A evolução das relações China-América Latina no século XXI

    Comércio, crédito e investimento direto são os instrumentos da China para a aproximação com a América Latina.

    O tema das relações entre a China e a América Latina vem despertando cada vez mais o interesse de acadêmicos, pesquisadores e da opinião pública de uma forma geral. Com este texto, a ideia é oferecer um breve panorama a respeito da evolução das relações entre a República Popular da China (RPC) e a América Latina e Caribe (ALC), abordando de forma resumida as suas dimensões comerciais, financeiras, diplomática e de investimento. Assim, objetiva contextualizar a crescente presença política e econômica da China na região, que evoluiu de forma significativa ao longo do século XXI.

    Em um primeiro momento do presente século, o aprofundamento das relações China-América Latina se baseou fundamentalmente na sua dimensão comercial, dado o ímpeto chinês por matérias-primas e produtos primários essenciais ao seu acelerado processo de desenvolvimento econômico.

    Em um segundo momento, foi possível perceber um adensamento das relações econômicas, que passaram a envolver crescentes alocações de investimento, concessão de empréstimos e realização de projetos de infraestrutura. A partir da segunda década do século XXI, igualmente se notou um aprofundamento dos laços de cooperação político-diplomática, conforme sugere a criação do Fórum China-CELAC e a assinatura de acordos bilaterais e multilaterais que denotam uma ampliação da Nova Rota da Seda – ou Iniciativa Cinturão e Rota (ICR) – para a América Latina.

            As relações entre a China e os países da América Latina conhecem um crescente envolvimento a partir dos anos 2000, com um incremento relevante das trocas comerciais. A compreensão disso passa pelo ingresso da China na Organização Mundial do Comércio (OMC), em 2002, e pela elevada demanda chinesa por energia, matérias-primas e metais, vitais para sustentar o acelerado processo de urbanização e a transformação do gigante asiático em grande centro manufatureiro da economia mundial. O boom das commodities reorientou a América Latina em direção à Ásia-Pacífico, beneficiando as economias exportadoras da região e reposicionando-as na divisão internacional do trabalho.



    A disputa geopolítica entre Estados Unidos e China pode atravessar o esforço de integração da infraestrutura sul-americana, de interesse dos chineses e sabotada pelos norte-americanos. Na ilustração, eixos da Iniciativa para a Integração de Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA).

            Como resultado desse processo, a China se consolida como principal parceiro comercial de diversas economias latino-americanas, a exemplo de Brasil e Argentina, as maiores da América do Sul. O comércio entre China e América Latina saltou de US$ 15 bilhões, em 2001, para mais de US$ 300 bilhões, em 2019. As exportações latino-americanas somaram US$ 141,5 bilhões no ano passado, enquanto as importações oriundas da China totalizaram US$ 161,7 bilhões.

    Para a América do Sul, a China já é o principal parceiro comercial e, quando considerada a América Latina, o país asiático se posiciona na segunda colocação, atrás dos Estados Unidos. Em termos de saldo comercial, há variações, com países exportadores de commodities agrícolas e mineraisapresentando superávit (Brasil, Peru e Chile) e outros apresentando déficit (México e Colômbia). A pauta exportadora da região segue concentrada em produtos primários: soja, petróleo cru e minérios (cobre e ferro) correspondem a mais da metade das exportações da América Latina para a China.

            A segunda década do século XXI revelou outra característica das relações econômicas entre China e América Latina: a ampliação dos investimentos chineses, tanto na forma de Investimento Externo Direto (IED) quanto na modalidade de empréstimos e projetos de construção. Como consequência da modificação na gestão das reservas cambiais da China no pós-crise de 2008 e na ampliação da política going global (ou going out), a América Latina passa a se caracterizar cada vez mais como uma região receptora de investimentos chineses. Entre 2005 e 2020, a combinação do investimento chinês e dos projetos de construção na América do Sul totalizaram US$ 178 bilhões, sendo que, desse total, US$ 165,78 bilhões foram alocados e executados na região após o ano de 2010. O destaque vai para o setor energético, que concentrou grande parte desses investimentos e somou, entre 2005 e 2020, mais de US$ 100 bilhões.

