O fato de os primeiros 100 dias do governo Trump terem se tornado o centro de atenção mundial revelam o quão disruptiva para a ordem internacional vigente tem sido sua ascensão ao poder. Para muitos críticos, falta coerência e racionalidade nas medidas que vêm sendo tomadas pelo presidente americano por meio de centenas de ordens executivas assinadas nos primeiros 100 dias de governo. Para os que assim pensam, a motivação para assim agir, seria, no plano interno, sobretudo o desejo pessoal de vingança contra os inimigos políticos. No plano externo, um impulso de dominação que não se contém nos limites do território americano. Tanto uma como outra explicação nos remetem ao campo do subjetivismo, para o qual a estabilidade ou instabilidade da ordem interna e mundial é totalmente determinada pelas qualidades morais dos líderes políticos, sendo as virtudes ou vícios do líder o próprio fundamento da ordem social.
Não parece, contudo, que seja este o caso. Se há loucura na forma de Trump agir, essa loucura tem método, ou seja, parte de um diagnóstico dos problemas que os Estados Unidos enfrentam e propõe uma série de medidas para resolvê-los. De pouco ajuda classificar de “loucura” o que Trump está fazendo sem entender que é o resultado não apenas das peculiaridades do líder político, que certamente têm algum peso, mas sobretudo de mudanças importantes ocorridas ao nível estatal e interestatal, ou seja, aos níveis de Estado e Sistema, que criaram as condições para a própria ascensão de Trump ao poder.
Nesse sentido, por mais que desagrade ao senso comum não ter alguém a quem culpar pessoalmente, muito mais do que causa, Trump é consequência da própria crise do sistema capitalista mundial, cujo primeiro sinal de alerta foi a crise financeira de 2008. Trump não é um fenômeno isolado, um raio em céu azul. A tendência à polarização política e a ascensão de forças de extrema-direita é um fenômeno mundial que tem a ver com o fracasso para encontrar soluções para as contradições que o sistema capitalista engendra no curso de seu próprio desenvolvimento.
Com a globalização, as grandes empresas multinacionais e a oligarquia financeira mundial ganharam muito, mas a distribuição social do butim se tornou negativa, nomeadamente nos países ricos. Na busca pela recuperação das suas margens de lucro que começaram a encolher no último quartel do século passado, as grandes empresas multinacionais com sede nos países ricos promoveram uma migração de capitais em direção aos países em desenvolvimento, principalmente em busca de mão de obra barata, recursos naturais e novos mercados. Tal movimento, se de um lado contribuiu para que esses países, entre os quais os BRICS e nomeadamente a China, acelerassem seu ritmo de crescimento, desmantelou a base industrial dos países desenvolvidos, que sempre foi o principal suporte econômico de suas classes médias.
Como resultado desse processo, o lucro das grandes corporações industriais e financeiras nos países ricos aumentou, mas todos aqueles que dependiam dos empregos na indústria nesses mesmos países, principalmente trabalhadores sem formação universitária, viram-se em situação pior que a anterior. E são exatamente esses setores que agora estão sendo manobrados por essas mesmas oligarquias com o objetivo de perpetuar um sistema disfuncional que, de crise em crise. vai tentando sobreviver sem abrir mão dos privilégios de sua casta dirigente.
A ascensão de Trump ao poder apoiado por um grupo seleto de bilionários é a expressão desse processo. Chama mais atenção porque está ocorrendo no próprio coração do sistema capitalista global, mas não é um fenômeno restrito aos Estados Unidos. É mais confortável e consolador para muitos, sobretudo para os liberais que embarcaram acriticamente no discurso da globalização, atribuir o que está ocorrendo às peculiaridades ou à “loucura” de um líder. Iludem-se, assim, imaginando que ida a pessoa, os problemas se resolvem. Infelizmente não é verdade, pois outros virão, nos Estados Unidos e no resto do mundo, a não ser que os problemas de fundo que lhes deram origem sejam solucionados.