Considerado por seus críticos, muitos deles ex-membros de seu primeiro governo, uma ameaça para a democracia, para o meio ambiente, para os imigrantes, para o multilateralismo, para o livre-comércio, para os próprios Estados Unidos, para a China, para o mundo, enfim, Donald Trump, o primeiro candidato a presidente dos Estados Unidos condenado criminalmente e que apenas há quatro anos tentou um golpe contra a própria democracia norte-americana, venceu as eleições com amplo apoio popular. Diferentemente de sua primeira eleição quando venceu no colégio eleitoral, mas perdeu no voto popular, desta vez ganhou nos dois. A margem foi estreita, mas convincente. O resultado das eleições mostrou que “os americanos querem Trump, sem hesitações” com o observou o jornal inglês Financial Times.
Diante deste resultado cabem algumas perguntas? Por que, apesar de tudo que pesava contra ele, que não era pouco, ainda assim venceu as eleições? Qual o sentido de sua vitória?
Supondo que o eleitor na hora de votar tenha ponderado entre o que o foi seu primeiro governo e o governo atual, do presidente Biden, a resposta mais simples seria a de que, em aspectos importantes para esse mesmo eleitor – leia-se economia – o primeiro governo Trump foi melhor que o de Biden/Kamala. Pode ser apenas uma ilusão de ótica, uma vez que a análise fria dos números não corrobora tal afirmação.
Andrés Oppenheimer, por exemplo, em artigo no Estadão (16/10), ataca o mito da grandeza de Trump e demonstra que a afirmação de ter sido um bom presidente é uma falácia. Segundo Oppenheimer, “Trump deixou o maior déficit da história dos EUA. A dívida nacional aumentou em US$ 7,8 trilhões, para US$ 28 trilhões, mostram dados do Federal Reserve de Nova York. A economia americana cresceu 6,8%. E cresceu 8,4% durante os anos de Joe Biden. Trump deixou o cargo com 3 milhões de empregos a menos do que quando chegou à Casa Branca. É verdade que isso se deveu em grande parte à pandemia, mas Biden criou quase 16 milhões de empregos desde então, segundo dados oficiais. Outro mito: a inflação foi mais baixa sob Trump do que sob Biden. A pandemia interrompeu as cadeias de fornecimento da China e fez com que os preços dos produtos disparassem, em 2021 e 2022. É verdade, mas a inflação caiu para 2,4% desde então.”
O fato, entretanto, é que na avaliação do eleitor comum, o primeiro governo Trump foi melhor na economia do que Biden e isso, na hora do voto é o que conta. O ponto mais sensível para o eleitorado americano tem sido o da inflação. Apesar de a inflação ter baixado durante o governo Biden para 2,4%, em setembro, depois de alcançar mais de 9,1% em meados de 2022, as pessoas ainda não superaram o quanto os preços estão mais altos hoje do que em 2020 e acham que a culpa é de Biden. O fato de a inflação baixar não significa que os preços vão baixar, mas que apenas vão parar de subir ou subir menos. As pessoas continuam, assim, a enfrentar preços dolorosamente altos e às vezes crescentes de itens caros, incluindo moradia, carros, creches e seguros, o que contribui para sua sensação de desconforto. Segundo o Financial Times (31/10), os preços subiram aproximadamente 25% em média desde 2019. É fato que os salários também subiram na mesma proporção, mas as pessoas tendem a atribuir os aumentos de salários aos seus próprios méritos e os aumentos de preços ao governo, qualquer que seja ele. Para piorar as coisas, como afirmou o Financial Times (31/10), “o maior fardo recaiu sobre os americanos de baixa renda – que também representam uma parcela relativamente grande dos eleitores indecisos. As famílias mais pobres dos EUA sofreram dois pontos percentuais extras de inflação acumulada em relação às famílias mais ricas desde 2019. Um grande motivo são os aluguéis, agora cerca de 30% mais altos em média do que em 2019. As famílias de baixa renda são mais propensas a alugar suas casas.”
Pesou muito também o tema da imigração. Trump transformou o tema de imigração ilegal no principal espantalho que agitou para os eleitores americanos apelando para mentiras como, por exemplo, que os haitianos (legais) estavam comendo os pets dos moradores da cidade de Springfield no estado de Ohio. Segundo a revista The Economist (08/10/2024), “A obsessão de Trump com a imigração moldou esta campanha presidencial – e a política americana nos últimos nove anos. Um abismo se abre entre as políticas de imigração de Trump e Kamala Harris, mas seu foco dominante na questão a forçou a se inclinar para a direita para evitar parecer fraca na segurança da fronteira. Segundo pesquisa do Pew Research Center, 61% dos eleitores registrados disseram que a imigração era uma prioridade para eles nesta eleição e o fato é que Trump conseguiu colocar a questão da imigração no centro da política norte-americana nos últimos anos.” A campanha de Trump apelou o tempo todo para o medo, a frustração, o preconceito, a xenofobia e daí por diante e, como sabemos, o medo nem sempre é um bom conselheiro. Como a vida se tornou muito mais insegura e o futuro é imprevisível, o medo joga um papel muito mais importante do que as meras divergências políticas[1].