    O financiamento chinês para a região também cresceu de maneira significativa ao longo da última década, especialmente por meio da atuação de dois bancos públicos chineses: o China Development Bank e o China Ex-Im Bank. Ambas as instituições financeiras realizaram empréstimos aos governos da América Latina e às empresas chinesas interessadas em ingressar no mercado da região. Estima-se que os empréstimos chineses para a América Latina superaram US$ 137 bilhões desde 2005 e tiveram como principais destinos os seguintes países: Venezuela (US$ 62,2 bilhões); Brasil (US$ 28, 9 bilhões); Equador (US$ 18,4 bilhões) e Argentina (US$ 17,1 bilhões). Os setores energético e de infraestrutura igualmente se sobressaíram como principais receptores do financiamento chinês, concentrando grande parcela dos capitais alocados nos países latino-americanos.

    O filósofo Olavo de Carvalho e ministro Ernesto Araújo lideram o grupo de inimigos de qualquer aproximação do Brasil com a China.

    De modo a elucidar essa crescente projeção econômica da China na América Latina, cabe exemplificar determinados projetos de investimento. No Brasil, o setor elétrico tem se caracterizado como principal receptor de capitais chineses, com atuação destacada das empresas State Grid e China Three Gorge. Além de vultosas aquisições, como no caso da CPFL Energia, a State Grid liderou, em 2017, o consórcio responsável pela construção da primeira linha de transmissão de energia elétrica de aproximadamente 2 mil quilômetros que liga a usina hidrelétrica de Belo Monte aos centros consumidores, no Sudeste do país. Em 2019, a segunda linha de transmissão, com extensão de 2,5 mil quilômetros, também foi concluída, tendo sido construída inteiramente pela State Grid, ao custo de US$ 2,2 bilhões.

    Por outro lado, o Peru tem sido outro destino preferencial de investimentos chineses, sobretudo no setor de cobre, como evidenciado no projeto de Las Bambas, que recebeu US$ 5,850 bilhões e constitui o principal empreendimento chinês no país andino. Já na Argentina, os investimentos chineses têm em parte se direcionado à construção de barragens para geração de energia hidrelétrica, ao passo que também se destaca o projeto de renovação da rede ferroviária Belgrano Cargas, em valor superior a US$ 2 bilhões.

    O aprofundamento das relações econômico-comerciais veio acompanhado de um adensamento das relações político-diplomáticas e de um interesse cada vez mais acentuado da China pelas políticas regionais na América Latina. Por exemplo, a China estabeleceu tratados de livre-comércio com países da região, ingressou como observador na Organização dos Estados Americanos (OEA) e se tornou membro do BID e consultor do Mercosul. Além disso, o país asiático estabeleceu parcerias estratégicas com relevantes atores regionais, como Brasil, Argentina, Chile, México, Peru e Venezuela.

    Ainda como evidência do caráter estratégico da América Latina para Pequim, cabe mencionar as publicações, em 2008 e 2016, do China’s Policy Paper on Latin America and the Caribbean, cujo conteúdo detalha as áreas de cooperação e as convergências entre o gigante asiático e os países latino-americanos.

    Os esforços voltados à institucionalização da parceria sino-latino-americana ganharam novos contornos com a criação, em 2014, do Fórum China-CELAC. Desde então, realizaram-se duas Cúpulas do Fórum, uma sediada em Pequim (2015) e outra em Santiago (2018). Como resultado da Declaração de Pequim (2015), foi estabelecido um Plano de Cooperação (2015-2019), que previa o estreitamento das relações em três forças motrizes (comércio, finanças e investimento) e seis áreas (energia, recursos naturais, construção de infraestrutura, agricultura, indústria manufatureira, inovação científica e tecnológica e tecnologia informática).

