Com a desistência de Joe Biden, o Partido Democrata se uniu rapidamente em torno de Kamala Harris, que ultrapassou Donald Trump nas pesquisas. De acordo com o agregador de pesquisas da revista inglesa The Economist, até meados de julho, Trump mantinha-se cerca de três pontos percentuais à frente de Biden. Após a entrada de Kamala Harris na disputa no lugar de Biden as tendências se inverteram. Segundo a revista, em 28 de agosto, Harris tinha 48% e Trump 45%. Para vencer a eleição é necessário que o candidato conquiste 270 delegados. Segundo a metodologia da revista, as chances, hoje, seriam de Harris obter 277 delegados e Trump, 261. De acordo com a sondagem, Harris teria três chances em cinco de vencer a eleição, enquanto Trump teria duas chances em cinco.
Kamala trava agora uma luta para provar ser capaz de representar a mudança mesmo sendo parte do governo atual. Sua entrada mudou completamente a dinâmica da eleição, antes representada pela competição entre dois homens brancos que disputavam o duvidoso recorde de presidente mais velho da história dos Estados Unidos. O Calcanhar de Aquiles de Biden vinha sendo a situação econômica, nomeadamente a inflação, que deu um salto durante seu governo, atingindo 9,1% há dois anos, o maior pico em quatro décadas, para depois voltar para 3% e continuar a diminuir embora ainda permaneça acima da meta de 2% do Federal Reserve, o banco central dos Estados Unidos.
Kamala Harris, para livrar-se desse peso, foi para o ataque, acusando as grandes corporações de manipulação de preços com o objetivo de engordar seus lucros à custa dos consumidores. Uma acusação comum da ala esquerda da política americana é que as empresas alimentaram a inflação durante a pandemia de Covid-19, aproveitando a escassez para aumentar os preços.
Segundo a revista The Economist (20/08/2024), é fácil entender o que está motivando a estratégia econômica de Kamala Harris. “Pesquisa após pesquisa demonstra que muitos americanos consideram o custo de vida como sua principal preocupação rumo à eleição em novembro, e a Sra. Harris começa com o pé atrás, tendo atuado como vice-presidente durante um período em que a inflação atingiu o pico em quatro décadas. Em vez de encobrir essa realidade feia, ela está tentando confrontá-la. “Custos mais baixos para as famílias americanas” é a peça central de sua agenda econômica, uma mensagem que ela provavelmente transmitirá novamente em 22 de agosto, em um discurso na Convenção Nacional Democrata.”
Embora Kamala, como candidata do atual governo, tenha as vantagens do partido que está no poder, por outro lado enfrenta o desafio de também representar a mudança, uma vez que esse desejo, como observou editorial do Estadão (23/8/2024), “tem sido uma constante na política moderna dos EUA”. Tirar vantagem dos pontos positivos do governo atual, nomeadamente as baixas taxas de desemprego e a resiliência da economia em um quadro global de instabilidade e, ao mesmo tempo, vender um discurso crível de mudança, sobretudo no que diz respeito ao controle da inflação e ao empobrecimento da classe média é o principal desafio de sua campanha.
Seu plano econômico mira em quatro categorias de custos: moradia, mantimentos, médicos e impostos. Na questão da moradia, ela promete a construção de 3 milhões de novas casas nos próximos quatro anos e quer fornecer financiamento federal e permitir reformas para que isso aconteça. Analistas calculam que os Estados Unidos estão sofrendo com uma escassez de cerca de 4 milhões a 7 milhões de casas. Outra promessa é dar aos compradores de imóveis pela primeira vez US$ 25.000 para pagamentos iniciais de hipotecas.
Na questão do preço da comida ela quer aprovar a primeira proibição federal de preços abusivos em alimentos e mantimentos. Desnecessário dizer que tal proposta teria chances mínimas de ser aprovada pelo Congresso norte-americano, dominado pelo lobby das grandes corporações.
Na área da saúde, o seu plano é reduzir os custos médicos escandalosamente altos dos Estados Unidos, estabelecendo controle de preços e limites no custo da insulina (de US$ 35 por mês) e despesas diretas com medicamentos prescritos (de US$ 2.000 por ano). Para efeito de comparação, o levantamento da Rand Research revelou que um frasco de insulina nos EUA custa em média US$ 98, enquanto no vizinho Canadá custa apenas US$ 12. Um frasco de insulina tem a duração de 28 dias. De acordo com a Associação Americana de Diabetes, mais de 37 milhões de pessoas nos Estados Unidos têm diabetes e cerca de 8,4 milhões precisaram tomar insulina em 2022. Kamala Harris também disse que trabalharia com os estados para cancelar as dívidas médicas. Mais uma vez, seu objetivo é louvável: é escandaloso que tantos americanos estejam sobrecarregados com dívidas médicas. Finalmente, a estratégia econômica de Harris envolve cortes de impostos direcionados. Para famílias de baixa e média renda, ela aumentaria o crédito fiscal infantil, incluindo US $ 6.000 durante o primeiro ano de vida de um bebê, acima dos US $ 2.000 atuais. (The Economist, 20/08/2024).
Enquanto o lema da campanha de Kamala é “seguir adiante”, em clara referência aos pontos positivos do governo Biden, a estratégia de Trump é convencer as pessoas de que os EUA estão à beira do abismo e só uma reviravolta radical poderia evitar o desastre iminente. Entre os republicanos há uma razoável convergência de todas as alas do partido em torno de uma agenda conservadora nos costumes e eclética na política, sobretudo na economia, em que ideias ultraliberais como o corte de impostos dos mais ricos convivem com propostas ultra protecionistas de elevar os impostos para 60% contra as exportações chinesas e 20% a 25% contra os demais países. Do lado democrata, há convergência em torno das propostas econômicas e sociais, mas divergências importantes em outras áreas, sobretudo em política externa.
