Fazenda quer manter o arcabouço fiscal. Existe uma alternativa?

    (foto: Ministério da Fazenda)

    Depois do desastre eleitoral da esquerda nas eleições municipais de outubro não faltaram críticas ao ministro da Fazenda e à equipe econômica do governo que, para muitos, foi a principal responsável pelo péssimo desempenho eleitoral dos candidatos apoiados pelo presidente Lula e pelo Partido dos Trabalhadores.

    Embora Lula governe o País, os partidos de esquerda e centro esquerda elegeram apenas três, de 26 prefeitos de capitais. A insistência do Ministério da Fazenda em preservar o arcabouço fiscal, mesmo que isso implique em cortar mais fundo os gastos do governo e tomar medidas impopulares vem recebendo críticas não apenas de lideranças do Partido dos Trabalhadores, mas também de muita gente de fora do governo que não concorda com essa orientação. O próprio presidente Lula não perde ocasião para criticar as pressões que seu governo vem recebendo para cortar mais gastos, sobretudo na educação e na saúde.

    Para o jornalista Antônio Martins, do site Outras Palavras, “A baixa potência de Lula 3 deveu-se especialmente à obsessão do ministro da Fazenda por um “ajuste fiscal”, materializado no “arcabouço” no “déficit primário zero”. Num país empobrecido e reprimarizado, o investimento público pode ser a principal alavanca do governo para melhorar a vida das maiorias, renovar a infraestrutura e criar milhões de ocupações dignas. Além disso, os conservadores têm enorme dificuldade para se opor. Imagine-se o impacto que teriam, na sociedade e no Congresso, propostas como a garantia de escola pública em período integral, a extensão de Equipes de Saúde da Família a todo o território nacional, a duplicação das redes de metrô, a despoluição dos rios urbanos e a contratação de todos os profissionais necessários a essas tarefas. Ao invés de abraçar projetos como esses, a Fazenda optou por perseguir uma “disciplina” só benéfica aos rentistas (a China, por exemplo, mantém déficits fiscais de 3% ao ano há décadas e acaba de ampliá-los; a União Europeia debate neste exato momento o Plano Draghi, que pode elevar o déficit anual a 5% do PIB; os EUA registrarão déficit de 7,3% em 2024). A eleição escancarou os resultados políticos de tal escolha. Lula conserva popularidade mediana. Mas a capacidade que ele teve, nos dois primeiros mandatos, de sinalizar tempos novos para a maioria (“nunca antes na história deste país”) e mobilizar o eleitorado em favor de seu campo político esfumaçou-se. Sensível ao declínio, o presidente retraiu-se durante a campanha. E este encolhimento pode se consolidar caso prospere a novidade que o próprio Fernando Haddad articulou, nas últimas semanas. Se concretizada, ela alterará, de forma definitiva, o próprio caráter do governo”.

    Segundo o jornal o “O Globo” (31/10), “A equipe econômica do governo Luiz Inácio Lula da Silva trabalha em uma proposta “híbrida” para corte de gastos, que inclui tanto medidas pontuais quanto um ajuste estrutural em despesas, e que está dividida em três frentes de atuação.” Segundo o jornal, uma dessas frentes envolve mexer em despesas obrigatórias, que são mais de 90% do Orçamento federal e têm comprimido o espaço para gastos com investimentos e custeio da máquina pública. “As medidas em estudo incluem flexibilizar a obrigação de repasse a fundos, mirando especificamente o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), que terá orçamento obrigatório de mais de R$ 10 bilhões. Técnicos pretendem tornar o fluxo para esse fundo um repasse discricionário”. “Ainda na linha de alterar despesas obrigatórias, está uma proposta de criar um limite de 2,5% acima da inflação para o crescimento de alguns gastos. Nesse caso, a ideia é alinhar essas despesas obrigatórias ao arcabouço fiscal, que prevê que as despesas do governo como um todo não podem crescer mais de 2,5% acima do IPCA por ano.” Segundo a matéria, o ministro Haddad disse que as despesas obrigatórias precisam caber no arcabouço fiscal. “Os pisos de gastos em saúde e educação são algumas das principais despesas com crescimento divergente dos gastos gerais do governo, mas mudanças nessas regras são vistas como improváveis na atual gestão.”, afirma o jornal.