    Por ocasião do II Fórum China-CELAC (2018), sediado em Santiago, os governos latino-americanos e chinês emitiram uma Declaração Especial sobre a Iniciativa Cinturão e Rota. Na nota, a China expressou que a iniciativa é amplamente compartilhada pela comunidade internacional e considera que os países da ALC constituem parte da extensão natural da Rota da Seda Marítima, bem como participantes indispensáveis na cooperação internacional da iniciativa.

    Em termos bilaterais, 19 países latino-americanos assinaram acordos de cooperação em torno da Nova Rota da Seda. Desses dezenove, oito países são da América do Sul (Bolívia, Chile, Equador, Guiana, Peru, Suriname, Uruguai e Venezuela); três da América Central (Costa Rica, El Salvador e Panamá); e oito do Caribe (Antígua e Barbuda, Barbados, Cuba, Dominica, República Dominicana, Granada, Trinidad e Tobago). Destaca-se, ainda, que seis países sul-americanos que aderiram formalmente à BRI são também membros (prospectivos ou completos) do Banco Asiático de Investimentos em Infraestrutura (AIIB), sendo eles: Uruguai, Bolívia, Peru, Chile, Equador e Venezuela. Com a extensão da BRI na América Latina, a expectativa é de que a China intensifique ainda mais a alocação de investimentos em infraestrutura, contribuindo não somente para reduzir a insuficiência da infraestrutura regional, mas também para cimentar um processo de aproximação e estreitamento que se desenrola desde o início dos anos 2000.

    As relações sino-latino-americanas evoluíram de maneira progressiva e consistente ao longo do século XXI, superando um inicial estágio de aumento de trocas comerciais para níveis mais profundos de interações econômicas, financeiras e político-diplomáticas. Há, contudo, inúmeras incertezas. A mais explícita delas diz respeito ao acirramento da competição estratégica entre China e Estados Unidos e seus efeitos sobre a América Latina.

    A disputa geopolítica entre atores extrarregionais possui potencial de reforçar a fragmentação dos processos de integração e enfraquecer a cooperação com a China, que tem uma inserção internacional e uma diplomacia econômica calcada em investimentos produtivos e infraestrutura.

    Por conta disso, a coordenação e a articulação na esfera regional se configuram como um imperativo para aproveitar as oportunidades emanadas do conflito sino-estadunidense e traduzi-las em benefícios concretos às nações latino-americanas. Porém, a julgar pelo esvaziamento dos impulsos integracionistas e pelas políticas regionais de atores-chave do subcontinente, as perspectivas não permitem que se considere como factível a construção de estratégias articuladas e coordenadas em âmbito regional, ao menos no curto e no médio prazos.

    Fontes:

    China-Latin American Economic Bulletin, 2020 Edition: Disponível em: https://www.bu.edu//gdp/files/2020/03/GCI-Bulletin_2020.pdf

    China Global Investment Tracker, elaborado por American Enterprise Institute e Heritage Foundation. Disponível em: https://www.aei.org/china-global-investment-tracker/

    China-Latin America Finance Database, elaborado por The Dialogue. Disponível em: https://www.thedialogue.org/map_list/

    Special Declaration of the II Ministerial Meeting of the CELAC-China Forum on the Belt and Road Initiative. Disponível em: http://www.itamaraty.gov.br/images/2ForoCelacChina/Special-Declaration-II-CELAC-CHINA-FORUM-FV-22.1.18.pdf

    Carlos Renato Ungaretti
    Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Estudos Estratégicos Internacionais (PPGEEI-UFRGS).

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    1 COMENTÁRIO

    1. O Brasil não pode se auto- destruir ficando acorentado pelos ” patriotas de província”: podemos e devemos comercializar sem brutalisar. Os americanos, ” velhos bandidos” , amam as camas que suportam dinheiro e sangue.

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