Isso, contudo, responde apenas parcialmente à questão do porquê Trump foi vitorioso. Afinal de contas, porque os Democratas, em temas tão sensíveis, mostraram-se distantes das preocupações do eleitor comum a ponto de jogá-los no colo da extrema direita? Talvez esteja na resposta a essa questão a explicação mais profunda da vitória de Trump. O que ocorreu nos Estados Unidos não é um caso isolado e muito menos um acidente da história. O chamado “Estado de Bem-estar Social” tanto nos Estados Unidos quanto na Europa foi fruto da luta da esquerda democrática no período pós-guerra e que nos Estados Unidos sempre esteve mais associada ao Partido Democrata. Por que tanto nos Estados Unidos quanto na Europa essa mesma esquerda liberal democrática vem perdendo espaço para forças políticas conservadoras e de direita que tradicionalmente são contra as políticas públicas e a presença do Estado na economia?
Em primeiro lugar porque uma esquerda cuja proposta é apoiar o liberalismo econômico, a globalização e a destruição do estado social, propondo como forma de luta e transformação social as políticas identitárias, o cosmopolitismo, a ecologia sem justiça social, a dissolução do estado-nação em organizações globais ou a multiculturalidade como imigração descontrolada induzida por máfias, filantropos e pelo poder empresarial, ainda que se disfarce de modernidade ou mudança emancipadora, só serve para os mesmos objetivos que cinicamente diz combater[2].
Além do mais, uma esquerda que qualifica como de extrema direita os questionamentos realistas dos problemas que afetam o dia a dia do povo faz o jogo da própria extrema direita. A consequência é que tudo que se rotula de esquerda tende a despertar um sentimento de rejeição por parte do público em geral, embora nem sempre tenha sido assim. A esquerda tradicional estava enraizada nos sindicatos, na classe operária, nos bairros pobres. A esquerda liberal está nas universidades, na classe média. Por isso é vista como pedante e arrogante pela maioria do povo.
Os apelos à defesa da democracia não querem dizer nada quando essa democracia não garante uma condição de vida digna para as pessoas. Para sobreviver os homens sempre viveram em comunidades em todas as épocas. Essas comunidades estabelecem uma divisão de trabalho para sobreviver, assim como uma hierarquia e um sentido de unidade dado pela sua identidade étnica, linguística e cultural. Quando essa unidade, hierarquia e divisão do trabalho é posta em xeque por um fluxo descontrolado de imigração ou por ataques à estrutura familiar tradicional é natural que essas comunidades se sintam inseguras e adotem uma postura conservadora. Rotular esse comportamento como de direita apenas faz o jogo da própria direita.
As grandes narrativas na sociedade afetam tanto nossa percepção da realidade como nossa maneira de ver o mundo. A vida social é dominada pelas grandes narrativas e não por qualquer comportamento racional. No caso da eleição americana a grande narrativa decisiva para a vitória de Trump foi seu primeiro governo ter sido melhor para a economia e a esquerda quer destruir os valores tradicionais da sociedade norte-americana. É preciso considerar também que um partido perde votos nos lugares onde não tem nenhum apoio organizativo na vida cotidiana das pessoas. Na medida em que, pelas mudanças no mundo do trabalho, os sindicatos, tradicionalmente alinhados com a esquerda foram deixando de ser uma referência na vida dos trabalhadores e as igrejas passaram a cumprir esse papel é natural que isso se refletisse nas urnas.
É uma ilusão, contudo, achar que a vitória de Trump possa garantir a preservação ou o retorno ao modo de vida que marcou a sociedade norte-americano durante os chamados “trinta anos gloriosos” do capitalismo moderno, entre o final da segunda guerra e o final da década de 1970. O neoliberalismo, que ganhou proeminência pelas mãos de Margareth Tatcher, na Inglaterra, e o republicano Ronald Reagan, nos Estados Unidos, é muito mais do que uma doutrina econômica. É uma doutrina política que procura deslegitimar o conceito de sociedade como comunidade de responsabilidades e interesses. A característica definidora de uma sociedade é a responsabilidade coletiva, enquanto a característica definidora de um mercado é a capacidade de escapar . Para o neoliberalismo, a sociedade não existe, o estado é um inimigo, e o bem comum só pode ser alcançando pela busca egoísta dos interesses próprios. Trump venceu porque os Democratas abandonaram a classe trabalhadora, como afirmou o senador republicano Bernie Sanders, mas isso não quer dizer que Trump e os republicanos a tenham abraçado. O que Trump propõe e representa é o aprofundamento do modelo neoliberal, o que ao fim e ao cabo só trará mais desespero e desamparo aos trabalhadores americanos.
[1] Sara Wagenknecht. Die Selbstgerechten: Mein Gegenprogramm – fur Gemeinsinn und Zusammenhalt.
[2] Idem, ibidem