    A segunda frente “envolve o redesenho de algumas políticas públicas, consideradas pouco focalizadas e caras, como o seguro-desemprego e o abono salarial (um salário-mínimo pago por ano para quem recebe até dois salários). O Benefício de Prestação Continuada (BPC) também está no foco.” “A terceira vertente de atuação do Executivo é dar controle de fluxo de pagamento a benefícios específicos, como o ProAgro e o Seguro-defeso (pago a pescadores durante a época da piracema). Hoje, elas são despesas completamente obrigatórias e precisam ser executadas mesmo que o orçamento previsto seja menor. Ao dar controle de fluxo para essas despesas, o governo só executa o que está previsto no Orçamento.”.

    Segundo o Estadão (17/10), “Haddad, por sua vez, defendeu o arcabouço fiscal e as medidas adotadas pelo governo, mas reconheceu que a dívida pública continua a crescer a despeito do dispositivo, e que o mercado financeiro tem razão ao manifestar preocupação com a dinâmica do gasto público “daqui pra frente”. No pacote a ser apresentado ao presidente Lula da Silva após o segundo turno das eleições municipais, constariam medidas para limitar os supersalários no setor público para fazer valer o teto remuneratório, hoje em R$ 44 mil, mudanças para reduzir despesas com o seguro-desemprego, um novo modelo para diminuir o alcance do abono salarial e a revisão de subsídios que somam quase R$ 600 bilhões, ou 6% do Produto Interno Bruto (PIB). Não são ideias novas, e muitas já foram aventadas por administrações anteriores e até mesmo por integrantes do governo atual. Algumas têm efeito mais simbólico do que efetivo, como o fim dos supersalários. A diferença é que, agora, Lula da Silva teria um “incentivo” para acatá-las: sua obsessão pela retomada do grau de investimento do País pelas agências de classificação de risco (…) Recuperar o grau de investimento seria algo que Lula da Silva gostaria de “entregar” até o fim de seu mandato, em 2026, ao menos segundo a equipe econômica”.

    Segundo o jornal, “A sobrevivência do arcabouço fiscal até o fim do mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2026, é o objetivo imediato da equipe econômica na elaboração de um pacote de cortes de gastos. A estratégia inicial seria a de aprovar propostas que evitem um estrangulamento das despesas discricionárias (passíveis de bloqueios e contingenciamentos). Numa segunda etapa, propostas mais robustas poderiam ser aprovadas, como mudanças na indexação do salário-mínimo e nos pisos da Saúde e Educação. Há em estudo diversas propostas, com cortes de até R$ 50 bilhões neste ano. O objetivo de Lula é que o Brasil obtenha, em seu mandato, o grau de investimento das agências de classificação de risco. Ainda assim, a equipe econômica admite que é incerto o grau de comprometimento do presidente com essa agenda e que ainda estão tentando convencê-lo de que ele poderá ter ganhos políticos. Ontem, antes de encontro com banqueiros, Lula voltou a se queixar da cobrança por corte de gastos em Saúde e Educação.”.

    Ao que tudo indica o atual governo, mais uma vez, cede às pressões do mercado e abraça uma pauta que supostamente se elegeu para mudar. A pergunta que fica é: há uma alternativa? A resposta a essa pergunta implica na análise de aspectos legais, técnicos e políticos.

