Carlos Renato Ungaretti
Tiago Nogara
No dia 25 de outubro, a população chilena foi às urnas para decidir pela aprovação ou rechaço à ideia de enterrar a Constituição herdada da era Pinochet e construir uma nova Carta Magna a partir do ano que vem. Como era de se esperar, o resultado do plebiscito refletiu as demandas por mudança que eclodiram em forma de massivos protestos ao final do ano de 2019. Nada menos do que 78% dos eleitores votaram favoravelmente à realização de uma Constituinte.
Além do mais, os eleitores optaram por uma Convenção Constitucional não-mista. Os 155 membros serão eleitos por votação direta em abril de 2021. Poderão se candidatar cidadãos maiores de 18 anos, sendo permitidas candidaturas independentes ou de filiados a partidos políticos. Os parlamentares em mandato não estão autorizados a participar da disputa. Está prevista, também, a paridade de gênero entre os membros eleitos para a Convenção Constitucional. Após a eleição, o presidente Piñera deve convocar a sessão de instalação da Convenção, que deve ocorrer dentro dos 15 dias posteriores. Em sua primeira sessão, a Convenção deve eleger a presidência e a vice-presidência.
A partir dessa definição, o funcionamento da Convenção se dará em um período de 9 meses a 1 ano, com a obrigação de adotar suas decisões com a aprovação de dois terços de seus integrantes. Após a conclusão dos trabalhos, no mais tardar em junho de 2022, a população novamente se submeterá a um plebiscito ratificatório, desta vez com voto obrigatório.
Realizada essa preliminar recapitulação a respeito do processo previsto para a escrita da nova Constituição, é importante resgatar as origens da insatisfação social que tomou conta das ruas do Chile a partir do final de 2019. O Chile, que há pouco tempo era promovido como o principal exemplo de desenvolvimento econômico e social da América Latina, foi o primeiro país a adotar o receituário neoliberal, posteriormente batizado de “Consenso de Washington”. Esse receituário previa a realização de reformas macroeconômicas, entre elas privatizações, abertura unilateral de mercados, desregulamentação financeira, flexibilização do mercado de trabalho e, em última instância, estabelecimento de um “Estado mínimo”.
A partir da década de 1970, inicia-se o experimento neoliberal, liderado pelos Chicago Boys, caracterizado pelo desmantelamento do Estado e de suas capacidades de mediação, planejamento e investimento, gerando privatização de serviços básicos, recursos naturais e redes de proteção social. O experimento se institucionalizou com a Constituição de 1980 e perdurou nas décadas que seguiram o processo de redemocratização do país. O texto constitucional herdado da ditadura Pinochet previu justamente que o Estado fosse apenas um “supervisor” ou subsidiário – e não mais provedor – dos serviços básicos, cabendo apenas o papel de fiscalizar e regulamentar os serviços oferecidos pelos entes privados.
A estabilidade política e os resultados macroeconômicos tardaram, mas não inviabilizaram, o aparecimento de profundas insatisfações com um modelo reservado e funcional para uma pequena fração do país. De um lado, a estabilidade política mascarava um processo de crescente desengajamento e despolitização, que se evidenciou em crescentes níveis de abstenção eleitoral a partir dos anos 1990. Nas eleições municipais de 2016, a participação eleitoral atingiu a mínima histórica, com 36% de comparecimento[1].
Por outro lado, a enorme frustração acumulada por parte de grupos sociais chilenos, especialmente de uma classe média precarizada, se relaciona fundamentalmente em torno das desigualdades no acesso, qualidade e suficiência em áreas como saúde, aposentadoria, educação e emprego. Dito de outra forma, os dividendos da outrora elogiável performance macroeconômica chilena, baseada em um modelo primário-exportador assentado principalmente nas atividades cupríferas e pesqueira, acabaram não sendo distribuídos de forma minimamente equânime entre a população.
Sob a ótica das desigualdades, cabe destacar que, segundo a CEPAL, o Chile apresenta elevados níveis de concentração de renda: cerca de 1% da população chilena detém 26% da riqueza do país, enquanto cerca de 66% da população controla apenas 2% do capital nacional. De acordo com a World Inequality Data, o Chile, ao lado de Brasil e México, encontra-se entre os países mais desiguais da América Latina, com a parte 10% mais rica capturando 60% da renda[2].
Outro aspecto central sob a perspectiva das desigualdades é o sistema de aposentadorias, baseado em capitalização e gerido por meio das chamadas AFPs (Administradoras de Fundos de Pensão). O resultado desse modelo acaba se revelando bastante prejudicial aos pensionistas, que acabam recebendo valores bastante inferiores ao que costumavam receber. Em 2016, cerca de 94% das mulheres receberam menos de 155 mil pesos chilenos, o que equivale a um pouco mais da metade do salário mínimo (300 mil pesos chilenos). Entre os homens, a pensão média é de cerca 320 mil pesos chilenos, um pouco acima do salário mínimo[3]. A pensão média, em dólares, é de US$ 286, abaixo do salário mínimo, de US$ 414[4].
Em um país onde os serviços públicos são privatizados e o acesso à saúde e educação depende dos níveis de renda, o salário mínimo acaba não cobrindo as necessidades básicas. Isto explica, por exemplo, o elevado nível de endividamento dos chilenos: de acordo com dados do Banco Central, cerca de 73% do orçamento de uma família no Chile se destina ao pagamento de dívidas[5].