Na convenção que sacramentou o nome de Kamala Harris como a nova candidata do Partido Democrata para as eleições de novembro, grupos mais à esquerda do partido organizaram protestos no lado de fora da convenção, exigindo uma agenda progressista mais radical. Como observou o Estadão (20/08/2024) “Milhares de manifestantes de 200 grupos diferentes marcharam ontem nas ruas de Chicago na abertura da Convenção Nacional Democrata, que oficializará Kamala Harris como candidata do partido. Os ativistas defendem uma agenda progressista mais radical, criticam o apoio irrestrito dos EUA a Israel e expõem divergências internas que podem dificultar uma vitória em novembro.”
As áreas de política externa e política comercial talvez sejam as em que as diferenças entre os dois candidatos são menos claras. Apesar de toda a crítica ao isolacionismo de Trump em seu primeiro mandado, Biden pouco alterou a política externa e a política comercial dos Estados Unidos nomeadamente em relação à China. Trump agora promete elevar as tarifas para os produtos importados da China para 60%. Kamala não chega a tanto, mas o fato é que ambos os partidos estão adotando cada vez mais tarifas como ferramenta essencial para proteger os fabricantes americanos dos concorrentes chineses e de outros países globais.
Conforme destacou a Economist (28/08/2024), “Em questões de política econômica e comércio, os dois principais partidos estão se movendo na mesma direção”, disse Nick Iaco Vella, vice-presidente sênior da Coalizão por uma América Próspera, que defende tarifas e investimentos domésticos na indústria.” Ainda segundo a revista, “Charles Lutvak, porta-voz da campanha Harris-Walz, disse que a Sra. Harris “empregaria tarifas direcionadas e estratégicas para apoiar os trabalhadores americanos, fortalecer nossa economia e responsabilizar nossos adversários.”
Editorial do Estadão (23/8/2024) afirma que republicanos e democratas têm mais semelhanças do que gostariam de admitir. Segundo o jornal, “A agenda econômica de Donald Trump combina antigos fundamentos liberais, como menos regulação e impostos, com uma voracidade protecionista na forma de tarifas de importação, aversão a imigrantes e hostilidade à independência do Banco Central. O intervencionismo democrata, agora encampado por Kamala Harris, é mais desconfiado dos grandes negócios e aposta em controle de preços e subsídios financiados com mais impostos.”
Para grande parte dos eleitores norte-americanos o problema é como livrar-se de Trump. Nesse sentido, independentemente da viabilidade e da credibilidade das promessas de Kamala, a questão de fundo é que ela é a única alternativa para evitar que Trump assuma novamente o comando da maior economia do mundo.
Uma eventual vitória de Trump, à parte dos impactos que teria para a economia e a política externa dos Estados Unidos, significaria trazer de volta para o centro da política norte-americana grupos radicais de direita como os “Proud Boys” e outras agremiações supremacistas e neonazistas que hoje pululam no submundo da política dos Estados Unidos, muitos deles atualmente condenados e presos pela invasão do Capitólio em 6 de janeiro de 2021, e que veem na eventual vitória de Trump a principal esperança de livrar-se da cadeia.
Conforme afirmou Enrique Tarrio, líder dos Proud Boys, condenado a 22 anos de prisão por orquestrar a invasão do Capitólio, à revista The Economist: “As apostas nesta eleição, não preciso dizer, são astronômicas” (…) “Minha vida real está em jogo no dia 5 de novembro.” Ainda segundo a revista, Brien James, cofundador de uma gangue supremacista branca no Centro-Oeste, agora associada aos Proud Boys, ao ser perguntado sobre o que os Proud Boys farão se Trump for reeleito, afirmou querer que o grupo “se torne uma força política que faça as coisas, tenha uma conta bancária, veículos e essas coisas.”
De acordo com matéria da revista The Economist (28/08/2024), “Uma postagem recente no canal Proud Boys da “República do Texas” juntou fotos de dançarinos de cabaré decadentes com jovens nazistas uniformizados flanqueando Adolf Hitler, perguntando: “Alemanha de Weimar x Alemanha nazista – em qual você prefere viver?” Afiliados vestidos com a farda preta e dourada dos Proud Boys apareceram em eventos de Trump este ano. O número de membros é incerto, mas McInnes calcula que haja cerca de 4.000 na América.”
O primeiro debate público entre Harris e Trump foi realizado na Filadélfia, no dia 10 de setembro. Este estado é importante nas eleições americanas; nenhum dos últimos presidentes americanos chegou ao cargo sem ter vencido naquele estado. As pesquisas realizadas após o debate informam que Kamala “venceu” o debate com folga, mas no item economia ficou em desvantagem em relação a Trump. A maior parte dos eleitores continua a achar que Trump pode lidar melhor com a economia dos Estados Unidos do que Kamala Harris.
Se, como se afirma sobre as eleições americanas, é a economia que importa, Kamala tem um grande desafio nos próximos dois meses que antecedem as eleições nos Estados Unidos em novembro próximo: descolar-se da avaliação negativa sobre economia que os eleitores fazem do governo Biden e convencer os eleitores que sua proposta de “economia de oportunidades” é mais viável do que o tarifaço proposto por Trump.