    Do ponto de vista legal é preciso lembrar que qualquer alternativa ao corte de gastos que o governo está sendo praticamente obrigado a realizar apesar dos reclamos de Lula exigiria mudanças na legislação atual que torna crime de responsabilidade o não respeito às restrições impostas pelo atual arcabouço fiscal. É preciso lembrar que o Brasil vive há quase 30 anos sob o tacão da austeridade fiscal e que uma presidente já sofreu impeachment por, supostamente, ter violado, por meio de manobras contábeis, as restrições aos gastos impostas pela lei de responsabilidade fiscal.

    Um dos aspectos centrais do Plano Real, de 1994, foi a imposição de limitações legais ao gasto público. Pouco antes do anúncio do Plano Real, em 7 de novembro de 1993, o governo Fernando Henrique Cardoso lançou o PAI (Plano de Ação Imediata), que além do corte orçamentário de seis bilhões de dólares, previa o encaminhamento ao Congresso de um projeto de lei limitando as despesas com servidores civis em 60% da receita corrente da União, dos Estados e municípios e a elaboração do projeto do que viria a ser a Lei de Responsabilidade Fiscal, aprovado em maio de 2000. Entre as medidas de ajuste fiscal propostas por ocasião do envio do Plano Real ao Congresso, em novembro de 1993, a principal delas foi a criação do chamado Fundo Social de Emergência, posterior DRU (Desvinculação de Receitas da União), que permitiu alterar a destinação constitucional de 20% das verbas do orçamento da educação e um conjunto de corte no Orçamento Geral da União de 1994.

    Em 15 de junho de 2016, o governo do presidente Michel Temer apresentou ao Congresso uma proposta de emenda constitucional que limitava o aumento do gasto público à variação da inflação, tomando como base de reajustamento o valor da inflação do ano anterior instituindo o chamado Teto de Gastos. A proposta foi aprovada pelo Congresso Nacional em 15 de dezembro de 2016 e ficou conhecida como Emenda Constitucional 95, com previsão de durar 20 anos. A Emenda Constitucional 95 estabeleceu o teto federal de gastos limitando o crescimento dos gastos primários da União pela inflação acumulada pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA).

    Sem válvulas de escape, a Constituição foi modificada várias vezes desde 2019 para permitir furos no teto de gastos, envolvendo R$ 828,41 bilhões fora do limite. Desse total, a maior parte correspondeu ao Orçamento de Guerra para enfrentar a pandemia de Covid-19 em 2020. Em dezembro de 2022, já com o Presidente Lula eleito, foi aprovada a Emenda Constitucional da Transição que excluiu até R$ 168 bilhões do teto de gastos em 2023. Em troca da criação de mais um furo no teto de gastos, o texto estabeleceu a obrigatoriedade de o governo enviar ao Congresso, até agosto de 2023, um projeto de lei complementar com um novo arcabouço fiscal.

    Apresentado em 30 de março de 2023 o novo arcabouço fiscal combina regras de resultado primário (resultado das contas do governo sem os juros da dívida pública) e de controle de gastos. As despesas do governo poderão crescer entre 0,6% e 2,5% acima da receita do ano anterior em valores reais (corrigidos pela inflação). Dentro dessa banda de 0,6% e 2,5%, os gastos poderão crescer até 70% da variação da receita do ano anterior[1].

    Os ajustes agora propostos visam a manutenção do Arcabouço Fiscal aprovado no primeiro ano do atual governo Lula. Qualquer alternativa a eles, exigiria, portanto, uma nova mudança na legislação que desatasse as amarras que, de uma forma ou de outra, vêm limitando os gastos públicos nos últimos 30 anos. Isso nos remete aos dois outros aspectos mencionados: a viabilidade técnica e política.

