A crônica de Teotônio Vilela (Viçosa-AL, 28/05/1917-Maceió, 27/11/1983), publicada há 50 anos, é uma bela homenagem ao boi e aos seus criadores, em um Brasil onde se promete picanha à população, mas se hostiliza quem cria uma vaca. Teotônio foi senador, cronista, usineiro, mas tinha alma de vaqueiro.
“Fui à inauguração, em Aracaju, da primeira exposição regional de gado de raça. Não vou falar do gado; a relação de todas as exposições está sempre, para mim, na tenacidade do homem em manter viva a chama do zelo pelo desenvolvimento da pecuária. É qualquer coisa de estóico, de heroico mesmo, como esses homens plantados no interior – mal assistidos e pouco considerados pelos chamados poderes públicos – promovem silenciosamente a grandeza nacional. Os poderes públicos é que se promovem, diante dos visitantes, com o trabalho longo e árduo daqueles esquecidos e até malsinados fazendeiros. Na maioria homens que surgiram do nada, e, no ganho do dia a dia e na esperança de vencer, foram somando carinhosamente o tostão e a fé para formação de uma estrutura econômica das mais respeitáveis e belas deste País.
Vendo uma criança de dez anos puxar um touro de trinta arrobas pela pista, vendo como lhe dava ordens e conduzia majestaticamente o animal diante de uma multidão nunca inferior a quinze mil pessoas, chegou-me, de repente, o contraste violento da riqueza esnobe de Copacabana puxando ou mesmo sendo puxada pela coleira prateada dos trêfegos cachorrinhos de luxo. Pensei com orgulho: – ninguém acaba com o Brasil. Entre a civilização do zebu e a civilização do bassé, entre o interior suado e o asfalto engomado, entre as crianças ousadas e a maturidade cansada – há, indubitavelmente, um sinal vigilante, correndo por céus e terras na preservação da dignidade humana.”
E como é bom a gente sentir esse fluxo de civismo provocado pela juventude. O amor às origens e aos fundamentos da vida brasileira é o que há de mais sublime a se preservar e exaltar. Urge um retorno rápido ao porque-me-ufano do meu País. Hoje entendo Afonso Celso. Hoje entendo José de Alencar com o seu indianismo. Que tinha a Nação naquele tempo para sustentar a esperança da mocidade senão o panorama das riquezas naturais e a indução de que o índio era um vivente romântico? A inteligência granítica dos nossos dias não aceita o sonho. E, entretanto, continuamos a sonhar. E sonha a própria máquina inventada pelo homem para substituir o sonho. Quais são os continuadores do Afonso Celso e José de Alencar, dentro da realidade contemporânea, capazes de empolgar gerações?
Não sei, ninguém sabe. Somos uma espécie de novos judeus à espera de novos Messias. Quantas vezes, arrogantemente, condenei a porquê-me-ufanismo; – e hoje cato, busco e espero acalentadora esperança. Neste mundo tomado de uma estanha fé na miserabilidade, entendo que chegou a hora de se trocar o sentimentalismo da fé pela fidelidade ao sentimento. E este sentimento reside na autenticidade da vida e esta fidelidade mora na vigilância do bem comum. Estamos colocados entre a civilização do zebu e a civilização do bassé; e o juiz é o homem, o próprio que conduz com uma mão a produtividade e com a outra a ociosidade. Resta-lhe a consciência de ser. Como? De que modo? Para onde? e Por quê?
O asfalto ali perto é uma sinfonia de pneus, escapes e buzinas. Teatro bizarro e bárbaro, coletivamente desumano, onde a música, sem partitura e sem maestro, domina um auditório inerme e sem palmas. Dentro da noite então a sinfonia me parece triste e agastada. O que se passa?! Quem geme tanto? Quem ri tanto? E eu me volto para o menino, puxando o touro, dominando o touro, acariciando o touro. E eu me volto para a abominável criatura conduzida pelo cachorrinho nas calçadas universais do Rio. E eu me volto para o homem que saiu do nada e é hoje fazendeiro de gado fino. Além do neo-porque-me-ufanismo aqui pregado, pregue-se a lei de Capistrano de Abreu: – todo brasileiro está obrigado a ter vergonha.