um trilhão de dólares, o rearmamento da Rússia e a modernização das forças armadas da China já não garantem aos norte-americanos a vitória certa em todos os cenários de guerra, principalmente naqueles onde Rússia e China são forças regionais dominantes.
O fato é que se no início do século a hegemonia militar e econômica quase absoluta dos Estados Unidos era, senão uma garantia, pelo menos um fator que favorecia a estabilidade global, hoje a busca pela continuidade dessa mesma hegemonia a qualquer custo pelos norte-americanos é a maior ameaça a essa mesma estabilidade. A Guerra na Ucrânia não existiria não fosse a insistência dos Estados Unidos de estender as garras da Otan até as fronteiras russas. No leste da Ásia, o papel desestabilizador dos Estados Unido também é evidente.
Durante pelo menos três décadas, a discreta presença americana na região por meio sobretudo do setor privado permitiu que questões de natureza geopolítica de difícil solução, como problemas de fronteira, a questão de Taiwan e a rivalidade histórica entre China e Japão fossem postas de lado em favor de um projeto de integração econômica que garantiu a ascensão da Ásia como novo polo dinâmico do capitalismo global. Mas com o “pivô para Ásia” do governo Obama o clima regional de relativa tranquilidade começou a mudar.
Preocupados com a ascensão chinesa e o aumento de sua influência regional, os americanos trataram de aguçar as divisões políticas regionais que até então estavam relativamente amortecidas pelos benefícios da integração econômica. Inventaram um novo conceito geopolítico denominado “Indo-Pacífico” com o único objetivo de construir uma espécie de Otan do Leste tentando reunir todos seus aliados regionais, particularmente Japão, Austrália e Índia, para se contrapor militarmente à China.
O governo Trump avançou uma casa nessa estratégia e declarou uma guerra comercial contra a China com o objetivo de desacoplar a economia chinesa da economia americana e, dessa forma, desfazer a simbiose entre as duas economias que, na sua visão, estava trazendo mais benefícios para os chineses. Joe Biden conjugou as duas estratégias, não só elevando a níveis inéditos o risco de um conflito militar de grandes proporções na região em torno da questão de Taiwan, como jogou pesado para desarticular todas as cadeias globais de produção centradas na China, visando dificultar ao máximo o seu desenvolvimento, como se fosse possível manter a “Pax Americana” na região por meio do empobrecimento da China. De quebra, ao tentar desestabilizar a economia chinesa, coloca em risco toda a prosperidade regional que resultava exatamente dessa integração econômica, tendo a China como parte dessa engrenagem virtuosa.
Tudo indica que, em 2023, os Estados Unidos darão continuidade a essa estratégia burra de tentar garantir sua hegemonia global no século 21 para impedir que qualquer possível desafiante, seja no terreno econômico ou militar lhe faça sombra, como se a única forma de se manter rico fosse empobrecendo os demais. Não se dão conta de que a essa altura deter o desenvolvimento da China é uma tarefa impossível e que a nova corrida armamentista que estão provocando apenas subtrairá recursos que, de outra forma, poderiam estar sendo mais bem utilizados em benefício do próprio povo norte-americano.