    Do ponto de vista da viabilidade técnica é preciso lembrar, em primeiro lugar, que todo o discurso da austeridade fiscal que, como vimos, condiciona e manieta a política macroeconômica do Brasil nos últimos 30 anos, parte do diagnóstico apresentado em 1994 por ocasião do lançamento do Plano Real de que a origem da inflação brasileira estava no descontrole do gasto público e que era preciso atacar esse mal pela raiz, cortando gastos e reduzindo o tamanho do Estado. Na ocasião o binômio “inflação-gasto público” foi apresentado como duas faces da mesma moeda. Até que ponto esse argumento é verdadeiro tem sido objeto de ferrenha disputa teórica em nível internacional. O fato de a inflação ter praticamente desaparecido nas duas primeiras décadas do século XXI, nomeadamente nos países desenvolvidos, apesar do aumento do déficit público e do aumento da dívida pública que em alguns países já é superior ao seu PIB, deu ensejo ao surgimento da chamada “Teoria Monetária Moderna” (MMT) que põe em xeque a ligação entre déficit público e inflação.

    A ligação entre déficit público e inflação está ancorada na chamada “Teoria Quantitativa da Moeda”, que afirma haver uma relação direta entre nível de preços e quantidade de moeda em circulação. Se aumenta a quantidade de moeda em circulação sem que haja um aumento proporcional na quantidade de mercadorias disponíveis para consumo, os preços necessariamente irão subir. Se, portanto, o governo gasta mais do arrecada vai precisar emitir moeda para cobrir esses gastos, gerando assim inflação.

    A “Teoria Monetária Moderna” questiona esse argumento baseada não apenas no fato de que nas duas primeiras décadas do século XXI essa correlação não existiu, mas principalmente no fato de que o governo não usa papel moeda para fazer seus pagamentos e nem precisa tomar emprestado o seu dinheiro para poder gastar. Na verdade, diz a teoria, o governo não tem como tomar emprestado um dinheiro que ainda não foi gasto. Segundo a MMT, quando o governo vende títulos, os bancos os adquirem oferecendo as reservas compulsórias e voluntárias que eles mantêm no Banco Central. O Banco Central, por sua vez, debita a conta de reservas do banco que está adquirindo os títulos e credita a conta de títulos do governo em nome do mesmo banco. Ao invés de ver isso como um empréstimo para o governo, seria mais adequando considerar como uma retirada do dinheiro da conta-corrente para depositá-lo na conta de poupança de forma a ganhar mais juros. Na verdade, a conta de títulos do governo nada mais é que do que uma “conta-poupança” que os bancos comerciais mantêm no Banco Central que paga mais juros do que as reservas que esses mesmos bancos são obrigados a manter no Banco Central[2].

    Resta, finalmente, a questão da viabilidade política. Partindo da constatação de que hoje boa parte do Poder Legislativo, a quem caberia desmontar essas amarras fiscais não é propriamente fã ardoroso da austeridade fiscal, talvez não fosse impossível mudar radicalmente toda a legislação sobre o assunto, não fosse, obviamente os interesses eleitorais em jogo. A oposição maior a mudanças desse tipo vem, na verdade, do chamado “mercado” e por razões não tão patrióticas. Na verdade, como vimos, o mecanismo da dívida pública é uma forma que os bancos têm para ganhar dinheiro “emprestando” para o governo um dinheiro que na, na realidade, ele não precisa tomar emprestado. A demanda por austeridade fiscal e com a geração de resultados primários resulta principalmente da preocupação dos bancos de que esse pagamento de juros seja garantido sem que haja um aumento do total da dívida pública que, em tese, poderia levar o governo a fazer parar essa roda da fortuna. Não por acaso os banqueiros foram se reunir com o presidente Lula para apoiar o plano do Ministro da Fazenda Fernando Haddad.


    [1] https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2023-04/agencia-brasil-explica-diferenca-entre-novo-arcabouco-e-teto-de-gastos

    [2] L. Randall Wray. Modern Money Theory. Second Edition. Palgrave MacMillan, 2015.

    Luís Antonio Paulino
    Luís Antônio Paulino é professor doutor associado da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e membro da equipe de colaboradores do portal “Bonifácio”.

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