Diante de tantas incertezas que rondam o mundo neste ano de 2024, pode parecer um exagero afirmar que as eleições nos Estados Unidos serão o acontecimento do ano. Primeiro porque além daqueles eventos já em curso e aqueles pré-determinados, como as eleições norte-americanas, acontecimentos não previstos podem pegar o mundo de surpresa. Entretanto, descartada a ocorrência desses chamados “cisnes negros” ou “rinocerontes cinzentos”, como o presidente da China se referiu a esses eventos totalmente imprevistos e com grande impacto sobre o mundo, certamente o resultado das eleições nos Estados Unidos será o de maior repercussão, pois a um só tempo colocará em jogo o destino da própria democracia norte-americana, assim como o futuro papel dos Estados Unidos no cenário mundial.
A ordem global construída após a Segunda Guerra Mundial e sua transformação em ordem unipolar a partir da debacle da ex-URSS, em 1991, com os Estados Unidos no topo, vem sendo corroída há décadas, seja pela ascensão de novos postulantes à condição de grande potência, nomeadamente a China, seja pela corrosão dos pressupostos que credenciavam os Estados Unidos a exercer esse papel. Não é de hoje que a liderança americana no mundo vem sendo exercida mais pela força do que pelo convencimento e pelo exemplo, fontes legítimas da hegemonia. Mas pelo menos as aparências vêm sendo mantidas, cobrindo a mão de ferro do poder duro americano com a luva do poder suave da diplomacia, da defesa do meio ambiente e dos direitos humanos. Ao dispensar certas sutilezas que no mundo da diplomacia não são de menor importância, um eventual segundo governo Trump poderia tornar o mundo e, em especial os Estados Unidos, um lugar muito menos agradável de se viver, sobretudo para os milhões de migrantes latino-americanos.
Obviamente se trata apenas de uma hipótese, primeiro porque Trump precisaria efetivamente vencer as primárias do partido Republicano, o que parece ser praticamente certo, pelos primeiros resultados das primárias republicanas nos estados de Iowa e New Hampshire, que levaram inclusive seu principal concorrente, o governador da Flórida, Ron DeSantis, a desistir do pleito e anunciar o apoio a Trump que disputa agora a indicação apenas com Nikki Haley, ex-embaixadora dos Estados Unidos na ONU durante o primeiro governo Trump. Segundo porque não está afastado o risco de Trump sequer poder concorrer à presidência americana por alguma decisão da Justiça, por ter conspirado contra os resultados da eleição passada que levou Biden ao governo.
Embora a velha guarda do partido Republicano não esconda sua preferência por Nikki Haley vista como mais moderada, mas mais à direita que Trump em temas importantes de política externa como a guerra da Ucrânia e a presença americana na Europa por meio da Otan, as suas chances de obter a indicação são pequenas, dado o amplo domínio exercido por Trump sobre as bases do partido Republicano que não é mais a elite americana do vetusto GOP.
No momento, o único obstáculo que Trump efetivamente enfrenta para se tornar o candidato republicano nas eleições de 2024 são as dezenas de processos a que responde sob a acusação de ter tentado subverter o sistema eleitoral americano nas eleições de 2020. Mas mesmo que seja condenado, há dúvidas se realmente isso o impediria de concorrer e, se ganhar, exercer a presidência, dadas as peculiaridades do sistema legal norte-americano.
Não se pode, contudo, dar como favas contadas uma eventual vitória republicana nas próximas eleições, apesar da baixa popularidade de Biden, da desconfiança do eleitorado quanto à sua capacidade física e mental para exercer um segundo mandato já adentrando na casa dos 80 anos, dos estragos que a imigração ilegal pelas fronteiras com o México está provocando em sua campanha e das fortes críticas que vem recebendo sobretudo entre os jovens por suas decisões de política externa, nomeadamente na guerra de Israel contra o Hamas. Primeiro porque questões de política externa aparentemente não pesam muito nos resultados eleitorais dos Estados Unidos e, segundo, porque o partido Republicano atualmente é uma grande confusão.
Como afirmou o articulista do Washigton Post, E. J. Dionne Jr (21/1) “A sabedoria predominante nas primárias de terça-feira em New Hampshire vê Donald Trump como triunfante. Mas não o confunda com um colosso liderando um bando poderoso. Esta visão ignora o oportunismo por detrás de muitos dos apoios que está a obter e a nítida divisão entre os republicanos que o querem governando e aqueles que não o querem. Embora haja certamente polarização entre os nossos partidos, a principal causa da profunda perturbação na política americana é a polarização dentro do Partido Republicano. O aparente domínio de Trump desvia a atenção daquilo que o comportamento dos políticos eleitos do Partido Republicano em Washington nos ensina dia após dia: o partido está uma confusão”.