O acesso à saúde também serve para ilustrar esse ponto. A gratuidade dos serviços de saúde é reservada somente para aqueles que ou recebem menos de 250 mil pesos ou recebem alguma pensão básica voluntária. O restante do universo da população filiada ao sistema público (78%) deve gastar seus próprios recursos, segundo seu nível de renda, para ter acesso a tratamentos e medicamentos.
O mesmo se repete no setor educacional, que apresenta elevados custos para acesso, especialmente na esfera universitária, gerando significativos níveis de endividamento estudantil. Avolumaram-se, nas últimas décadas, relatos de jovens recém-formados que não conseguem arcar sequer com os juros de suas dívidas, em sua maioria fornecidos pelo CAE (Crédito com Garantia do Estado)[6].
Em 2019, aumentos nas tarifas de água, eletricidade e transporte, contribuíram para a eclosão das manifestações – cabe recordar que o estopim dos protestos, que se estenderam por semanas e que deixaram rastros de profunda violência ao redor do país, se deu justamente após o aumento da passagem do metrô em Santiago. Diversos manifestantes inclusive reivindicaram que os protestos não eram sobre os “30 pesos” de aumento na tarifa, mas sobre “30 anos” de abuso de poder[7].
Em pesquisa[8] realizada entre os votantes do “aprovo” e do “rechaço”, se tem a confirmação a respeito da relação entre rejeição ao modelo de Estado “subsidiário” e posicionamento favorável à mudança constitucional. Dos motivos para votar “aprovo”, destacam-se os seguintes: i) garantir direitos sociais em aposentadorias, educação e saúde (69% no total e 49% como primeira opção); ii) terminar com a Constituição de Pinochet (36% no total e 19% como primeira opção); iii) para mudar o modelo neoliberal (18% no total e 9% como primeira opção); iv) melhorar os salários e a qualidade de vida em geral (23% no total e 4% como primeira opção)[9].
Outra temática crucial do processo constituinte é a que diz respeito à questão mapuche. Os mapuches representam hoje cerca de 5% da população chilena, ou 700 mil pessoas, com a maior parte de seus componentes já miscigenada e integrada ao conjunto da população do país, ainda que constituindo preponderantemente os estratos empobrecidos dos arredores das grandes cidades, especialmente Santiago. Aproximadamente ⅕ destes ainda habita sua região de origem, nas terras de Bío Bío e Araucanía. Desde a década de 1980, o movimento autonomista mapuche estreitou seus laços com a atuação de organizações não-governamentais e fundações europeias, essas com evidentes interesses geopolíticos na região.
Na esteira da oportunidade de mudança constitucional, uma série de organizações não-governamentais e think tanks vinculados aos serviços de política exterior das grandes potências têm insuflado demandas em prol da antiga questão da autonomia do território mapuche. Da mesma forma, grandes meios de comunicação internacionais têm atuado no sentido de condicionar a opinião pública em prol da aprovação de medidas para obstaculizar obras de infraestrutura na região.
Ingrid Wehr, diretora da Fundação Heinrich Böll para o Cone Sul, destacou, em entrevista à DW, a necessidade de reconhecimento para a luta por “autonomia territorial” e à demanda de “poder cuidar dos bens naturais que se encontram em territórios mapuches”. Nesse mesmo sentido, destacou a necessidade de combate ao que chamou de “nefasto modelo extrativista existente”, fazendo menção às dez comunas onde se concentram 30 das principais termelétricas existentes no Chile.
Considerando as razões que motivaram o voto no “aprovo”, a nova Constituição abrirá, portanto, oportunidades para debater e redefinir uma série de questões, especialmente o equilíbrio entre Estado e mercado em relação aos direitos sociais. Outras redefinições importantes podem ocorrer em termos de distribuição de poder (regime de governo); caráter unitário ou descentralizado do Estado; proteção dos recursos naturais, incluindo a água; reconhecimento dos povos originários, entre outros[10]. Ou seja, a escrita da nova carta constitucional abre caminhos para enfrentar as debilidades, desigualdades e frustrações geradas pelo modelo neoliberal gestado na década de 1970 e consolidado com a Constituição de 1980, permitindo que a sociedade chilena debata e construa um novo projeto assentado na redefinição do papel do Estado e de suas capacidades.
Há de se ressaltar, contudo, a existência de inúmeros desafios, envolvendo especialmente a discussão soberana de pautas nacionais prioritárias e o estabelecimento de uma nova estabilidade institucional que garanta direitos sociais ao tempo em que não prejudique os intentos de desenvolvimento econômico do país. No entanto, ao que tudo indica, a Convenção Constituinte permite ao povo chileno retomar um caminho promissor, embora não livre de dilemas e armadilhas, a serem superados pelo reconhecimento da centralidade da questão nacional como o único vetor capaz de guiar o desenvolvimento e a estabilidade do Chile.
[1] Ver reportagem El País: https://bit.ly/386tRjt
[2] Ver dados, disponível em: https://wid.world/news-article/2020-regional-updates/
[3] Ver reportagem Folha de SP, disponível em: https://bit.ly/349TeiY
[4] Ver reportagem BBC, disponível em: https://bbc.in/347jpXN
[5] Ver reportagem O Globo, disponível em: https://glo.bo/2JY7K6L
[6] Ver reportagem, Carta Capital, disponível em: https://bit.ly/3gT2U6L
[7] Ver reportagem DW, disponível em: https://bit.ly/3nrqiL1
[8] Ver pesquisa, disponível em: https://bit.ly/37kh79P
[9] Compilação extraída de Gonçalves (2020), disponível em: https://bit.ly/37jAgbC
[10] Ver reportagem La Tercera, disponível em: https://bit.ly/3a96aJZ